Élida Graziane: Fogem à tributação, enquanto financiam atentados contra a democracia
Fogem à tributação, enquanto financiam atentados contra a democracia
Por Élida Graziane Pinto*, Consultor Jurídico
Esta é minha primeira coluna de 2023. Houvesse normalidade institucional em nosso país, eu cumpriria o planejamento de comentar a entrevista do novo secretário do Tesouro Nacional, Rogério Ceron, concedida à Folha.
Todavia não há como manter o debate estritamente contido nas finanças públicas, quando a realidade circundante impõe o diagnóstico de conflitos estruturais que colocam em risco a própria democracia brasileira.
Neste último domingo, assistimos a atos que — na forma do artigo 359-M do Código Penal brasileiro, acrescido pela Lei 14.197, de 1º de setembro de 2021 — tentaram, por meio de violência ou grave ameaça, depor o governo legitimamente constituído.
Dada a afronta aos poderes constitucionais, depredando fática e simbolicamente suas instalações, também cabe aventar a tentativa de abolir o Estado Democrático de Direito (artigo 359-L do Código Penal).
Em ambos os casos, a suposta finalidade última seria buscar obter intervenção militar, destituição dos ministros do Supremo Tribunal Federal e desconsideração do resultado das eleições nacionais de outubro de 2022.
É preciso, desse modo, reconhecer e francamente chamar pelo nome o que ocorreu na Praça dos Três Poderes, em Brasília, neste 8 de janeiro de 2023: o Brasil assistiu a atos que perfazem, em tese, os crimes de abolição violenta do Estado Democrático de Direito e golpe de Estado.
As instâncias competentes devem apurar as condutas e punir os responsáveis, mediante estrita obediência ao devido processo, sobretudo buscando alcançar seus mentores e financiadores.
Em igual medida, importa reconhecer, tal como feito pelo ministro Gilmar Mendes, que “a maior responsabilidade pelos atos de hoje [do dia 08/01] (responsabilidade inclusive criminal) recai sobre as autoridades constituídas que, há tempos, deveriam — por dever de ofício — atuar para combater esse neofascismo tupiniquim”.
Muitos, de fato, omitiram-se e devem ser chamados a responder pela eventual prevaricação em que incorreram.
Não chegamos, todavia, ao presente estágio de erosão político-institucional e grave esfacelamento social sem uma longa série histórica de tensões e fraturas mal cicatrizadas.
Ao longo da última década, a sobrevivência do pacto civilizatório de 1988 tem sido explicitamente colocada em xeque, de modo que se tornaram cada vez mais recorrentes pleitos por nova assembleia nacional constituinte e por intervenção militar.
Desde as manifestações de junho de 2013, a sociedade brasileira foi obrigada a enxergar e a tentar elaborar toda a sua brutal desigualdade escravocrata [1], que sempre fora tão ocultada e naturalizada sob várias camadas de cinismo acomodatício.
Obviamente o desvendamento da iniquidade econômica não é fenômeno exclusivo ou limitado à realidade brasileira.
A crise financeira internacional de 2008 se fez sentir no nosso território atrasadamente cinco anos depois.
Mas foi a pandemia da Covid-19 que acentuou e esgarçou a percepção do conflito distributivo: enquanto alguns bilionários fazem planos de turismo espacial em uma corrida de egos planetária e há fila para compra de iates no Brasil, milhões de cidadãos vulneráveis se acotovelam noutra fila tão ou mais infame: a dos ossos.
A fome de muitos é a antípoda da alienação fora de órbita de alguns poucos.
Thomas Piketty descreveu a realidade socialmente convulsiva dos nossos tempos, como equivalente à que antecedeu à Revolução Francesa:
“não existem países ricos sem países pobres: todos os enriquecimentos da história são o resultado de um sistema de divisão internacional do trabalho e de uso e por vezes exploração dos recursos naturais e humanos do planeta, como a industrialização durante o colonialismo e a escravidão.
