Lelê Teles: O crime de padre Cleyton, fruto de demoníacas maquinações
O CRIME DE PADRE CLEYTON
Por Lelê Teles*
redigi um necrológio para a maria preta, uma das árvores derrubadas a mando de padre cleyton.
o ecocído se deu no município de olhos d’água, nos arredores de brasília.
o poema fúnebre foi lido no funeral do tronco, pelo amigo jaburu, sob o gorjeio requiente de sabiás, bem-te-vis e quero-queros.
punks espancavam punhos, carpideiras se carpiam, góticos vestiam luto, emos choravam, velhos hippies fumavam a erva do diabo.
jaburu me mandou o vídeo do funeral, do qual destaco esse trecho final, onde ele, jaburas, sentado em sua cadeira de rodas, lê os últimos versos do meu poema triste:
“… deu sombra, floresceu, banhou-se de sol e de chuva, dançou com o vento, serviu de abrigo aos passarinhos, cama para os ébrios, latrina para mijantes criaturas.
viveu arboreamente, soube ser folha e caules, aflorou frutos, mergulhou raízes…
cumpriu seu papel herbal.
volta para a terra, de onde nunca arredou o pé.
dorme o sono derradeiro…
e sonha.
sonha com jardins de girassóis e begônias, voos de borboletas e beijo de beija flores.
há deus, pretinha, há um deus dos arbustos e um céu de grinaldas.
voa ave árvore!”
assim que jaburas terminou o recital, caíram aplausos de chuvas do céu.
ao término das exéquias, a multidão se retirou, os olhos lacrimejando seivas.
foram todos para o bar, cantar os sambas que mãe preta gostava de ouvir com seu ouvido rélvico.
relato como soube do ecocídio.
eram dez da noite e eu me preparava para consagrar um rapé de sumaúma, deitado na rede, quando recebi o zap de jaburu.
lelê teles, filho do vento, maria preta está morta.
e meteu três exclamações depois da palavra morta.
como morta, indaguei confuso, parecia-me saudável da última vez que nos vimos.
dançamos ciranda de mãos dadas.
não foi morte morrida, disse o amigo, foi morte matada!
com mil diabos!, respondi.
junto com maria preta, completou o amigo, tombaram todas as outras: sibipirunas, jatobás…
o amigo cerratense, com nome de ave pantaneira, disse que o crime é fruto de demoníacas maquinações de padre cleyton.
desde que o novo pároco chegou ao pequeno vilarejo que os olhosdaguenses estão de bandeira em punho.
sábado teve protestos na porta da igreja: palavras de ordem, cartazes, tambores, apitos, tamborins e cavaquinhos.
a polícia teve que afugentar os revoltosos a jatos de pimenta.
o que motivou o cura a derrubar a árvore foi o desejo de plantar ali uma calçada de cimento.
veja você.
o sujeito, dando ordens à prefeitura, trocará as árvores da praça, abrigos de araras e tucanos, por uma estação da via sacra.
veja que sacranagem.
o sacana já havia mandado destruir o coreto da praça e colocar uma cruz no lugar.
é uma cruzada contra a arte e a cultura.
em verdade, o sujeito quer afugentar a comunidade ébria, a maconhagem e o hedonismo.
cleyton determinou que a tradicional feira do troca, que está na 97° edição, nunca mais ocorrerá no gramado da praça da igreja.
argumenta que o troca-troca tem origem pagã.
ói que fi d’um cabrunco!
se o natal num tem origem pagã, se num é pagão os festejos juninos…
a feira do troca começou em ’74, quando a antropóloga lais aderne encontrou, nesse tipo de kula, uma forma de ajudar as pessoas do vilarejo.
o povo da cidade trazia utensílios domésticos, produtos industrializados… e trocava na feira, com os locais, por artesanatos, galinhas vivas, quindins e quitutes.
para o evento, que acontece duas vezes ao ano, o vilarejo chegava a receber cerca de 15 mil visitantes no final de semana.
todos iam para os bares e restaurantes, ninguém ia à missa.
o padre foi à forra.
secou a figueira, abriu o mar vermelho e tocou fogo na sarça.
vai ter troco.
“troca o vigário”, alguém pixou no muro da paróquia.
“a praça é do povo, como o céu é do condor”, grasnou uma ave, citando castro alves.
Ahhhh, gritou outra.
poetas, cachaceiros, pangrafistas, boêmios abistêmios e toda sorte de artivistas prometem fazer da vida de cleyton um inferno.
a semana santa tá chegando, e o padre enfrentará o seu calvário.
aquele que tiver pecados, que a tire a primeira pedra.
palavra da salvação.
*Lelê Teles é jornalista, roteirista e publicitário.
Publicação de: Viomundo