Roberto Amaral: A extrema-direita ainda respira forte e não deve ser negligenciada
A extrema-direita ainda respira
Por Roberto Amaral*
As reflexões sobre o processo histórico republicano e a hora presente convencem-me de que o fato novo a ser considerado (para que a ele respondam o pensamento e a ação da esquerda) é a emergência de forte movimento de extrema-direita, que se afasta, na sua contundência e periculosidade, das experiências que dominaram o cenário político brasileiro do século passado.
Em recente debate, expostas estas ideias, foi-me objetado que o Brasil “sempre foi conservador e de direita”.
Como certificado desta afirmação foram lembrados o integralismo, incidente na primeira metade do século passado, e o udeno-lacerdismo, já depois da reconstitucionalização de 1946.
A contestação, porém, desconsidera as distinções entre direita e extrema-direita, ademais de conter, em si, um elemento conservador: quando naturaliza o processo reacionário, está admitindo sua permanência.
O “sempre foi assim” (de direita) pode insinuar um “será sempre assim”, e se, desgraçadamente, será sempre assim, nada mais, ou muito pouco, resta ao agente social.
O integralismo, cujas bases doutrinárias Plínio Salgado colhera no discurso de Mussolini — nos anos 1930 o fascismo ascendia em todo o mundo, principalmente na Europa (Itália, Alemanha, Espanha e Portugal) e no Japão –, não logrou constituir-se em expectativa de poder entre nós, bloqueado que foi pela consolidação do Estado Novo (1937-1945) e, na sequência, pelo ingresso do Brasil na guerra contra o Eixo (ao lado dos EUA e da URSS), precedido e seguido de amplas mobilizações populares que assegurariam, como peças siamesas, o repúdio popular ao nazifascismo e a afirmação política e ideológica da democracia liberal, objetivada nas eleições presidenciais de 1945.
A partir daí, o integralismo se transforma em força política irrelevante.
Durante o Estado Novo, frustradas as aspirações de Plínio de fazer-se ministro da Educação de Vargas, os integralistas intentam o putsch de 1938 (assalto ao Palácio da Guanabara, onde residia o presidente), sendo aniquilados rapidamente, um indicativo de sua baixa penetração nas forças armadas, não obstante as simpatias de comandantes como Eurico Gaspar Dutra e Góes Monteiro, o general a quem se atribui a frase “quando a política entra no quartel por uma porta, a disciplina sai por outra”.
Organizados como partido político (PRP), os integralistas lançam a candidatura de Plínio Salgado nas eleições de 1955, obtendo desempenho inexpressivo.
No período constitucional-democrático que se segue a 1946 surge, na esteira do anti-varguismo, a UDN, que, inventada como negação do legado getulista e da ditadura do Estado Novo, elaborava o discurso da defesa da democracia ao tempo em que traficava o golpe de Estado nos quartéis.
Perdeu todas as eleições presidenciais que disputou, até encangar-se na candidatura de Jânio Quadros, cujo governo se frustraria na tentativa de golpe de 1961.
Seguem-se a vilegiatura do presidente renunciante em Londres e, derrotada nas ruas, a tentativa dos ministros militares de impedir a posse do vice-presidente João Goulart.
No cenário republicano nada que antecipasse o quadro político de mobilização popular reacionária que começa a se consolidar em 2013 para conhecer seu ápice na eleição de Bolsonaro (2018) e em seu governo, cujas características ideológicas e ação objetiva definem seu caráter protofascista que, a esta altura, dispensa demonstração.
Ao contrário, o histórico recente, desde a campanha das diretas-já, sugeria o avanço das forças progressistas.
Se a ditadura do Estado Novo se instala no bojo de um golpe de Estado, articulado por Vargas e operado pelos militares, tanto quanto a ditadura resulta do golpe militar que depôs João Goulart, o bolsonarismo chega ao palácio do planalto chancelado pela soberania popular, em pleito ao qual não se podem invocar restrições.
Este diferencial deve ser considerado. Seguindo a linha populista, procura o diálogo direto com as massas e governa como representante de uma aliança que reúne militares (responsáveis pelas decisões estratégicas), setores majoritários do grande capital e o atraso político, que lhe assegura tranquilidade no Congresso.
Os militares já não precisam das medidas de força dos atos institucionais da ditadura, pois contam com a associação do poder legislativo, liderado pelo “centrão” e pelo baixo-clero.
Após quatro anos de governo marcado pelo descalabro administrativo (a gestão da pandemia é tão-só um caso, ainda que paradigmático), inumeráveis e grosseiras tentativas de fraturar o processo democrático e uma derrota eleitoral em nada acachapante, a base popular do bolsonarismo dá preocupantes sinais de resiliência e crescimento.
Não foram triviais as condições segundo as quais se desenvolveu o pleito deste ano, e a análise de seus números mostra que o candidato derrotado não é um inimigo abatido.
As turbas açuladas pelo capitão e por oficiais superiores em postos de chefia, como o general comandante da 10ª Região Militar, indicam insubordinação e resistência às regras da convivência democrática.
Às tentativas de bloqueio das estradas, os acampamentos sediciosos e os piqueniques nas portas dos quartéis, se somam os desmandos recentemente levados a cabo por desordeiros em Brasília, como eco dos desesperados à diplomação de Lula.
Esses fatos são graves em si mesmos e pelo que revelam acerca das táticas que a extrema-direita se dispõe a pôr em prática para inviabilizar ou ao menos conturbar a mudança de governo.