A ideia de que tal país ou pessoa seja inteiramente responsável por sua riqueza e deveria mantê-la toda para si mesmo é uma construção intelectual nada convincente.
É preciso imaginar um sistema de repartição das riquezas procedentes das receitas fiscais dos atores econômicos mais prósperos.
Se pegássemos apenas uma pequena fração dos lucros das multinacionais e do patrimônio dos bilionários e os redistribuíssemos a todos os países, proporcionalmente à população desses países, os recursos para investir em educação e saúde seriam dez vezes maiores do que a suposta ajuda internacional, que na África é quatro vezes mais fraca do que os lucros das empresas ocidentais e chinesas.
Estamos criando um sistema que explodirá na nossa cara.
Estamos numa situação não muito diferente daquela que levou à Revolução Francesa: há uma fuga para a dívida pública que se explica porque não se consegue fazer as classes privilegiadas pagarem.
Na época era a nobreza que não queria pagar impostos. E como isso foi resolvido?
Com uma crise política, com os Estados Gerais, a Assembleia Nacional e o fim dos privilégios da nobreza. Agora, de uma forma ou de outra, terminará do mesmo jeito. […]
A revolução de que falo consiste em fazer com que as maiores fortunas contribuam.
Se se cria um sistema no qual você pode enriquecer usando a infraestrutura pública de um país, seu sistema educacional, seu sistema de saúde, e então, com o simples aperto de um botão, você pode transferir seus ativos para outra jurisdição sem que haja nada previsto para controlar isso, e depois você simplesmente pode deixar a conta para as classes média e popular que estão inertes e não podem sair do país … É um sistema insustentável.”
Piketty tem razão ao apontar que a desigualdade traz consigo um arranjo insustentável.
A despeito desse diagnóstico, quem tem estado na berlinda é a democracia em todo o mundo, exatamente porque não tem conseguido obrigar os mais ricos a pagarem tributos conforme sua capacidade contributiva.
Por trás desse paradoxo segue oculto o impasse sobre quem paga a conta da vida em sociedade e quem se escusa de arcar com os custos dos serviços públicos, porque se concebe em uma bolha separatista de serviços privados customizados para o seu bolso e suas excentricidades.
A tensão decorrente da fuga à tributação, denunciada por Piketty como um momento análogo ao período pré-Revolução Francesa, também se repete no Brasil.
Contudo, por aqui, a predação da Praça dos Três Poderes deste último domingo expressa muito mais a tentativa de uma revolução reacionária contra o pacto constitucional civilizatório de 1988.
No limite, se esses defensores de um capitalismo libertário, que prega a ausência total do Estado, pudessem implementar plenamente sua agenda predatória, provavelmente revogariam a Lei Áurea, a Consolidação da Legislação Trabalhista e a Constituição Federal.
Na origem desse conflito distributivo, precisamos apontar que a imensa maioria dos que se envolveram nos atos atentatórios contra o Estado Democrático de Direito almeja à redução do aparelho governamental e à revisão dos direitos sociais, porque se recusa a pagar tributos conforme sua capacidade contributiva.
Entre aqueles que financiaram ônibus, acampamentos, refeições e demais despesas de mobilização de milhares de indivíduos para afrontar os poderes constitucionais e para impugnar a alternância democrática de poder, certamente há pessoas físicas e jurídicas que não pagam tributos conforme seu patrimônio e renda, que se beneficiam de renúncias fiscais, gozam de parcelamentos tributários e questionam débitos administrativa e judicialmente de forma temporalmente indefinida.
Eis o contexto em que vale à pena trazer alguns excertos da citada entrevista do novo secretário do Tesouro Nacional, Rogério Ceron, concedida em 4 de janeiro à Folha:
“A receita líquida do governo federal deve ficar em torno de 18,7%, 18,8% do PIB em 2022. Para 2023, as renúncias tributárias feitas no ano passado derrubam 1,5 ponto percentual do PIB.
A receita líquida cai para 17,2% do PIB. Isso significa mais de R$ 100 bilhões renunciados sem lastro. É um grande impacto.
