Eliara Santana: A Folha, o mercado, a “gastança” e a imprensa no Lula 3.0

Por Eliara Santana*

O editorial da Folha de S. Paulo de hoje (19/12) – a duas semanas da posse de Lula para seu terceiro mandato como presidente da República – mostra de um jeito cristalino o domínio do capital financeiro, dos bancos, do deus mercado sobre o jornalismo.

O terceiro mandato de Lula, ou o Lula 3.0, será, em linhas bem gerais, uma ação super orquestrada para tentar arrumar a terra arrasada deixada por Bolsonaro.

Isso, por si só, já deveria ser motivo mais que suficiente para uma baixada de armas do jornal imprensa. Mas não é que começamos a ver. A trégua durou apenas o tempo para a derrota de Jair.

Essa guinada da Folha já se faz perceber por vários movimentos, e quero aqui destacar dois bastante simbólicos.

Primeiro, a recategorização ou ressignificação feita pelo jornal de repente, não mais que de repente, da PEC para garantir o Bolsa Família fora do teto de gastos.

Da noite para o dia, o que era “PEC da Transição” – louvada, necessária etc.– se transformou no jornal em “PEC da Gastança”, obviamente com outro significado e que dispensa comentários.

O outro movimento foi a demissão de vozes fundamentais no espectro progressista do jornalismo, começando pelo gigante Janio de Freitas, seguido de Marilene Felinto e Gregório Duvivier.

O jornal alegou cortes de despesas. Mas creio que é, de fato, um ato intencional para silenciar vozes fortes e dissonantes da Faria Lima.

E agora, taxativamente, o editorial de hoje, cujo título é “Retrocesso à vista”. No bigode, a definição atualizada de “retrocesso”: “Proposta de cunho ideológico que altera marco do saneamento pode abalar setor de infraestrutura”.

Prossegue o texto:

“Não é apenas na compatibilização de boa gestão orçamentária com responsabilidade social que o governo eleito emite sinais confusos. Também na área de infraestrutura a equipe de transição de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) dá mostras de subordinação do interesse da população a cacoetes ideológicos. Preocupa o diagnóstico a respeito do saneamento, que pede a revogação de parte do marco regulatório aprovado em 2020”.

Com chamada na capa, o editorial assinala, sem qualquer dúvida, que o governo ainda não empossado ja está “confuso” e que não sabe gerir as questões econômicas e de infraestrutura, pois toca tudo com “cacoetes ideológicos”.

Por fim, vaticina: “O novo governo deve dar continuidade às parcerias público-privadas e ao aperfeiçoamento institucional. Mudar o marco do saneamento por ideologia e corporativismo será um grave retrocesso”.

Muito bem. O saneamento básico é uma questão delicadíssima no Brasil.

Hoje, ano da graça do Senhor de 2022, cerca de 35 milhões de pessoas no país vivem sem água tratada, e cerca de 100 milhões não têm acesso à coleta de esgoto. Esses dados são do Ranking do Saneamento, publicado pelo Instituto Trata Brasil em março (fonte: Agência Senado).

Num resumo brevíssimo, essa realidade implica, por exemplo, que esses cidadãos brasileiros –homens, mulheres e crianças – ficam expostos a toda sorte de doenças numa vida muito precária.

O saneamento básico no Brasil é um direito garantido pela Constituição Federal. Portanto, deve ser uma política de Estado, uma política pública da maior importância.

Por outro lado, as ações que ele demanda são objetos de desejo da iniciativa privada, que quer estabelecer “parcerias” com os governos e oferecer um serviço de quinta categoria cobrando uma fortuna por ele.

Portanto, o editorial da Folha, depois da demissão de Janio e da recategorização da PEC, sinaliza claramente a adesão total às prerrogativas e interesses do mercado, com críticas e imposições ao futuro governo, numa linha que nos possibilita antever o relacionamento da imprensa – ou parte dela – com o Lula 3.0.

Hoje, o que estamos vendo é um domínio crescente do sistema financeiro e do agronegócio sobre as empresas de comunicação e sobre o jornalismo – e já discuti bastante a implicação disso tudo, em palestras, aulas e artigos.

Ou seja, o deus Mercado domina e define as pautas, o tom a ser dado e quem está autorizado a falar sobre elas.

Depois da terra arrasada, estamos começando um novo governo para tentar a reconstrução nacional.

E essa reconstrução passa por um entendimento amplo sobre a comunicação e a mídia e pelo entendimento de que a bandeira branca levantada timidamente na eleição para Lula vai ser arriada – o deus Mercado, que está fazendo das empresas midiáticas brasileiras porta-vozes potentes, não quer o pobre no orçamento e não quer um jornalismo com vozes dissonantes. Perdemos todos.

*Eliara Santana é jornalista, doutora em Linguística e Língua Portuguesa e pesquisadora do Observatório das Eleições e da Democracia e pesquisadora colaboradora do IEL/Unicamp. Coordenou o curso “Desinformação, Letramento Midiático e Democracia no Brasil”, promovido pela Associação Brasileira de Imprensa (ABI), e foi co-coordenadora do I Ciclo de Letramento Midiático do PPGL da Universidade Federal do Rio Grande.

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Publicação de: Viomundo

Lunes Senes

Colaborador Convidado

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