Explode o número de moradores de rua no Brasil
Foto: Fernando Frazão
O cenário se repete em inúmeras cidades brasileiras, sobretudo nas capitais: são centenas de barracas, enfileiradas em largas avenidas, debaixo de marquises, túneis, viadutos. Famílias inteiras, com crianças, estão vivendo nas ruas. A população em situação de rua no Brasil não apenas cresceu em ritmo avassalador com a crise econômica e social do país em meio à pandemia, nos últimos dois anos, mas também mudou drasticamente de perfil. De acordo com pesquisas acadêmicas recentes e informações do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR), as mulheres, e consequentemente crianças, passaram a ser um contingente bastante expressivo dessa população.
O único dado oficial mais recente, mas que ainda se trata de uma projeção, foi divulgado em março de 2020 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea): 221.869 brasileiros viviam nas ruas naquele ano, o equivalente a cerca de 0,1% da população total do país. Para o MNPR, cerca de meio milhão de brasileiros podem estar morando nas ruas hoje, especialmente por falta de condições financeiras para pagar moradia.
“A população de rua é um gráfico crescente desde sempre. Não conseguimos perceber, em nenhum momento da história, a diminuição das pessoas em situação de rua, porque elas sempre foram invisíveis para a política nacional. Tanto é que ainda nem temos uma contagem dessa população pelo IBGE. Isso está previsto agora, mas vai ser uma contagem parcial, porque vão fazer contagem de moradias precárias, barracas, etc. Pessoas que dormem em papelão, em marquises, não deverão ser contabilizadas”, prevê Darcy Costa, ex-morador de rua e hoje secretário nacional do MNPR.
Segundo Costa, “famílias inteiras estão indo para a rua no Brasil”, com aumento preocupante do volume de crianças e mulheres nessa situação. Devido a uma grande articulação política do movimento, o Congresso Nacional assumiu o compromisso de criar um Observatório Nacional da População de Rua, mas o projeto ainda não saiu do papel.
“É importante ressaltar que 1/3 dessa população, especialmente no Rio de Janeiro e em São Paulo, está na rua a partir da covid-19. São trabalhadores que já estavam em situação precária e que, com a crise sanitária, econômica e social ampla, perderam a sua rede de proteção social. Eles passam a não ter outro recurso, a não ser a rua. Esse perfil é o sujeito que era garçom, carregador, perdeu o trabalho, não pode mais pagar aluguel e vai com a família toda para a rua”, explica Marcelo Pedra, doutor em saúde coletiva e pesquisador do Núcleo de População em Situação de Rua da Fiocruz.
Pedra, psicólogo sanitarista que dedicou seu doutorado ao trabalho dos consultórios de rua no Brasil –hoje são 171 equipes, cada uma com capacidade de atendimento de mil pessoas na rua–, coletou dados alarmantes sobre o crescimento de mulheres nas ruas. Se em 2008 elas eram 12% da população de rua, agora, segundo o pesquisador, são ao menos 35%, isso considerando dados subestimados de 2020, com base em pessoas que têm cadastro no Sistema Único de Saúde (SUS).
“É bastante provável que esse número seja bem maior”, afirmou à DW Brasil. O psicólogo explica que certamente esse número é subnotificado, pois há uma enorme invisibilidade da população de rua. Houve pressão do MNPR e de congressistas –em 2020 foi criada a Frente Parlamentar em Defesa dos Direitos da População em Situação de Rua, presidida pela deputada Erika Kokay (PT-DF)– para que o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) incluísse, no censo de 2022, dados sobre a população em situação de rua. O censo deveria ter sido feito em 2020, mas foi adiado devido à pandemia.
“Historicamente, a operação censitária no país consiste não só no recenseamento da população, mas também dos domicílios onde essa população habita. Com esse entendimento, o IBGE não apura ‘população em situação de rua’ na sua integralidade. Sensível e compreendendo o fenômeno da exclusão habitacional na urbanidade brasileira, o IBGE buscará no Censo Demográfico 2022 melhorar a caracterização da população em situação de precariedade habitacional”, informou à DW Brasil a coordenação de comunicação do IBGE.
