Todas escolas do campo com internet e tecnologia de ponta em quatro anos? Sim, é possível
“Desde o início do governo Bolsonaro a política de educação foi negligenciada, tratada como instrumento para a guerra cultural e com aparelhamento ideológico.” Assim se inicia o capítulo sobre educação do relatório final produzido pelo grupo técnico do Gabinete de Transição Governamental e divulgado nesta quinta-feira, 22.
Dentre os muitos e hercúleos desafios que o novo governo Lula terá pela frente na área, o relatório destaca ser “ndispensável recuperar a capacidade operacional em áreas críticas para a execução das políticas, seja no FNDE, no MEC ou em outras autarquias, a exemplo das áreas de licitação, empenho, contratos, pagamento e tecnologia da informação”.
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E é sobre o tema da tecnologia, especificamente na educação do campo, que as linhas seguintes pretendem contribuir. É possível avançar muito nessa área nos próximos anos, sem onerar em demasia o já combalido orçamento da pasta.
De acordo com o último Censo Escolar 2021, uma em cada cinco escolas públicas brasileiras não tem acesso à internet e metade delas não disponibiliza qualquer computador ou dispositivo para uso dos/as estudantes.
No caso das escolas públicas localizadas em áreas de assentamento, terras indígenas e comunidades quilombolas, estudos e dados recentes sobre tecnologias e conectividade das escolas públicas brasileiras estimam que, das cerca de 10.400 escolas públicas de educação básica nestas áreas:
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3.675 escolas estão em zonas de cobertura de banda larga fixa, o que significa que há disponibilidade de tecnologia (fibra óptica ou cabo, por exemplo) que viabiliza a conexão à internet. Dessa forma, para conectá-las, seria necessária apenas a contratação de um plano de internet, dado que a região já possui oferta de serviços.
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4.700 escolas estão fora de zonas de cobertura. Isso significa que, para conectá-las com banda larga fixa, seria preciso implementar uma infraestrutura de conexão.
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2.085 escolas não possuem energia elétrica ou dependem de geradores. Nessas condições, para conectá-las à banda larga, seria necessário tanto infraestrutura de eletricidade como de comunicação.
Para dar conta desse gargalo, é necessário garantir que as distintas políticas e fontes de financiamento hoje existentes para impulsionar a conectividade e uso de tecnologias na educação pública garantam o atendimento prioritário às escolas do campo, indígenas e quilombolas.
Isso porque, de acordo com o Plano Nacional de Educação (PNE), estados e municípios devem considerar em seus planos de educação “necessidades específicas das populações do campo, e das comunidades indígenas e quilombolas, assegurados a equidade educacional e a diversidade cultural”. Não por outro motivo, a estratégia 2.6 do Plano fala em “desenvolver tecnologias pedagógicas que combinem, de maneira articulada, a organização do tempo e das atividades didáticas entre a escola e o ambiente comunitário, considerando as especificidades da educação especial, das escolas do campo e das comunidades indígenas e quilombolas”. Na mesma linha, as Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Quilombola na Educação Básica apontam que cabe à União, aos Estados, aos Municípios e aos sistemas de ensino garantir “recursos didáticos, pedagógicos, tecnológicos, culturais e literários que atendam às especificidades das comunidades quilombolas”.
