RS: “De cada 10 mulheres que morrem, oito não têm a medida protetiva”, aponta delegada

De janeiro a outubro, o Rio Grande do Sul registrou 89 feminicídios, sete a mais do que nos primeiros 10 meses do ano passado. Os dados são do Observatório Estadual de Segurança Pública, da Secretaria de Segurança Pública do Rio Grande do Sul, que monitora a violência contra a mulher desde 2012. Em 2022, o estado já registrou 41.621 situações de agressão doméstica, incluindo ameaça, lesão corporal e estupro. 

A violência contra a mulher reverbera em outras secretarias, como na de saúde. No ano passado, anotou 1.814 atendimentos a mulheres decorrentes de violência doméstica, sendo 14% relativos à violência sexual e 12% à violência psicológica. Desde 2021, os casos de violência psicológica também podem ser registrados em todas as delegacias. 

Com 497 municípios, o Rio Grande do Sul tem apenas 23 delegacias especializadas no atendimento à mulher e 114 municípios cobertos pela Patrulha Maria da Penha, de acordo com o relatório da força tarefa de combate aos feminicídios.

Tendo como mote a data de 25 de novembro, Dia Internacional da Eliminação da Violência contra as Mulheres, a diretora da Divisão de Proteção e Atendimento à Mulher, Cristiane Ramos, falou para Brasil de Fato RS sobre o desafio de conter os feminicídios.

“Todos os índices de criminalidade estão nos menores patamares nos últimos anos. Por outro lado, temos os feminicídios e as ocorrências relacionadas à violência contra a mulher aumentando”, destaca, enfatizando a necessidade de prevenção. 

“Muitas vezes vítimas e agressores não se reconhecem nesses papéis e tendem a naturalizar a violência. Realmente temos um grande desafio aí pela frente”, afirma. 

Cristiane é delegada de Polícia do Rio Grande do Sul desde 2013, e atualmente é diretora da Divisão de Proteção e Atendimento à Mulher, do Departamento Estadual de Proteção a Grupos Vulneráveis – DPGV, e titular da 1ª Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher de Porto Alegre. Integra o Comitê “Em Frente, Mulher”, do governo do RS. É docente da Academia da Polícia Civil (ACADEPOL).

Confira a entrevista:

Brasil de Fato RS – Como tu analisas a violência contra a mulher no estado? 

Cristiane Ramos – Estamos com os menores índices, por exemplo, de roubo de veículo, homicídios, enfim, uma série de crimes que são avaliados pela SSP/RS. Por outro, lado temos os feminicídios aumentando. A grande dificuldade é que o órgão de segurança pública, seja a Polícia Civil, seja a Brigada Militar, não conseguem mapear onde é que vai acontecer o próximo feminicídio porque acontece dentro das casas das pessoas. No Observatório Estadual de Segurança Pública temos dados desde 2012. Temos momentos de explosão de feminicídios. 

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A nossa política relacionada a essa questão precisa ser uma política de prevenção, muito mais do que apenas uma política de combate. Muitas vezes vítimas e agressores não se reconhecem nesses papéis e tendem a naturalizar a violência. Realmente temos um grande desafio pela frente.


Dados da violência contra as mulheres no RS / Fonte: SIP/Procergs

As mulheres não precisam de uma marca. Devem denunciar a violência psicológica

BdFRS – Dia 25 de novembro é o Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra a Mulher. Que medidas são necessárias para que isso ocorra? 

Cristiane – Tem que fortalecer a prevenção para fazer com que mais mulheres entendam seus direitos. Entendam o que é violência psicológica. O que uma mulher pode ou não pode aceitar dentro de um relacionamento. Para que ela faça a denúncia cada vez mais cedo. Precisamos que as mulheres procurem a polícia. 

O desafio é fazer com que mais mulheres peçam ajuda e registrem suas ocorrências. Que entendam que a medida protetiva é uma grande ferramenta de enfrentamento a violência. A gente sabe que a grande maioria das mulheres que acabam sendo mortas por esses agressores, a maioria companheiros e ex-companheiros, nunca conseguiram acessar o sistema porque não registraram a ocorrência. Há casos em que a vítima fica mais de dez anos naquela situação de abuso e só depois procura os meios para romper essa violência. 

A cada 10 mulheres que morrem, oito não tinham a medida protetiva, o que mostra que a medida é efetiva. Precisamos fazer com que mais mulheres dêem credibilidade à Lei Maria da Penha e percebam que são vítimas. Não precisam apanhar para serem vítimas. Não precisam de uma marca. Podem relatar uma situação de violência psicológica, de ameaça e, já a partir daí, romper o ciclo e pedir ajuda. 

Seis em cada dez vítimas de feminicídio nunca registraram ocorrência contra o agressor

BdFRS – Em março deste ano a Polícia Civil divulgou o mapa dos feminicídios apontando que fazer com que as vítimas quebrem o silêncio ainda é o maior desafio. 

Cristiane – Exatamente. Na maioria, as vítimas de feminicídio, a cada 10, seis nunca registraram ocorrência policial contra aquele agressor. Quando a gente vai investigar depois que elas acabam sendo mortas, verifica que viviam em situação de violência. Tem familiares, amigos, pessoas que sabiam da situação. Essas pessoas precisam também denunciar, oferecer ajuda, apoio e saber que a rede tem condições de apoiar.

BdFRS – A delegacia é porta de entrada nos casos de violência. Como se dá o acolhimento da mulher nesse primeiro momento? 

