Dalva Garcia: Prometeu e Epimeteu, a necessidade de prever e a nossa frágil democracia
Sobre a necessidade de prever: Prometeu e Epimeteu
Por Dalva Garcia*
O episódio de jogadores da seleção pedindo carne com pó de ouro em restaurante me conduziu a relembrar as grandes narrativas da mitologia grega.
As atribulações do trabalho de uma professora de educação básica e universitária no final de semestre sopraram para longe o tempo necessário à rememoração.
Todavia, os acontecimentos da tarde de domingo de 08/01/2023, trouxeram-me à tona uma dessas narrativas intrigantes que podem nos convidar à reflexão.
Trata-se do famoso mito de Prometeu, imortalizado pela tragédia grega. Prometeu e Epimeteu são filhos de um Titã.
Prometeu pensa antes de agir, consegue com astúcia prever os acontecimentos. Seu irmão, Epimeteu, o desprevenido se caracteriza pela ação que dispensa a reflexão.
Na guerra de Titãs, Prometeu prevê a vitória de Zeus, mas diferente dos demais que logo tomam imediatamente partido pró ou contra Cronos – o tempo que devora seus filhos, Prometeu reafirma seu comprometimento com o senhor do Olimpo após sua vitória.
O fim da guerra restabelece entre os deuses um período de paz que leva os deuses ao tédio. Era preciso criar algo extraordinário.
Hefesto, o deus da forja, é chamado para mediante os elementos fundamentais da alquimia, em assembleia com os 12 deuses do Olimpo, para povoar os deuses com a companhia de diferentes seres vivos. Dentre eles: homens forjados a imagem e semelhança dos deuses.
Zeus delega aos irmãos Prometeu e Epimeteu a tarefa de distribuir as características necessárias à sobrevivência dos seres vivos: força, velocidade, capacidade de se ocultar ou transmutar, sobreviver, enfim.
Embora cauteloso, Prometeu cede ao pedido do irmão Epimeteu a tarefa concedida pelo senhor do Olimpo.
A empolgação e ansiedade de Epimeteu conduz à realização de sua tarefa com rapidez e eficácia, salvo por um pequeno detalhe. Epimeteu se esqueceu dos homens, imagem e semelhança dos deuses.
Ironicamente, Platão, retoma o mito e dá aos homens a política como forma de sobrevivência.
O relato de Platão merece outro escrito… Por hora, basta a narrativa.
Eis que as criaturas perfeitas forjadas por Hefesto estão indefesas.
Com ajuda de Athenas, deusa da sabedoria, Prometeu pede a ajuda de Zeus. O fogo para proteção dos homens estará disponível na copa das árvores, bem como o trigo nascerá sem semeadura.
Zeus concede o benefício aos seres humanos desvalidos graças ao suposto engano de Epimeteu.
Talvez, diria eu, engano gerado pela ansiedade de servir com eficácia ao seu senhor. Homens e deuses convivem em harmonia: sem dificuldade, mas também sem novidades.
Como senhor, Zeus, ordenador do “Estado de Direito”, resolve reordenar tudo. Finalmente, escalonar os lugares segundo a importância de deuses e humanos.
No topo, Zeus, abaixo os deuses, e bem abaixo os homens agora separados do seu criador, embora tutelados por eles.
A hora da partilha entre homens e deuses seria necessária e instaurada num ritual encomendado por Zeus.
Um boi deveria ser sacrificado para um banquete. Suas partes divididas e as melhores e mais apetitosas escolhidas pelo criador e oferecidas aos deuses. As demais: aos homens, meras criaturas.
Prometeu, o previdente, é o encarregado da preparação do churrasquinho sagrado. Ele aceita a tarefa com uma convicção: não aceita as novas regras.
Por essa razão separa os ossos não comestíveis e os besunta com gordura atraente e apetitosa. As carnes mais saborosas as cobre de ossos e peles repugnantes.
Depois de tudo preparado, cabe a Zeus a escolha e, a consecutiva, partilha do banquete. Zeus escolhe o que lhe parece mais apetitoso e atraente.
Quando descobre que por baixo da beleza da carne estava o osso duro escondido, se enfurece. Retira dos homens o fogo e a alimentação sem semeadura.
Mais uma vez com o apoio de Athenas, Prometeu adentra na morada de Zeus e rouba uma chama do fogo sagrado do Olimpo que nunca se apaga e o entrega aos pobres seres humanos sem luz à noite e sem poder preparar os alimentos.
A discrição de Prometeu é prudente, em silêncio pega uma fagulha do fogo e o conduz no oco de um simples fungo.
Mas Zeus descobre que não pode mais tutelar suas criaturas…
A ira de Zeus é assombrosa. Aos homens, Zeus encomenda Pandora, como pagamento do churrasco preparado por Prometeu: linda, mas ardilosa e astuta.
Antes de enviá-la aos homens ela é entregue ao desprevenido Epimeteu.
Advertido pelo irmão Prometeu para não aceitar nada sem analisar, Epimeteu não resiste aos encantos da moça. A recebe de braços abertos.
A moça traz consigo uma caixa que não deveria ser aberta em hipótese alguma. Nela estaria os malefícios que assombram deuses e mortais.
Assim que sai do leito de Epimeteu, a linda Pandora abre a caixa. Os males se espalham e se misturam com os benefícios.
Não é possível distinguir o bem e o mal, assim como Zeus não distinguiu o que parecia o melhor na sua partilha com suas criaturas.
O trabalho e a dor, o medo e o amor se mesclam nisso que é vida humana.
Prometeu é acorrentado para que uma águia devorasse seu fígado durante o dia e regenerado à noite. Seu fígado, símbolo das iguarias que tentou oferecer aos homens.
Prometeu não reclama, sabe prever e, segundo, alguns relatos, é liberto por Hércules e cumpre a promessa de avisar seu senhor dos perigos que ameaçam seu poder.
Mas é preciso lembrar que graças ao artifício de Hermes, o deus mensageiro, no fundo falso da caixa de Pandora reside a esperança que continua na caixa como bálsamo de dores e desilusões humanas.
Esperança ardil de outro personagem que sabe prever. Hermes, que sabe o valor de decifrar que conquistou com o irmão Apolo.
Por fim, a narrativa é metáfora, por isso guarda uma semente que precisa ser interpretada.
Como na canção de Gilberto Gil “Metáfora”: na lata do poeta tudo e nada cabe. Pois ao poeta cabe fazer caber o incabível.
Mas vale dizer que polvilhar churrasco com pó de ouro ou lustrar os pés dos móveis não é suficiente.
É preciso prever, analisar, refletir…
Nenhuma distinção é tão clara, nem para o senhor do Olimpo, ordenador Zeus. Muito menos para nós mortais, confusos entre o parecer e o ser nesta frágil democracia.
*Dalva Garcia é professora de Filosofia na rede pública de São Paulo.
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Publicação de: Viomundo