Brasil pode integrar nova “força de paz” no Haiti
Foto: Ricardo Arduengo/Reuters
O futuro governo do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) dá sinais de que vai resistir a uma empreitada defendida pelos Estados Unidos: uma nova missão internacional no Haiti. O tema é visto com reservas por quadros do PT e militares brasileiros que estiveram à frente da missão de estabilização no país caribenho de 2004 a 2017.
O assunto consta do material preparatório que Lula recebeu de auxiliares para o encontro com o secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres, com quem se reunirá nesta quinta-feira, 17, durante a COP-27 no Egito. Guterres tem sido um defensor da ideia de uma “força multinacional” no Haiti.
A proposta ganhou tração em outubro e foi levada a público pelos americanos durante uma reunião do Conselho de Segurança da ONU. Os EUA tentam costurar com aliados a potencial missão, que seria endossada pelo órgão sob o Capítulo 7 da carta da ONU, que trata de “ações relativas aos tratados de paz, rupturas da paz e atos de agressão”.
Responsável por liderar o braço militar da missão que ficou 13 anos no Haiti e maior País da América do Sul, o Brasil é considerado um apoio relevante para diplomatas estrangeiros nas discussões sobre o tema e as atenções de Washington se voltam, portanto, para a posição dentro do futuro governo Lula.
“Essas conversas (com outros países) estão em andamento. Vários países demonstraram interesse em saber mais sobre esse esforço, potencialmente participando dele”, disse Ned Price, porta-voz do secretário de Estado americano, Antony Blinken, a jornalistas na sexta-feira passada. Lula teve encontro, na terça-feira, 15, com John Kerry, enviado climático do governo Joe Biden. Foi a primeira reunião de alto nível do presidente eleito com uma autoridade americana.
O tema pode marcar a relação do novo governo, assim que tomar posse, não apenas com Washington, mas também com os militares brasileiros, um grupo da burocracia estatal que se manteve fiel ao governo Jair Bolsonaro (PL), inclusive durante os questionamentos do presidente ao processo eleitoral.
EUA e México disseram que iriam apresentar dentro do Conselho de Segurança uma proposta de resolução para autorizar uma força internacional de paz no Haiti, nos termos que têm sido defendidos por Guterres. A resolução não chegou a ser apresentada, em parte porque nenhum país se mostrou disposto a assumir a liderança do processo. O possível estabelecimento de uma relação mais próxima entre EUA e o Brasil, com a eleição de Lula, alimentou os rumores de que o País poderia ficar com este papel.
O Brasil ocupa uma das cadeiras rotativas do Conselho de Segurança desde o início deste ano e permanecerá com voto no colegiado até o fim de 2023. Pessoas envolvidas na transição veem a participação em força multinacional como inoportuna, principalmente por ser fora da ONU. A proposta americana enfrentaria resistência da Rússia, em razão das relações estremecidas entre os dois países por causa da guerra na Ucrânia.
Há ainda entre os petistas o temor de que uma volta ao Haiti sirva para fortalecer politicamente os militares. O ex-deputado José Genoino disse ao site Opera Mundi que, no passado, o PT deveria ter defendido, em vez de uma solução militar para o Haiti, a adoção de políticas públicas. A linha de raciocínio de petistas é de que a experiência haitiana teria fortalecido as Operações de Garantia de Lei e Ordem (GLO) no Brasil, o que levou à intervenção federal na segurança pública do Rio, que teria ajudado a candidatura de Bolsonaro, em 2018.
A sondagem americana a respeito da posição do Brasil é do conhecimento de oficiais brasileiros, que apontam os custos de uma missão fora da ONU como um problema. Uma saída seria via Organização dos Estados Americanos (OEA), mas, neste caso, a resistência seria do PT, que critica a posição do órgão em relação à Bolívia e à Venezuela.
“O problema do Haiti não é militar, mas político”, afirmou o general Carlos Alberto Santos Cruz. Segundo ele, gastou-se US$ 10 bilhões na Minustah, a missão de 2004, e a situação pouco mudou. O general, que esteve à frente da operação por dois anos e meio, disse ter conhecimento da posição americana. “Os americanos querem que outro país esteja à frente da força para que ela não seja considerada uma intervenção”, disse. Para ele, o governo Lula deve analisar a conveniência do caso.
O Capítulo 7 da Carta da ONU autoriza uso da força, o que é considerado um problema por parte dos países – e também por interlocutores de Lula na área de relações exteriores –, uma vez que pode significar uso da força armada contra civis que compõem as gangues haitianas. O argumento dos americanos é de que o tema foi trazido pelas autoridades haitianas, que pediram ajuda internacional, e pelo secretário-geral da ONU. “O Brasil continua muito interessado no tema, mas estamos aguardando que se apresente um texto para exame dos demais membros do Conselho de Segurança”, afirmou o embaixador do Brasil na ONU, Ronaldo Costa Filho.
A preocupação internacional com o Haiti escalou em setembro quando uma coalizão de gangues tomou o controle do terminal portuário Varreux, que fornece a maior parte do combustível do país, e agravou o colapso humanitário e econômico local. Há dez dias, a polícia haitiana disse ter retomado o controle do porto, o que fez com que o tema perdesse urgência na ONU embora, segundo diplomatas de diferentes países, siga na ordem do dia.
Questionado se o assunto já foi levado a Lula, um porta-voz do Departamento de Estado respondeu que os EUA vão “continuar trabalhando com parceiros na região e ao redor do mundo para apoiar o Haiti na superação do seu conjunto multifacetado de desafios”.
Foi no governo Jair Bolsonaro, em dezembro de 2020, que o Brasil deixou de ter contingentes próprios em forças de paz das Nações Unidas. Isso ocorreu quando a fragata Independência deixou a Unifil – a única força de paz marítima da ONU, responsável pelo patrulhamento das águas territoriais libanesas.
A Marinha exercia o comando da missão, que passou para a Alemanha. Isso não acontecia desde 1994.
Naquele ano, duas centenas de paraquedistas brasileiros foram mandados para a Onumoz, a força enviada a Moçambique. Depois, o Brasil teve contingentes de militares em Angola e no Timor Leste para, finalmente, chegar ao Haiti, em 2004. A missão no país caribenho durou até 2017. O Brasil chegou depois a ser sondado para enviar tropas para a República Centro-Africana, mas o plano não foi adiante.
O desejo de militares e diplomatas de manutenção de tropas no exterior esbarrou nos gastos. De 2004 a 2017, a tropa no Haiti custou R$ 2,6 bilhões aos cofres públicos. De 2011 a 2018, o governo pôs R$ 483,5 milhões na Unifil para manter uma fragata, um helicóptero e as tripulações em patrulhamento no Líbano. Nos dois últimos anos da missão naval, gastavam-se de R$ 80 milhões a R$ 100 milhões por ano.
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