José do Vale: O mal-estar não advém da tecnologia da comunicação mas da mentira do estado mínimo
O mal-estar não é da tecnologia de comunicação
Por José do Vale Pinheiro Feitosa*, especial para o Viomundo
A luta política tem raízes materiais objetivas e tronco com seus galhos subjetivos. Galhos que geram flores e frutos que reproduzem futuro ao mesmo tempo que amadurecem e apodrecem.
Especialmente a partir do Renascimento, quando saímos da subjetividade religiosa e encaramos a nossa própria anatomia no contexto histórico, a compreensão das raízes materiais objetivas tem implicado em grande esforço da cultura humana.
Todos os dias nas redes sociais, nas mídias alternativas e empresariais, tomamos conhecimento de manifestações de grupos bolsonaristas descontentes com os resultados eleitorais, reivindicando golpe militar com ditadura, deixando escorrer um chorume anticomunista.
Acontece que tais manifestações ultraconservadoras e autoritárias não são um fato isolado brasileiro. Trata-se de um fenômeno social e político que está acontecendo em todo mundo, inclusive nos Estados Unidos e a Europa.
Quem acompanha, por exemplo, alguns sites russos, como o RT, Sputnik, Tass, The Shaker e Reminiscências do Futuro, vai encontrar no conteúdo forte nacionalismo conservador e religioso. Uma visão que abrange aversão aos movimentos identitários, apoio a leis reacionárias contra união entre pessoas do mesmo sexo e defesa da família semelhante à que acontece nas fileiras bolsonaristas.
Há uma tendência de se observar tais fenômenos em associação com o avanço tecnológico dos meios de comunicação, no caso o acesso a internet e ao sinal de torres de telefones celulares.
Há uma similitude com os anos 20 e 30 do século 20, quando o cinema e o rádio ocupavam muito tempo da atenção das pessoas e passaram a formar opiniões e mobilizar grupamentos sociais. A memória mais marcante do nazifascismo com o icônico Joseph Goebbels é a cineasta Leni Riefenstahl.
Estudo de 2019, divulgado pela Organização das Nações Unidas (ONU), mostra que à época 53,6% da população mundial (os dados atuais devem ser maiores) usava a internet. Ou seja, quase 3,6 bilhões de pessoas estão excluídas da internet.
Há um recorte por riqueza. A maioria das pessoas sem acesso à internet vive nos país pobres, onde 80% estão desconectados.
O uso da internet nos países desenvolvidos chega a quase 87% dos indivíduos. A Europa é a região com o maior acesso: 82,5%. E a África, a região com o menor alcance: atinge 28,2% das pessoas.
O uso da internet envolve o acesso propriamente dito a uma rede e, também, habilidades digitais para operar dentro da rede.
Entre os países que possuem dados disponíveis (40 dos 84 países) menos da metade da população possui conhecimentos básicos de informática, como copiar um arquivo e anexar e enviar um arquivo pela rede.
O acesso a um sinal de celular já é quase universal: 97% têm acesso a ele e 93% acesso a um sinal de 3G ou superior.
Na América do Norte, região do Indo-Pacífico e Europa, acesso a tecnologias mais avançadas já é de 95%. Na África, com menor cobertura, 79%.
Inegavelmente, há um paralelo histórico entre os movimentos conservadores e ultraconservadores e o avanço da tecnologia de comunicação tanto pela rede mundial de computadores como pelos sinais de celulares.
Muitos pensadores veem esse paralelo histórico como determinante na evolução ultraconservadora, dado o amplo acesso às redes de conhecimento. Há desestruturação da autoridade hierárquica geradora de conhecimento, sendo substituída por novas formas horizontais entre pessoas e grupos.
O fim da hierarquização família-religião-pátria como fonte de conhecimento poderia explicar a reação conservadora autoritária como a busca pela autoridade perdida. A escola civil-militar, o ensino domiciliar e a ocupação da função política por religiosos e militares são os sinais dessa reação.
A agenda ultraconservadora luta contra os direitos das minorias (gênero, negros, migrantes etc.) e foge do enfrentamento dos grandes danos ambientais, dos direitos humanos das minorias e dos direitos dos trabalhadores.
O movimento conservador apaga a luta essencial dos trabalhadores e evidencia as pautas menores da sociedade.
Para isso, usa um saudosismo anacrônico na tentativa de fazer renascer valores de 50 anos atrás, como pátria, família e religião, usado pelos integralistas brasileiros nos anos 30 do século 20.
Desse modo, nasceu entre os conservadores brasileiros um forte apelo às lembranças da Guerra Fria, retomando a adoração de uma pátria fantasiosa — os EUA — e a excecração de um inimigo — no caso, a China — que ainda possui um partido comunista.
Há, porém, uma questão oculta nessa formulação: as redes sociais não são tão horizontais como se imagina ou se formula.
Os meios tecnológicos de comunicação são fortemente apropriados por núcleos de comando que manipulam algoritmos, que formulam, preparam e disseminam mensagens mobilizadoras da ação ultraconservadora.
No caso do Brasil, é conhecido o papel de setores ultraconservadores dos EUA, como o governo Trump. Mas não se pode excluir dessa ação a estrutura econômica e governamental americana, incluindo segmentos sociais como as igrejas e partidos.
Já são bastante estudados e conhecidos os mecanismos usados pelos EUA e União Europeia nas chamadas revoluções coloridas. Cria-se um de mal-estar com a realidade de um país, que acaba resultando em mobilizações geralmente financiadas por mecanismo, tais como ONGs a partir de fundos financeiros regulares no jogo habitual do sistema.
As redes sociais, ao contrário do que muitos imaginam, refletem uma hierarquia geopolítica. E, mais ainda: parece-nos em processo intenso de abafar grandes incêndios na ideologia neoliberal dominante em sentido imperial.
Do grande incêndio histórico, eu destaco três conteúdos: uma grande mentira, uma grande manipulação e uma crise essencial de crescimento e evolução.
A grande mentira é o Estado Mínimo, centro da ideologia neoliberal, que se consolida em Washington, em 1989, com o fim da União Soviética.
Os russos caíram como patinhos nos anos 90 e depois acordaram. Os chineses foram de mansinho e nunca aceitaram.
Acontece que os Estados Unidos, sede da ideologia, sempre foram um Estado Máximo. Têm enorme máquina estatal disfarçada burocraticamente, em especial a de guerra, a financeira, a de tecnologia de informática e a da indústria farmacêutica.
Mesmo nessa guerra atual entre a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e a Rússia os que mais se destacam são os papéis dos Estados. Confisco de bens, de reservas cambiais, sanções econômicas, políticas de incentivos, domínios de tecnologia, lutas por direitos autorais e assim por diante.
A grande manipulação: o livre mercado e a cadeia mundial de produção articulada por um sistema financeiro liberal, que terminou quebrado. Acadeia era mais desarticulada e concorrente do que se imaginou. Isso a pandemia demonstrou.
Enfim, o capitalismo não entrega o que prometeu e manipula a história de modo a levar ao desespero ultraconservador.
Assim, turva temporariamente a consciência histórica até que uma nova ordem surja desses conflitos todos, inclusive da reação ultraconservadora.
A propósito, a ciência não está sendo criticada apenas por negacionistas e por aqueles que acreditam na terra plana. Ela se tornou um ativo parcial a serviço do lucro e das escolhas dos fundos investimento.
*José do Vale Pinheiro Feitosa é médico sanitarista.
Publicação de: Viomundo