Lelê Teles: Cosme e Damião, o verdadeiro dia das crianças

Doces lembranças da minha infância

Por Lelê Teles*

trago, ainda vivo na memória, o corre-corre pelas ruas empoeiradas da minha quebrada e a fagueira algazarra da molecada em busca das cobiçadas guloseimas no mês de cosme e damião.

sim, não era um dia, era o mês inteiro.

lembro da gravura dos santos católicos, gêmeos nas vestes, estampada nos saquinhos brancos, recheados de doces de abóbora em forma de coração, suspiros coloridos, pés-de-moleque, marias-moles, sorvetes de copinho e muitas balas.

no final de tarde, tradicionalmente, soltávamos pipa ou jogávamos bola. sempre que parava um carro novo na beira do campinho a molecada já saía correndo.

do porta-malas, uma madame sacava esses benditos saquinhos e distribuía para geral.

na volta do colégio, costumávamos juntar a meninada e ir para a porta do comércio, fazer barulho e exigir balinhas.

eu criava versos e a molecada os repetia, numa espécie de cordel infantil, os poemas de duplo sentido constrangiam os comerciantes; quem não dava bala ficava com fama de pão-duro e inimigo das crianças.

sempre conseguíamos o que queríamos.

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embora muita gente fizesse doação de bom coração, os comerciantes só o faziam na base da chantagem e da ameaça.

mas também tinha as distribuições domésticas.

muitos vizinhos faziam promessas aos santos e as pagava ofertando quitutes para as crianças.

alguns serviam um lanchinho com bolo e suco.

nunca pegamos doces na igreja católica, o que me fazia crer que era uma fraude aqueles santos nos sacos.

afinal de contas, os tais irmãos católicos eram quimbandas, desses curandeiros de aldeia, que curavam com uma mão e com a outra enfiavam jesus goela abaixo dos romanos.

deocleciano mandou matá-los.

já nos centros de macumba, como eram chamados à época, a distribuição de doces era às fartas.

no dia 27, de banho tomado, eu e meus irmãos acorríamos à porta dos terreiros, onde nos juntávamos a outras crianças e entrávamos nas longas filas para receber doces.

a nossa maior alegria era receber os doces nas casas de santo, lá também tinha pipoca, batuques, vatapás e carurus.

o curioso era que, ao invés dos jovens brancos que apareciam na gravura dos sacos, dentro dos terreiros tinha dois moleques pretos cercados de velas coloridas e sortidos de doces à sua volta.

minha mãe era filha de santo, e foi ela quem nos falou que o festejo era em homenagem aos ibejis e tentou nos explicar esse lance de sincretismo, que a gente entendia também como uma fraude.

os erês sempre me fascinaram e trago dentro de mim essa criança peralta sempre viva.

certa vez, meu irmão comeu doces de um despacho que encontrou em uma encruzilhada, embora minha mãe sempre tivesse proibido essa prática.

o coitado ficou com a boca toda ferida.

pra curar o feitiço, mamãe fez um trabalho inusitado: forrou o chão da sala de casa com um lençol branco, colocou em volta seis cachorros com seis pratinhos de comida, meu irmão sentou-se com eles, caninamente, como um sétimo cão.

ogãs batucavam, uma senhora gorda salpicava água de cheiro nos animais, meu irmão incluso e, ao final, uma benzedeira, com ramos de ervas na mão, rezava uma ladainha com meu irmão de joelhos à sua frente.

na manhã seguinte, a boca do menino havia sido curada milagrosamente.

minha mãe migrou para o vale do amanhecer, quando a tia neiva ainda era viva, e a tradição do cosme e damião minguou com o passar dos anos.

era doce a minha infância. nessa época, o verdadeiro dia das crianças era o dia de são cosme e damião.

palavra da salvação.

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Publicação de: Viomundo

Lunes Senes

Colaborador Convidado

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