Cristiane – Temos 23 delegacias da mulher em funcionamento para isso. Onde não conseguimos ter uma delegacia da mulher, estamos instalando as salas das margaridas. É um espaço especial de acolhimento mais humanizado, uma sala reservada, que terá uma policial, de preferência do sexo feminino, capacitada para esse acolhimento. Não contamos com profissionais tipo psicólogo, assistente social, nos quadros da polícia civil, mas tentamos trabalhar a capacitação constante dos policiais que vão atender essa mulher. Estamos com quase 60 salas no estado. 

BdFRS – Sobre o ciclo de violência, muitos movimentos apontam que ele é fruto do machismo estrutural. Como vê essa questão?

Cristiane – A violência contra a mulher é uma questão sociocultural. Por isso digo que o trabalho não pode ser focado em segurança pública. Tem que ser multidisciplinar, tem que ser trabalhado desde a infância. Vivemos em um país machista e em um estado machista. O Rio Grande do Sul está entre os cinco estados que mais praticam violência contra a mulher. 


“O nosso papel não é julgar quando a mulher retoma o relacionamento e aí acaba sofrendo uma nova violência” / Foto: Arquivo Pessoal

BdFRS – Não conseguimos ver uma diminuição dos feminicídios, apesar das campanhas e tantos outros mecanismos…

Cristiane – Exato, é uma questão que vai muito além. Talvez a gente precise trabalhar hoje com as nossas crianças, os nossos adolescentes, para a médio prazo conseguir impactar os números. 

Tivemos uma vítima que tinha 27 ocorrências contra o mesmo parceiro

BdFRS – Costumam ser reincidentes os casos registrados na delegacia?

Cristiane – Sim, super comum. Tivemos uma vítima esse ano que tinha 27 ocorrências contra o mesmo parceiro. Quando a gente fez a prisão dele, fui verificar e, no passado dela, já tinha inúmeras ocorrências, porque as pessoas retomam o relacionamento. 

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O nosso papel não é julgar quando a mulher retoma o relacionamento e aí acaba sofrendo uma nova violência. Entendemos que esse é o ciclo de violência que ela está inserida, e ela pode voltar na delegacia quantas vezes ela precisar. É bem comum. 

Ou ainda temos aquela situação em que o mesmo homem vai praticar violência contra diferentes companheiras. Ele vai ter a primeira, ela vai ter uma situação de medida protetiva, ela consegue romper o ciclo, sair daquela relação. E aí ele acaba tendo um novo relacionamento e vai perpetrando essa violência com diferentes parceiras. 


“Assembleia Geral da ONU instituiu, em 1999, a data de 25 de novembro como o Dia Internacional de Combate à Violência Contra a Mulher” / Foto: Pixabay

BdFRS – O governo estadual vai adotar as tornozeleiras eletrônicas. O que isso pode significar para a vida das mulheres?

Cristiane – Significa uma proteção ainda mais efetiva. A gente vai conseguir fazer um monitoramento em tempo real de um eventual descumprimento de medida protetiva. Vai-se poder saber onde essa mulher está, se está correndo risco. Acredito que isso vá nos ajudar a reduzir feminicídios de mulheres que tenham medida protetiva. Vai fazer também com que mais mulheres acreditem na força da medida protetiva e registrem a ocorrência. E é isso que a gente quer. 

Antes da Lei Maria da Penha, homem que batia em mulher pagava uma cesta básica e estava tudo certo

BdFRS – Como as políticas públicas, como a Maria da Penha, a lei do feminicídio, contribuíram com a vida das mulheres? 

Cristiane – Para dar visibilidade a esse problema, principalmente, porque a violência contra a mulher sempre existiu. Infelizmente, a gente vai viver muito tempo com ela existindo. Espero que daqui alguns anos elas sejam leis obsoletas, que não precisemos mais utilizar. Mas por enquanto elas servem, principalmente, para dar visibilidade a essa temática. Antes da lei Maria da Penha, um homem que batia em mulher pagava uma cesta básica e estava tudo certo. Hoje em dia não. Eles são presos e isso assusta muito mais. 

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A gente vê os números crescendo muito mais porque aumenta o número de notificações. Antigamente acho que as mulheres registravam menos porque sabiam que não dava em nada. Hoje estamos mostrando que dá sim e que, em briga de marido e mulher, a polícia mete a colher, todo mundo tem que meter a colher. Então, me parece que isso dá visibilidade a causa, dá mais eficiência. Uma das grandes certezas dos homens hoje, é que a Lei Maria da Penha prende. É garantia de prisão. 

BdFRS – Estamos nos 21 dias de combate a violência. Que mensagem final gostaria de deixar?

Cristiane – Que as mulheres peçam ajuda. Se não tem condições de ir até uma delegacia, se não se sentem psicologicamente fortalecidas para isso, que conversem com alguém. Temos cada vez mais empresas que têm ouvidorias, espaços para isso. Se não tem, tem a amiga, tem a prima, tem alguém. A mulher, muitas vezes, não vai estar em condições nem de perceber que está sendo controlada, que está sendo vítima de uma violência psicológica, mas precisa conversar e pedir ajuda. Vai ao seu município, verifica se têm psicólogos à disposição, conversa, se fortalece e, quando se sentir em condições, registra a ocorrência e pede medida protetiva.

Publicação de: Brasil de Fato – Blog

Lunes Senes

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