Lia Giraldo: Ambiente é questão vital à saúde dos trabalhadores. Sempre os primeiros e os mais afetados!
Por Lia Giraldo da Silva Augusto*
Vivemos em um mundo marcado globalmente pelas crises climática, sanitária e de imensa desigualdade social.
Constatá-las é a primeira tomada de consciência para todos nós que estamos vivos neste momento da história.
Ainda sob os efeitos da pandemia de covid-19 não totalmente superada, estamos com enormes sequelas humanas, sociais, econômicas e políticas, que afetaram principalmente trabalhadores e suas famílias.
Ao mesmo tempo, o mundo se vê assombrado por uma guerra na Europa de consequências ainda imprevisíveis, e que aponta para uma nova ordem econômica mundial, cujos sintomas se fazem sentir, especialmente agravando o modelo hegemônico de produção e consumo inaugurado no século 20.
Algumas das consequências nefastas desse contexto já são irreversíveis, cabendo apenas mitigações e reparações.
Os trabalhadores e suas famílias ficaram ainda mais vulnerados. Estão pagando com a saúde e a vida um preço maior por todas essas nocividades.
Em contrapartida, apesar de todas essas crises, que afetam a maioria da população, o grande capital e o mercado financeiro continuam lucrando. São eles os principais beneficiários delas.
O setor produtivo vem passando por acelerada reestruturação não só tecnológica, mas principalmente nas relações de trabalho em desfavor da vida e da dignidade humana.
A globalização, a terceirização e a precarização do trabalho têm sido as marcas atuais mais significantes do capitalismo.
Essa economia é também responsável pela descomunal degradação ambiental e aceleração dos nefastos processos de expropriação da natureza e da vida humana, causando enorme insegurança alimentar e intensificação a escalada da violência que se sobrepõem às outras mazelas.
Hoje os danos ao planeta tornam a sustentação da vida dos seres humanos e dos demais seres vivos questões que desafiam os governos nacionais e a governança global. Os trabalhadores precisam estar preparados para combater a necropolítica que sustenta o capitalismo rentista atual.
Compreende-se necropolítica como o biopoder utilizado para expor cidadãos e extensos segmentos humanos à morte social, como ficou explícito no Brasil durante a pandemia de covid-19, pelas sucessivas liberações escancaradas de agrotóxicos, desflorestamento e ampliação das iniquidades sociais acentuadas os últimos anos.
Essa economia perversa de expropriação da natureza está implicada também na mudança geológica que observamos na biosfera de nosso planeta, o denominado antropoceno.
Diferentemente de outros fenômenos ocorridos na história geológica da Terra, o antropoceno decorre dos modos de espoliação da natureza e de como os processos produtivos e a ocupação dos espaços estão sendo realizados.
Já se sabe também que a agropecuária, a mineração, a matriz energética dependente de combustíveis fósseis, a poluição atmosférica oriunda da indústria petroquímico-siderúrgica e dos meios convencionais de transporte são os maiores emissores de gás estufa responsáveis por essas profundas alterações terrestres.
Algumas consequências do antropoceno já são mensuráveis e irreversíveis como o degelo dos glaciares, o aquecimento dos oceanos, a perda de biodiversidade e as mudanças climáticas. Tomar consciência desses problemas em sua radicalidade é uma questão de vida para os trabalhadores.
Tudo aquilo que degrada o ambiente afeta precocemente a saúde e a dignidade dos trabalhadores.
Portanto, lutar por ambientes de trabalho saudáveis e dignos contribui para a proteção ambiental de modo geral, desde que se incluam nessas pautas mudanças nos processos produtivos desde sua concepção, e com a introdução de medidas de controle de poluição, de reparação socioambiental e de responsabilização do poluidor frente as nocividades provocadas.
Em 1993, fizemos isso com a Rhodia, empresa sediada no polo siderúrgico e petroquímico de Cubatão, na Baixada Santista (SP).
A Rhodia produzia tetracloreto de carbono, uma das principais matérias primas para a produção de clorofluorcarbonetos – CFC.
Este gás famoso, que destrói a camada de ozônio, era utilizado em equipamentos de refrigeração.
O ozônio possui a capacidade de absorver grande parte da radiação ultravioleta (UV) do sol. A sua redução favorece o aumento da temperatura e do calor, agravando as consequências do efeito estufa decorrentes da poluição e da queima de combustíveis fósseis.
De 1978 a 1995, atuei como sanitarista e médica do trabalho na região de Cubatão, na Baixada Santista.
O acoplamento estrutural entre os processos produtivos, a saúde dos trabalhadores e a proteção ambiental sempre foi muito evidente para mim.