Os técnicos do instituto explicaram que, pela nova metodologia o censo vai identificar as pessoas que vivem nas ruas nas seguintes situações: em tendas ou barracas de lona, plástico ou tecido; nos logradouros públicos, construções de tapume, lata, zinco, tijolo ou outros materiais em calçadas, praças ou viadutos; em cama, colchão ou saco de dormir dentro de um estabelecimento; em estruturas não residenciais degradadas ou inacabadas (fábricas, galpões, prédios de escritório); em veículos (carros, caminhões, trailers, barcos); em abrigos naturais e outras estruturas improvisadas (vagão, gruta, cocheira, ruínas de construções não residenciais, paiol).
Em 2009, ainda no segundo mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), foi publicado um decreto instituindo a Política Nacional para a População em Situação de Rua e o Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento (Ciamp-Rua). À época, os dados governamentais apontavam a existência de aproximadamente 32 mil pessoas vivendo nas ruas em todo o país. A ideia era que municípios e Estados criassem comitês intersetoriais para atender a população de rua com políticas públicas diversas.
Ao tomar posse em 2019, Jair Bolsonaro (PL) desfez vários conselhos de representação popular, entre eles o Ciamp-Rua. Coube ao vice-presidente Hamilton Mourão assinar um novo decreto, em junho do mesmo ano, durante ausência de Bolsonaro do país, recriando o comitê da população de rua. O colegiado passou a ser um órgão consultivo do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, coordenado pela ministra Damares Alves. Segundo Darcy Costa, do MNPR, o colegiado foi recriado com novo formato, menos fortalecido, além de ser apenas consultivo, não deliberativo. Houve, ainda, letargia para eleger os membros do Ciamp-Rua, e as reuniões só foram retomadas de fato em 2021.
Segundo ele, o movimento da população de rua considera que criar a política nacional por decreto é frágil, e por isso há uma articulação para pressionar o Congresso Nacional a aprovar um projeto de lei que tramita no Legislativo desde 2016 (projeto de lei 5740/16).
“A gente acredita que a forma de se resolver a situação da população de rua é por meio de um programa de governo, uma politica de Estado, de moradia social em escala. É nisso que a gente acredita, e é nisso em que estamos trabalhando. Independente da troca de governo, que isso possa se garantir, e se resolver a habitação para essas pessoas com programas de moradias sociais”, explica Costa.
Procurado pela reportagem da DW Brasil para fornecer esclarecimentos sobre políticas públicas para a população em situação de rua, o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos informou que responderia a perguntas por escrito no dia 4 de março, após o feriado de Carnaval. No entanto, não as enviou até o fechamento desta reportagem.
De 2012 a 2016, Darcy Costa, que era corretor de imóveis, viveu nas ruas. Hoje, aos 55 anos, retomou o relacionamento com os filhos e está construindo uma nova família, com outra companheira. “A saída da rua é muito mais uma exceção do que regra”, admite o atual secretário nacional do MNPR.
“Dormíamos embriagados, para o sono vir logo. É a depressão na hora de dormir, e a angústia de manhã, ao acordar. Você olha, vê as pessoas passando, indo trabalhar, e pra gente que vive na rua parece que o tempo parou e que estamos dentro de uma realidade que não tem saída. É uma sensação horrível”, desabafa Costa. Ao conhecer o movimento de rua, em 2013, ele começou, aos poucos, a reescrever uma nova história.
O mesmo aconteceu com Vanilson Torres, que hoje representa o MNPR no Conselho Nacional de Saúde. Dos 12 anos de idade aos 41 ele viveu nas ruas. “Se não fosse o movimento, hoje eu não estaria vivo.” Vanilson, também poeta de Cordel, que vive em Natal, tem hoje 49 anos e é um dos mais articulados líderes do MNPR.
