Negacionismo contra vacina impera na PM paulista
Henrique Nunes*, 45, é investigador da Polícia Civil de São Paulo desde 2018. Trabalha numa delegacia de um município vizinho à capital, na Região Metropolitana. No início de outubro de 2021, pegou covid-19 e passou uma semana com febre, dor de cabeça e sem paladar. Lembra que não precisou de hospital — “não foi nada sério”, conta. Àquela altura, agentes de segurança pública do estado já haviam tomado a segunda dose da vacina contra a doença, exceto Nunes, que escolheu não se imunizar.
“Não acredito que ela [a vacina] sirva. O governo não pode obrigar ninguém a tomá-la”, reclama. No início de fevereiro, as corregedorias das polícias civil e militar de São Paulo iniciaram uma apuração preliminar para analisar o caso de 1.500 agentes que, como Henrique Nunes, até agora não se vacinaram contra covid-19. Eles representam 1,4% do efetivo total das duas corporações, segundo nota da Secretaria Estadual de Segurança Pública enviada ao TAB.
“O governo quer nos obrigar. Não vamos tomar a vacina. Toma quem quer”, reforça o investigador, que não quis ser identificado na reportagem por medo, segundo ele, de sofrer “perseguição” no trabalho. “Quando a secretaria sabe que a gente deu entrevista, transfere de lotação”, conta, explicando que uma possível retaliação seria a mudança de delegacia à qual está ligado. ‘O governador João Doria é autoritário.” Nunes afirma que avisou seu chefe direto sobre a decisão de não se vacinar e que não recebeu qualquer advertência por isso.
Em 4 de janeiro, o governo Doria publicou decreto no Diário Oficial exigindo o comprovante de vacinação dos 570 mil servidores de todas as áreas e secretarias. Eles tinham cinco dias para enviar aos seus respectivos órgãos o documento comprobatório ou o atestado de contraindicação médica.
Uma reportagem da Folha de S.Paulo revelou que entre os 1.500 casos sob investigação, há cerca de 700 policiais que não acessaram o site para envio dos documentos exigidos e 160 tiveram problemas no preenchimento dos dados. Outras 140 pessoas apresentaram atestados que estão sob avaliação — será analisada a competência dos médicos que forneceram os laudos.
Entre as possíveis punições estão a impossibilidade de entrar no ambiente de trabalho — com desconto salarial — e até demissão.
Um levantamento feito pela Ouvidoria da Polícia de São Paulo mostrou que, em 2020, 43 policiais morreram em decorrência da covid-19 — 19 militares, 22 civis e mais três técnico-científicos. Quase o dobro das 22 mortes em confronto, no mesmo período.
Questão de escolha?
Um dos argumentos de defesa de parte dos policiais que são alvo da apuração administrativa é de que eles não são contra vacinas, mas consideram a da covid-19 um “experimento”. “Todos aí são feitos de cobaia e rato de laboratório”, afirma o advogado Luiz Roberto Santos. Ele representa alguns dos agentes não vacinados.
Todos os imunizantes utilizados no Brasil, porém, foram avaliados e aprovados pela equipe técnica da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). O órgão do governo federal é responsável por regulamentar a produção e o uso de medicamentos e vacinas no país.
Santos justifica que servidores não querem se imunizar devido a casos de mortes relacionados à vacinação. “Salvo engano, na China ou no Japão, morreram 25 pessoas [depois da vacinação]. No Brasil, o que a gente vê é que estão morrendo pessoas, outras desenvolvendo câncer, mas não se mostra isso”, afirma ele, sem apresentar as fontes onde obteve essas informações. “Aliás, vendem esse produto de forma contrária a dos próprios fabricantes, dizendo que imuniza 100%.”
Não há qualquer comprovação, junto ao Ministério da Saúde, de morte causada pela vacina de covid-19 no país. Também são desconhecidos os exemplos citados pelo advogado.
O grupo de policiais antivacina pretende manter a decisão de não se imunizar e deve recorrer à Justiça se for de fato penalizado. Segundo Luiz Roberto Santos, em “eventual investigação por parte do governador [João Doria] ou da Secretaria [de Segurança Pública do Estado], esteja ou não o policial amparado com atestado médico, o remédio que existe é mandado de segurança contra o governo junto ao tribunal”.
Policiais não vacinados representam 1,4% do contingente de segurança pública do estado – Governo do Estado de São Paulo – Governo do Estado de São Paulo
Policiais não vacinados representam 1,4% do contingente de segurança pública do estado – Governo do Estado de São Paulo – Governo do Estado de São Paulo
‘Terrorismo psicológico’
Na casa do policial militar Alberto Pereira*, 38, ninguém tomou vacina. Nem ele nem a esposa de 34 anos. “Nós convivemos com pessoas que tiveram covid-19, mas nós não tivemos. Esse tempo todo, ninguém aqui teve a doença. Acredito que temos imunidade. Por isso não tomamos a vacina.”
Para Pereira, a escolha por não se vacinar é política. “Não concordo com o governador, porque ele usou o coronavírus para ganhar voto”, afirma. O cabo atua na zona norte da capital e faz parte de um grupo de WhatsApp com mais “uns 20 colegas” contrários à imunização. Todos estão na mira da apuração administrativa.
“Estão fazendo pressão no contingente, enquanto deviam valorizar o trabalho da gente. Nós estamos todo dia no combate ao crime, com compromisso”, reclama o policial. Segundo ele, há servidores defendendo uma paralisação em protesto contra o governo.
A investigação aberta pelas corregedorias das polícias de São Paulo é “terrorismo psicológico e mental”, na opinião da presidente do Sindpesp (Sindicato dos Delegados de São Paulo), Raquel Kobashi. “Em um primeiro momento, enviamos um ofício ao secretário de Segurança Pública solicitando informações e alertando que tomaremos as medidas judiciais necessárias, caso algum policial tenha seus direitos individuais violados”, afirma.
Apesar de ser “totalmente favorável à vacinação”, Kobashi explica que o sindicato se opõe “ao uso de força” para “a aplicação compulsória” da ordem entre os policiais, conforme decisão do STF (Superior Tribunal Federal) de dezembro de 2020.
Em nota, o presidente do Sindicato dos Investigadores de Polícia de São Paulo, João Batista Rebouças da Silva Neto, chamou de “hipocrisia” o processo administrativo aberto. “É necessário que o governo crie outros meios de conscientização dos funcionários que não seja na base da imposição. Estamos em um país democrático e essa, definitivamente, não é a melhor forma [de agir]”, escreveu.
TAB questionou a Secretaria da Segurança Pública sobre o prazo para concluir a investigação, como ela será feita, quais os números de não vacinados em cada polícia e cargo. A pasta respondeu somente que “já prestou todas as informações sobre o tema à Controladoria Geral do Estado”. Em relação às possíveis fraudes dos atestados médicos, o Cremesp (Conselho de Medicina de São Paulo) disse que foi notificado oficialmente sobre o caso e “poderá investigar o referido assunto quando formalmente acionado”.
“Sobre possíveis irregularidades em atestados, caso sejam comprovadas após rigorosa investigação, o profissional responderá, por exemplo, por infração médica e poderá sofrer diversas sanções, como desde a suspensão do exercício profissional parcial até cassação do exercício profissional”, acrescentou, em nota.
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