Você tirou a carga tributária que existia para custear as políticas públicas.
Se a redução for mantida no tempo, quebra o Estado brasileiro. É o mesmo que uma família perder parte importante da sua renda e ela ter aluguel e despesas que não têm como serem cortadas.
Se não conseguir outra fonte de renda, vai ter problema de superendividamento.
Há necessidade de rediscutir algumas dessas medidas. Muitas não tiveram amparo das áreas técnicas.
Elas tiveram seu caminho legal, mas não cumpriram o que está posto na LRF [Lei de Responsabilidade Fiscal], que é: a renúncia de receita precisa ter compensação. Isso não aconteceu.
[…] Não estamos falando de aumentar carga tributária, e sim de renúncia que reduz absurdamente, sem paralelo na história, a receita que está disponível para a sustentação do Estado.
Trata-se de discutir a manutenção da carga tributária que existia ao final de 2022.
[…] O Carf é o tribunal administrativo que julga os recursos de contribuintes contra autos de infração lavrados pela Receita Federal.
Em 2019, ele tinha em torno de R$ 600 bilhões aguardando julgamento. De lá para cá, passou para R$ 1,2 trilhão.
Enquanto esses créditos não forem julgados, não são exigíveis. Ter uma solução rápida para o Carf é essencial.
Estamos discutindo um cenário gravíssimo, um déficit de R$ 200 bilhões, sendo que nos últimos três anos temos [mais] R$ 600 bilhões no estoque tributário.
Que metade disso fosse de fato devido e metade não fosse, estamos falando de mais do que o necessário para cobrir todo o déficit do ano.”
Ceron explicita, de forma cristalina, a contradição nuclear da agenda de ajuste fiscal incidente exclusivamente sobre as despesas primárias no nosso país.
A inibição da arrecadação tributária compromete o custeio dos serviços públicos essenciais e implica a opção pelo custeio mediante endividamento das despesas obrigatórias.
No núcleo da frágil democracia brasileira há um conflito distributivo mal equacionado, que tem sido ocultado pelo teto de despesas primárias, até porque a riqueza subtributada tem sido segura e muito bem remunerada na dívida pública.
A depredação física do Congresso Nacional, do Palácio do Planalto e do Supremo Tribunal Federal desnuda a profunda erosão democrática em que o Brasil se encontra e que já alcança a essência da própria Constituição.
Em termos simbólicos, o que Brasília assistiu neste 8 de janeiro equivale, em grande medida, à destruição empreendida no bojo do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias das promessas civilizatórias contidas no texto permanente da CF/1988.
Depredar prédios históricos que sustentam os pilares da nossa república mobiliza ideias que equivalem a erodir a possibilidade de efetividade fiscal de direitos sociais.
Provam-no as inúmeras alterações ao ADCT para manter a desvinculação de receitas da União e o teto, por meio de quase vinte emendas sucessivas e recorrentes que mitigaram o arranjo constitucional protetivo dos direitos sociais (a exemplo do orçamento da seguridade social, dos pisos em saúde e educação e das contribuições sociais).
Não deve nos surpreender a hipótese de vir a se apurar e comprovar posteriormente que aqueles que financiaram criminosamente os atos que atentaram contra as instituições democráticas, fizeram-no motivados, em última instância, pela racionalidade limítrofe de fuga à tributação.
Em ambos os casos, emerge a tentativa de defesa reacionária do status quo, que arbitra ganhadores e perdedores em uma sociedade tão incivilizada e desigual, ainda que isso custe nossa democracia e a sobrevivência da Constituição de 1988.
[1] A esse respeito, recomendo fortemente que ouçam o podcast do Projeto Querino.
*Élida Graziane Pinto é livre-docente em Direito Financeiro (USP), doutora em Direito Administrativo (UFMG), com estudos pós-doutorais em administração (FGV-RJ), procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora (FGV-SP).
Publicação de: Viomundo