Entendendo, aqui, o ambiente nas interfaces ecológicas e sociais. Um conceito que precisa ser melhor internalizado na luta pela saúde dos trabalhadores e seus demais direitos.
Essas mudanças ambientais que evidenciamos na atualidade são capazes de provocar enormes desestruturações em escalas hoje já previsíveis e que trará à classe trabalhadora o maior preço a ser pago, o da sua vida e o das futuras gerações.
Nesse contexto de crises permanentes e crescentes, em que a humanidade está imersa, é importante reconhecer as responsabilidades sociais, éticas e os modos pelos quais elas operam. Os processos de determinação das situações de riscos e dos danos ao ambiente, à vida e à saúde devem ser considerados integradamente.
Os trabalhadores e as populações em seus territórios de vida são os primeiros grupos a sofrer os problemas dessas alterações nocivas e das situações de riscos a eles vinculados.
Como metáfora, podemos dizer que correm nas veias dos trabalhadores o metabolismo social e os ciclos da natureza que abrangem as florestas, as águas, as regiões costeira, do campo e da cidade.
A luta de classes tem na contemporaneidade importantes desafios diante da enorme fragmentação produzida pela necropolítica do capitalismo atual e da perda de solidariedade produzida pelos modos de dominação econômico-política da globalização.
A classe trabalhadora deve se protagonizar também nas lutas ambientais, assumindo os sistemas socioecológicos como unidades de ação na resistência e na proposição de políticas protetoras e reparadoras em defesa dos direitos humanos e da natureza.
Uma análise da conjuntura nacional nos permite constatar que nos últimos anos tem havido muito sofrimento para a sociedade brasileira, com a degradação crescente das políticas públicas, especialmente aquelas que protegem a saúde, o ambiente e a vida.
Concorreram aceleradamente para essa situação não só o desfinanciamento, como o do SUS, agravado pela EC 95 (a PEC do teto de gastos, de 2016).
Outras medidas mais recentes estão a vulnerabilizar ainda mais a vida dos trabalhadores, como a fragilização da rede de atenção e de vigilância à saúde, o desmonte da seguridade social, da proteção ao trabalho digno, do sistema nacional de meio ambiente, da educação e da ciência.
Para concluir, reporto aqui uma parcela da contribuição pessoal ao debate do documento Contribuições da Frente Ampla em Defesa da Saúde dos Trabalhadores e Trabalhadoras para o processo eleitoral brasileiro 2022 (na íntegra, ao final):
“A generalizada degradação ambiental e as vulnerações induzidas e promovidas pelos governos contra os trabalhadores, as populações periféricas das cidades, as populações indígenas, as tradicionais, as camponesas, as ribeirinhas e as costeiras exigem novas alianças. Toda a sustentação ecológica da vida tem sido afetada pelos processos em curso, especialmente pelo avanço do agronegócio sobre áreas naturais protegidas; pela desregulação e desmonte do arcabouço jurídico-institucional da política ambiental; pela regressão da excelência técnica alcançada com o apoio das universidades públicas brasileiras; pela ampliação do fisiologismo na gestão das políticas públicas, que tem favorecido os poluidores e infratores ambientais, impedindo ou manipulando a participação social e o exercício do controle social.
O Brasil tem uma série de condições para um desenvolvimento social e econômico sustentável devido às suas amplas possibilidades de uso de uma matriz energética e de biomas diversificados, que poderiam ser apropriados para uma agricultura não poluidora e socialmente justa, como a agroecologia, bem como por uma retomada da industrialização, com base em tecnologias e processos produtivos igualmente não poluidores e socialmente justos”.
A Frente Ampla em Defesa da Saúde dos Trabalhadores convoca parlamentares e governantes a assumir compromissos com essas pautas.
E nós, desde já, estamos aqui para contribuir.
Temos convicção de que é a classe trabalhadora em aliança com os movimentos camponeses, feministas e os que têm como bandeiras os direitos humanos, a democracia, a paz, a luta contra as iniquidades sociais e todas as demais formas de racismos, juntos serão capazes de garantir de modo vigilante e organizado a recuperação de direitos perdidos e os avanços necessários à justiça social e ambiental para nosso povo.
*Lia Giraldo da Silva Augusto, médica sanitarista e do trabalho. É pesquisadora titular aposentada na Fiocruz e professora aposentada pela Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Pernambuco (UPE). Líder de grupo de pesquisa do CNPq em Saúde Ambiental.
Contribuições da Frente Ampla em Defesa da Saúde dos Trabalhadores by Conceição Lemes on Scribd
Publicação de: Viomundo