Enquanto as hordas bolsonaristas tentam, até aqui em vão, incendiar as ruas, o presidente da Câmara dos Deputados mobiliza os recursos disponíveis, inclusive a chantagem, visando a atrasar a aprovação da PEC 32/22, sabidamente fundamental pelo menos para os dois primeiros anos do próximo mandato.
A objetiva tentativa da extrema-direita de acuar o futuro governo indica o caráter da oposição com a qual deve contar o presidente Lula, qualitativamente muito diversa daquela que conheceu em seus dois mandatos anteriores, quando ainda havia o confronto com a socialdemocracia paulista.
A resistência ao projeto protofascista de instalar uma ditadura constitucional levou à arquitetura daquela que certamente terá sido a mais larga frente ampla político-eleitoral conhecida na República, similar à aliança que se constituiu no movimento das diretas (1983-1984) e levou à implosão (1985) do colégio eleitoral montado pela ditadura agonizante para eleger seu delfim.
A chamada “Aliança democrática” derrotou Paulo Salim Maluf, candidato dos militares, elegeu Tancredo Neves, e os fados deram posse a José Sarney.
A aliança de 2022 articulou, em torno da inusitada dobradinha Lula-Alckmin, um arco político que se estendeu da direita à esquerda, passando por liberais e socialdemocratas; chegou mesmo a incorporar setores do grande capital, de que resultou a adesão de órgãos da grande imprensa.
Logramos vitória eleitoral assim partilhada, mas não podemos ignorar seus números, os das eleições presidenciais e os das eleições proporcionais e das majoritárias para o Senado, de que resultou o domínio, por quadros bolsonaristas, dentre outros, dos mais poderosos Estados da federação, como São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, e o controle do Congresso pelas bancadas que transitam da licenciosidade política (“Centrão”) à extrema-direita, sob o comando do atual presidente da Câmara, que se distingue do lamentável Eduardo Cunha apenas pela maior truculência.
Distanciando-se do integralismo e do udenismo, a extrema-direita de hoje, conservando e aprofundando sua perigosa interação com a caserna, emerge como movimento político organizado e de comprovada capacidade de mobilização derivada de sua base popular e religiosa, alimentada principalmente pelo neopentecostalismo, que ocupa, com o tráfico e as milícias, os espaços deixados pelas comunidades eclesiais de base e pelas organizações partidárias de esquerda, que transferiram seus quadros para o dolce far niente da burocracia pública e sindical.
Seu discurso chega às classes médias urbanas (sempre acossadas pelo espectro da proletarização), é ouvido pelas populações marginalizadas das periferias e conquistou mesmo a adesão de vastas camadas das massas trabalhadoras, nada obstante suas investidas contra os direitos previdenciários e trabalhistas, num quadro de acentuada precarização do trabalho.
Dispensável destacar que o bolsonarismo contou para sua emergência, e conta até aqui, com a adesão que jamais faltou aos projetos autoritários da direita e da extrema-direita, seja ao integralismo, seja ao udenismo, como não faltara ao Estado Novo e não faltaria à ditadura instalada em 1964.
Refiro-me, evidentemente, ao apoio da classe dominante brasileira, reacionária, atrasada historicamente, herdeira da casa-grande, do latifúndio e do escravismo, alienada e dependente, homofóbica e racista.
Ao contrário dos movimentos anteriores, o bolsonarismo, para além de simplesmente contar com apoios na caserna, como toda iniciativa reacionária, assumiu, a partir de 2018, o papel de braço político do projeto de mando dos fardados, posto em resguardo desde 1985, com a transição para a democracia.
A eleição do capitão foi decisiva para o retorno dos militares ao poder, e, assegurou, ainda, e como sua consequência, a hegemonia de uma pauta protofascista cujas consequências políticas, ideológicas e econômicas cobrarão anos de muito engenho e arte, bem como firmeza, para serem superadas — superação que teve no pleito de 30 de outubro seu ponto de partida.
Fundamental, mas ainda apenas o ponto de partida, indicando um longo percurso a ser observado, e um rol de iniciativas ainda não conhecido de todo.
São tarefas que incumbem ao futuro governo Lula, mas não só a ele, pois tanto a sustentação do governo quanto o enfrentamento da extrema-direita carecem da organização da sociedade brasileira — de que depende a revisão estrutural dos partidos que se perfilam no chamado campo da esquerda.
A análise dos números do pleito nos diz que, para além dos mecanismos do processo eleitoral stricto sensu, como, por exemplo, abuso do poder econômico e do poder político por parte do incumbente, e discussões em torno de táticas e estratégias de marketing eleitoral, devemos estudar preferentemente o que não está na superfície, a saber, o processo histórico que ensejou a emergência da extrema-direita quando a aparência nos dizia que o país girava em torno da opção socialdemocrata, ora conservadora, ora progressista.
A emergência dessa extrema-direita, sua resiliência mesmo após a derrota eleitoral, associada à resistência militar, ora surda, ora ativa, são fenômeno grave que não pode ser negligenciado.
Pois não basta registrar o fato em si, e simplesmente “naturalizá-lo” como se o processo social fosse um determinismo ou uma fatalidade religiosa, impondo ao papel do indivíduo na história uma irrelevância sem cura.
A história é movimento, e interpretá-la é apenas o primeiro passo para saber como nela devemos intervir.
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A Folha falha – Com a demissão de Janio de Freitas, o jornal da família Frias mais se empobrece, e dá um passo considerável rumo ao último suspiro. É pena.
*Roberto Amaral foi presidente do Partido Socialista Brasileiro (PSB) e ministro da Ciência e Tecnologia do governo Lula. Atualmente, é professor, cientista político e jornalista.
* Com a colaboração de Pedro Amaral.
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Publicação de: Viomundo