“Neste governo Bolsonaro, negacionista, responsável por um número expressivo de mortes na pandemia, não podemos ter nenhuma perspectiva de mudanças para a população de rua, pois o Brasil está de volta à fila do osso”, disse, referindo-se ao aumento também da fome no país.
Na opinião de Costa, “a forma de se resolver a situação da população de rua é criar um programa de governo, uma política de Estado, de moradia social em escala”. “É nisso que a gente acredita, e é para isso que estamos trabalhando. Independente da troca de governo, que possa se garantir, e se resolver a habitação para essas pessoas com programas de moradias sociais.”
Ele afirma que o atual modelo de atendimento da população de rua tem enormes burocracias e é semelhante a uma prisão, sem criar oportunidades de resgates pessoais dos cidadãos –isso sem falar na insalubridade e péssimas condições de higiene de abrigos.
O modelo assegura a “sobrevivência” do indivíduo, sobretudo garantindo alguma alimentação aponta. “Mas essas pessoas sobrevivem em situação de miséria, são atendidas com políticas intersetoriais nesta situação de rua e de miséria. Elas precisam estar morando em algum lugar, precisam ter direito à privacidade, para que possam se organizar de alguma forma. São pessoas que carregam as suas casas nas costas, em sacos, e nunca se organizam.”
O MNPR aposta no movimento Moradia Primeiro (Housing First, importado dos Estados Unidos), que oferece uma habitação sem burocracia. Em algumas cidades do país, como Curitiba, há projetos-piloto. E a frente parlamentar em defesa da população de rua aprovou uma emenda de R$ 7 milhões para o programa ser desenvolvido no Distrito Federal.
“Demos pequenos passos na pandemia, mas de grande significado para a população de rua. Esperamos que no próximo governo a gente possa ampliar esses direitos, que cheguem de forma global nesta demanda enorme que o Brasil tem hoje. Precisamos resolver isso”, afirma Costa, sem esperança de que algo avance neste ano eleitoral.
Em agosto do ano passado a ministra Damares Alves assinou uma portaria (Nº 2.927) instituindo o Programa Moradia Primeiro, mas para o MNPR a concessão de moradias “temporárias” é um erro. Além disso, o programa pouco avançou além das experiências piloto no país e o orçamento é ínfimo.
Quanto mais tempo uma pessoa vive em situação de rua, mais complexa será a sua reinserção na rede de assistência do setor público, explica o pesquisador Marcelo Pedra, da Fiocruz. É por isso que ele alerta para uma ação governamental mais célere, que possa, num primeiro momento, resgatar essas famílias, mulheres e crianças em situação de extrema vulnerabilidade.
“Esse novo contingente de pessoas que está agora nas ruas têm características mais conectadas com o que é ofertado pelas politicas públicas hoje: se conecta mais rapidamente a abrigos, ofertas de emprego que acontecem pela via das políticas públicas. Quem está a menos tempo na rua consegue se organizar mais rapidamente para acessar esses direitos. Isso não quer dizer de maneira nenhuma que é para se esquecer pessoas que estão mais tempo na rua”, explica Pedra.
A questão crucial, explica, é que as pessoas há décadas nas ruas criam estratégias de sobrevivência e se organizam de maneiras fora do sistema formal. As políticas públicas, o SUS e a rede de assistência social, diz ele, precisam ter ofertas diferentes para pessoas com perfis diferentes.
“Ninguém faz gestão do que não consegue quantificar. A primeira coisa é produzir conhecimento, é o censo. Temos urgência deste censo, e a população de rua precisa ser incluída de maneira geral. É a primeira coisa”, afirma Pedra.
Além disso, outro passo emergencial para minimizar o sofrimento das pessoas nas ruas é ouvir, “da maneira mais célere possível”, um amplo conjunto de atores com conhecimento da situação da população de rua para desenhar novas políticas públicas.
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