Ângela Carrato: Deputados e senadores sequestram R$ 57 bi do orçamento da União, para beneficiar ”suas bases”

Por Ângela Carrato*

Se depender da mídia corporativa brasileira, a maioria da população não está e continuará não entendendo nada sobre o pesado embate em processo entre o STF e o Congresso Nacional.

Pior ainda.

Se depender desta mídia, os vilões são o STF e o presidente Lula, quando na realidade é o Congresso Nacional que progressivamente vem sequestrando o Orçamento da República para fins clientelísticos e eleitoreiros.

Explicar como esse sequestro se dá e suas implicações para o desenvolvimento do Brasil e para a nossa democracia deveria ser prioridade para a mídia.

Mas ela prefere tratar o assunto como um Fla x Flu ou “escalada da crise entre Poderes”, sem fornecer ao seu “respeitável público” informações para que possa entender e, aí sim, se posicionar.

Vamos aos fatos.

O ministro do STF, Flávio Dino, determinou, na quarta-feira (14), a suspensão do pagamento das emendas impositivas ao Orçamento da União. O pagamento deverá ficar suspenso até que os poderes Legislativo e Executivo criem medidas de transparência e rastreabilidade dos recursos.

A decisão de Dino foi motivada por uma ação do PSOL protocolada junto ao STF.

Na ação, o partido alega, de forma correta, que o modelo de emendas impositivas individuais e de bancada de deputados federais e senadores torna “impossível” o controle preventivo dos gastos.

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O PSOL igualmente argumentou que o modelo provoca “desarranjo” na separação dos poderes ao deslocar parte da gestão orçamentária do Executivo para o Legislativo.

O PSOL colocou o dedo na ferida de um dos maiores problemas experimentados pela República.

O ministro Dino, corajosamente, decidiu enfrentá-lo, no que foi apoiado por unanimidade pelos demais integrantes do STF e pelo próprio presidente Lula.

Dino e o STF merecem aplausos, uma vez que cobrar transparência e rastreabilidade para recursos públicos é essencial para se combater a corrupção.

Mas o que faz a mídia corporativa? Critica o “excesso de poder” de ministros do STF e da própria Corte para evitar que o seu lado neste processo fique evidente.

A mídia corporativa brasileira, que faz qualquer coisa para tentar enfraquecer o governo Lula e retirar-lhe condição de governar, cerra fileira com extremistas de direita como o presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL) e o escorregadio presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), transformando-os em “vítimas”. O que, definitivamente, eles não são.

Entender a origem e o agravamento deste problema e como se chegou à situação atual exige que se volte na história, mais precisamente ao ano de 2015.

Até então estava em vigor o que determinava a Constituição de 1988, que previa a existência de emendas parlamentes, mas facultava ao Executivo pagá-las ou não.

A presidente era Dilma Rousseff (PT) que iniciava, em meio a todo tipo de dificuldades e boicotes, o seu segundo mandato.

Já tramando a sua deposição, o que acabou acontecendo no ano seguinte, o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, colocou em pauta e conseguiu que fosse aprovada a emenda à Constituição nº 86, que tornava de “execução obrigatória” as emendas parlamentares.

Essa aprovação pode ser considerada um dos marcos para a aglutinação da extrema-direita no Legislativo em torno de Eduardo Cunha, cujo sucessor é o atual presidente da Casa, em fim de mandato, Arthur Lira.

Tanto a força de Cunha, que acabou cassado por corrupção, quanto a de Lira advém do controle que exerceram sobre tais emendas e, por tabela, sobre a maioria dos parlamentares sempre ávidos por recursos para manterem suas “bases eleitorais”.

Sob o olhar do Direito, as emendas parlamentares impositivas constituem verdadeira excrescência.

Elas atingem o cerne da República e da separação entre os Poderes, pois cabe ao Legislativo criar e aprimorar leis e não executar o orçamento. Executar o orçamento é prerrogativa do Poder Executivo, com o Judiciário dirimindo as questões que possam surgir.

Uma das consequências do golpe parlamentar-jurídico-midiático contra Dilma foi o Legislativo abocanhar competências que são do Executivo.

Basta lembrar como o vice-presidente golpista, Michel Temer (MDB), uma vez no poder, cedeu a todas as pressões dos parlamentares clientelistas.

O mesmo acontecendo com Jair Bolsonaro, um presidente que nunca escondeu o fato de não ter capacidade para governar e de ter terceirizado suas funções na área política para Lira.

Lira, como se sabe, arquivou 103 pedidos de impeachment contra Bolsonaro. Em troca, passou a controlar grande parte do orçamento da União, o que o transformou, na prática, em uma espécie de primeiro-ministro.

Se para Bolsonaro terceirizar parte de suas competências não fazia a menor diferença, pois o seu interesse estava voltado para ganhos pessoais, com o Brasil e a população brasileira que se danassem, com Lula a situação é diferente.

Há um ano e oito meses no poder, Lula tem enfrentado um embate duro e permanente com a extrema-direita e as armadilhas que ela deixou.

Se a tentativa de golpe em 8 de janeiro de 2023 foi a face mais visível deste embate, as emendas impositivas ao Orçamento e a presença de um bolsonarista, Roberto Campos Neto, à frente do Banco Central praticamente fechariam esse cerco.

Lula até agora atuou com essas travas, mas, às vésperas do fim dos mandatos de Lira e de Campos Neto, o quadro dá sinais de mudança.