Desta forma, sugerem-se as seguintes propostas para promover a conectividade e tecnologias educacionais nas escolas do campo, indígenas e quilombolas:
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Garantir a representatividade de organizações e movimentos sociais camponeses, indígenas e quilombolas em grupos, conselhos, comitês e instâncias governamentais relacionados às políticas de conectividade e fomento o uso pedagógico de tecnologias digitais na educação básica, de modo a permitir o devido monitoramento e controle popular acerca de seus direitos constitucionais e legais;
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Todas as escolas do campo, indígenas e quilombolas devem ser contempladas com os recursos oriundos da Política de Inovação Educação Conectada (Piec), que tem como objetivo apoiar a universalização do acesso à internet em alta velocidade e fomentar o uso pedagógico de tecnologias digitais na educação básica. Em 2021, das cerca de 10.400 escolas do campo, indígenas e quilombolas, apenas 4.484 foram contempladas;
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As escolas do campo, indígenas e quilombolas devem ser atendidas prioritariamente pelo Grupo de Acompanhamento do Custeio a Projetos de Conectividade de Escolas (Gape), responsável por supervisionar a alocação de R$ 3,1 bilhões oriundos do Leilão 5G para conectividade de escolas públicas. As escolas atendidas pelo projeto piloto em andamento (177 escolas de 10 municípios brasileiros) foram selecionadas tendo como critérios o IDH-M, número de alunos beneficiados, porte e conectividade do município e existência de escolas em terras indígenas, em comunidades remanescentes de quilombos e em assentamentos rurais. Esses critérios devem ser mantidos quando da finalização do piloto e aplicação em escala nacional dos recursos;
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Todas as escolas do campo, indígenas e quilombolas elegíveis pelo Programa de Conectividade Rural da Anatel devem ser atendidas com conexões de dados de, no mínimo, taxa de transmissão de 1 Mbps de download e de 256 kbps de upload, sem franquia de tráfego máximo. Oriundo do Leilão 4G, este programa estabeleceu que as prestadoras de serviços vencedoras – Oi, Claro, TIM e Vivo – têm obrigações de ofertar conexão de voz (telefonia fixa) e conexão de dados (banda larga fixa) em todas as escolas públicas rurais situadas nas áreas compreendidas até a distância de 30 km do limite das localidades sede de todos os municípios brasileiros de forma gratuita, inicialmente, até 2027;
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Todas as escolas do campo, indígenas e quilombolas elegíveis pelo Programa Banda Larga nas Escolas (PBLE) devem ser atendidas com conexão de dados até dezembro de 2025. Por meio desse programa, iniciado em abril de 2008, as concessionárias do Serviço Telefônico Fixo Comutado – STFC (Telefonia Fixa) Oi, Telefônica, Algar e Sercomtel passaram a ter essa obrigação de atendimento a todas as escolas públicas urbanas de nível fundamental e médio, participantes dos programas E-Tec Brasil;
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As escolas do campo, indígenas e quilombolas devem ser atendidas prioritariamente pelos recursos a serem aplicados pelo Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust). De acordo com o revisão feita em 2020 da Lei 9.998/2000, “na aplicação dos recursos do Fust será obrigatório dotar todas as escolas públicas brasileiras, em especial as situadas fora da zona urbana, de acesso à internet em banda larga, em velocidades adequadas, até 2024”. Além disso, a Portaria MCOM nº 6.098, de 1º de julho de 2022, acrescentou como um dos objetivos estratégicos do Fust “promover a conectividade de pessoas em situação de vulnerabilidade social por meio de subsídios”, indicando que esses investimentos deverão “prever sua manutenção por tempo razoável e poderão incluir soluções de suporte, como disponibilização de infraestruturas de tecnologia da informação, dispositivos de acesso à internet, provimento de energia elétrica e capacitação de profissionais da educação”;
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As escolas do campo, indígenas e quilombolas devem ser atendidas prioritariamente pelos recursos oriundos da Lei nº 14.172/2021, que já destinou R$ 3,5 bilhões às secretarias estaduais de educação para garantia de acesso à internet a estudantes e a professores/as da educação básica pública;
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Publicação pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) de atas de registro de preço que permitam a aquisição de computadores e infraestrutura tecnológica para escolas do campo, indígenas e quilombolas;
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Coordenar e promover, em parceria com os cursos de Licenciatura em Educação do Campo, estratégias formação inicial e continuada de educadores/as de escolas do campo, indígenas e quilombolas para o uso de tecnologia em processos de aprendizagens, além de ampliação do Programa Laboratório de Criatividade e Inovação para a Educação Básica (LabCrie), a fim de que todos/as educadores/as de escolas do campo, indígenas e quilombolas possam ter acesso a espaços e metodologias de experimentação de tecnologias.
Por fim, para quem acredita que o debate sobre tecnologia é supérfluo diante do atual contexto da educação brasileira, vale lembrar que um dos pioneiros desta discussão foi Paulo Freire. Quando à frente da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo no início dos anos 1990, ele lançou o Projeto Gênese da Informática, que distribuía computadores em escolas municipais e capacitou professores da rede em informática educativa.
O projeto via no acesso à tecnologia a possibilidade de ampliação do acesso à informação e construção de conhecimento de alunos e professores, o que poderia incentivar, em última instância, mudanças sociais ligadas à emancipação das classes populares.
A premissa de três décadas atrás ainda nos parece válida. Para que, nas palavras do próprio Paulo Freire, “partindo de uma primeira leitura do mundo, meninos e meninas, homens e mulheres façam a leitura do do texto, refaçam a leitura do mundo e tomem a palavra”.
*Advogado e jornalista. Integrante da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares – RENAP.
**As opiniões expressas nesse texto não representam necessariamente a posição do jornal Brasil de Fato.
Publicação de: Brasil de Fato – Blog