O mandato de Campos Neto termina no final de dezembro e em fevereiro de 2025, Câmara e Senado escolhem seus novos dirigentes.

Não é de agora que o STF vem cobrando transparência ao Congresso Nacional em se tratando do Orçamento.

Basta lembrar que o tal “Orçamento secreto”, menina dos olhos de Lira, foi considerado ilegal. Para fugir às determinações do STF, o Congresso acabou criando “alternativas”, entre elas as chamadas “emendas PIX” e as emendas de Comissão.

As emendas PIX são aquelas destinadas sem que se indique o que será feito com elas, onde serão aplicados os recursos e de que maneira. Já as emendas de Comissão são outro nome para as velhas emendas de Relator, controladas com mão de ferro por Lira.

Em 2019, primeiro ano de governo Bolsonaro, cada parlamentar recebeu R$ 15,4 milhões para “suas bases”, sem ter que prestar contas para onde e como este dinheiro foi utilizado. Esse valor não parou de aumentar.

Em 2024, por exemplo, Lula estava sendo obrigado a pagar ainda mais, com o valor das emendas impositivas mais que quadruplicando.

Não faltam denúncias que entidades e empresas ligadas a familiares de alguns desses parlamentares são os beneficiados finais.

O mesmo acontece com prefeitos que dão sustentação a esses políticos, reeditando-se assim os redutos eleitorais que se imaginava extintos com o fim da República Velha (1889-1930).

Outra consequência nefasta dessa situação é que o ocupante do Palácio do Planalto, a cada votação importante, acaba tendo que liberar mais e mais pagamentos de emendas para que os parlamentares oposicionistas (e até alguns oportunistas da situação) se disponham a votar.

A mídia corporativa registra tais liberações de forma indignada, tentando sugerir cooptação do Congresso por parte do Palácio do Planalto, quando o que se dá é exatamente o contrário.

O Congresso, tendo à frente Lira e Pacheco, sistematicamente coloca a faca no pescoço do Executivo e também do STF.

Haja vista a campanha que o governo Lula e a Suprema Corte têm sido vítimas por parte da mídia a serviço da extrema-direita, toda vez que tentam enfrentar e alterar esta situação.

Mesmo afirmando não ser contra as emendas, Lula considera absurdo o montante destinado ao Congresso, que chega a ser quase metade do orçamento da União.

Nos dias atuais, o governo federal dispõe de R$ 60 bilhões e o Congresso Nacional abocanha quase igual valor: R$ 57 bilhões.

Vale lembrar que os bilhões utilizados pelo Congresso são aplicados sem maiores critérios ou planejamento, ao sabor dos interesses dos deputados e senadores.

Se nos últimos meses, Lira ameaçou não colocar em votação projetos do interesse do governo, derrotou alguns deles e derrubou importantes vetos de Lula, agora a ameaça direta é para o STF.

Na sexta-feira (16), ele enviou para a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara (CCJ), dois projetos de emendas à Constituição (PECs) que limitam os poderes da Suprema Corte. É na CCJ que tem início a tramitação de qualquer projeto.

Um desses projetos permite que deliberações do STF sejam derrubadas pelo Congresso Nacional.

Quem conhece o estilo de atuação de Lira, garante que seu objetivo é forçar o ministro Dino e demais integrantes do STF a voltarem atrás e liberarem as emendas. Como isso não se deu e a proposta de redução de poderes do STF é flagrantemente inconstitucional – se aprovada se tornaria escândalo mundial -, a ação de Lira está fadada ao esperneio.

Some-se a isso que dificilmente essas PECs teriam condição de serem votadas em meio à campanha para as eleições municipais, que começou nesta sexta-feira.

Em que pese a nefasta atuação da mídia corporativa tentando atritar os Poderes e dar cobertura aos interesses da extrema-direita, o que se verifica é um cenário favorável para que o sequestro do orçamento brasileiro por uns poucos espertalhões possa finalmente vir a público e ser enfrentado.

Afinal, esses senhores não estão sequestrando só recursos públicos – o que por si só já é gravíssimo.

Eles estão solapando o respeito à igualdade de condições nas eleições, pilar de qualquer democracia.
Basta de currais eleitorais em pleno século XXI!

P.S. Lula erra feio quando se submete à pressão dos Estados Unidos e da mídia corporativa no que se refere às eleições na Venezuela. Não faz sentido um governo que diz ter uma política externa “ativa e altiva” e respeitar a “autodeterminação dos povos” apresentar a absurda proposta de novas eleições no país vizinho.

Algum governante pediu para ver as atas eleitorais do Brasil quando os bolsonaristas e extremistas de direita questionavam a vitória do próprio Lula em 2022?

Algum país pediu para ver as atas da eleição de Bush, em 2000, nos Estados Unidos, com todos os indícios de que sua vitória sobre Al Gore foi roubada?

Algum país pediu para ver as atas da recente eleição na França, em que a esquerda foi vitoriosa e até agora o presidente Emmanuel Macron enrola para não dar posse a um primeiro-ministro de esquerda?

Por que só a Venezuela tem que mostrar atas?

*Ângela Carrato é jornalista. Professora da UFMG. Membro do Conselho Deliberativo da Associação Brasileira de Imprensa (ABI).

*Este texto não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.

Publicação de: Viomundo

Lunes Senes

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