Lelê Teles: Memória crônica, uma reflexão sobre Antonio Cícero e Ronnie Lessa
Por Lelê Teles
certa vez fui ao psicólogo e ele me pediu que eu ativasse a minha memória.
indaguei se era a memória do passado ou do futuro.
ele me disse, como um pai que tira a dúvida de uma criança, que a memória só pode se referir ao passado.
ao que eu me levantei de imediato, sobressaltado, e parti.
a partir daquele momento, dei mais atenção à memória futura.
tentarei me explicar, se contudo tudo não se fizer claro para ti, nunca é tua a culpa, essa é inteiramente minha.
nos acostumamos a associar a memória a coisas pretéritas, lembrar é sempre se referir ao passado.
tenho objeções a essas teorias mnemônicas, por isso, senhoras e senhores, trago boas novas.
falo de saudade e, portanto, refiro-me a lembranças e, veja você, recordo-me de coisas futuras.
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sim, tenho saudade do futuro.
eu nasci em uma cidade em constante transformação, uma protocidade, satélite, que surgira para abrigar os trabalhadores que construíram a cidade de brasília.
o gama, essa minha protocidade, era apenas um chão rasgado a unhas, no meio do cerrado, de onde afloravam rústicas e precárias edificações.
em pouco tempo, aquilo virou uma linda cidade, a mais bonita e sombreada do df, fazendo jus ao urbanismo de genial paulo hungria, o arquiteto que desenhou aquelas ruínas.
essa é a razão pela qual eu trago, vivas, memórias de um futuro sempre presente.
construí esse material onírico/mnemônico por associações: eu olhava para um acanhado casebre de madeira, volteado por um infértil terreno baldio, e já imaginava ali uma bela casa de alvenaria, ladeada por outras igualmente belas e um imponente estádio de futebol que substituiria o nosso pobre campinho de chão batido.
o diabo é que as coisas aconteceram conforme eu imaginava.
a imaginação é essa coisa teimosa que coloca imagens em ação.
o imaginário, nos ensinou a dona nise da silveira, é construído por imagens, o inconsciente, para ser mais preciso à ideia dela, é povoado por imagens e não por palavras.
a minha imaginação infantil edificava imagens futuras, e foi com esse material que eu construí a minha memória.
era uma conjectura que juntava os três tempos: aquela casinha de esquina era o presente que se deslindava à minha frente e, ao mesmo tempo, era o futuro que eu projetava nela e, ao projetar nela um tempo futuro, eu já a enxergava no passado, como algo que, materialmente, deixará de existir em breve e existirá apenas como lembrança.
eu tenho, daquele lugar e daquelas coisas, uma lembrança de passado e de futuro.
henri bergson acabrunhava-se com as aporias mnemônicas que conectavam o passado ao presente, mas esqueceu-se do futuro como também sendo um arquivo de memória.
bergson pensava de forma introspectiva e eu conjecturo na extrospecção.
minhas lembranças são espiraladas, como o sancófico tempo de fluxo circular cogitado por lenda maria martins.
a imaginação, esclareço-me, é o verbo que coloca imagens em ação, o pensamento é um condensador de imagens, e é por meio dessa equação que a memória se estrutura.
a memória dos cegos interessa-me sobremaneira, não consigo imaginar como eles imaginam, como conseguem construir imagens para alimentar a imaginação.
a percepção, para bergson, é mediada, de imediato, pelo corpo presente e sua relação com o ambiente que o envolve.
é o corpo que devolve, em síntese, o que percebe e assimila.
no divã, o analista recorre sempre ao pretérito, o analisado faz arguições às suas reminiscências e traz o passado ao presente.
do futuro não se fala.
quando se cala sobre as memórias do futuro, muito do sujeito que fala é silenciado.
no divã, em verdade, não há sujeito, o que se deita em sono/sonho desperto é objeto daquele que, sentado e charutando, o analisa em vigília.
ele, o do charuto, se coloca como uma espécie de intérprete do souvenir.
ecléa bosi, em seu excelente lembrança de velhos, falava da lembrança como afloramento do passado, nunca como a possibilidade do futuro aflorar e florir.
quando me lembro, por exemplo, dos desenhos dos jetsons ou dos filmes de george lucas, trago à memória o passado, está claro, mas aquele passado pra mim, quando presente, já era futuro.
então, aquela é uma lembrança do futuro do pretérito.
porque aquelas percepções evocam, pra mim, imagens do futuro, mesmo que agora elas estejam alocadas no passado.
claro que essa memória inabitual que trago agora contrasta sobremaneira com a memória-hábito que nos povoa.
“a memória-hábito faz parte de todo o nosso adestramento cultural” (BOSI, p. 49), é ela que nos faz lembrar, “de cor”, certos movimentos cotidianos: falar uma língua estrangeira, dirigir, sentar-se à mesa segundo certa etiqueta etc.
a memória também é um instrumento funcionalista que mantém ensinamentos passados sempre presentes.
mas, por outro lado, o déjà-vu, veja você, é a memória viva de um futuro que se apresenta.
mas como essa imagem poderia estar lá, nas profundezas da memória, se ela não fora percebida antes, se ela não fora sequer cogitada?
maurice halbwachs nos recorda que lembrar não é reviver, a lembrança do passado está impregnada das nossas percepções do presente que alteram, inexoravelmente, o material bruto acumulado, sendo a memória, em verdade, uma leitura do passado afetada diretamente pelo presente.
não se lê o mesmo livro duas vezes porque, ao reler, já não somos os mesmos.
existe um componente individual, mas também um contingente social nas nossas memórias.
é por isso que quatro pessoas podem ter lembranças não idênticas de um mesmo passado vivenciado conjuntamente.
é o que no cinema chamamos de efeito rashomon.
terminarei com essa reflexão sobre a memória como uma construção do coletivo.
vendo o julgamento dos assassinos de marielle e anderson, pode-se cogitar sem medo de erros que a memória da assessora que presenciou o crime estava sempre repleta de sofrimento.
já ronnie lessa, o assassino confesso, rememorou o episódio com franca frieza.
o estranhamento das pessoas se deu pelo fato de que, para elas, lessa deveria demonstrar remorso ao lembrar de uma cena tão brutal.
ora, é sabido que lessa fez o “serviço”, para o qual foi contratado, sem sofrimento algum.
o vegano sofre com a morte do novilho, o açougueiro, não.
o grupo do qual esse assassino faz parte, enxerga a vida do outro, do que está fora do grupo, como algo sem o mesmo valor com o qual ele enxerga a sua vida ou a dos seus.
tanto é que um momento de sensibilidade, digamos assim, foi quando lessa evocou a imagem do pai que morrera a pouco e só aí ele percebeu em marielle uma pessoa-sujeito, porque ele a realocou dentro dessa memória social do seu grupo.
o poeta antonio cícero, ao decidir por retirar-se deste mundo teve consciência da perda da inconsciência que se aproximava.
viu as imagens que construiu em sua co-vivência com seu grupo de afeto serem deletadas de seus arquivos.
o poeta, você bem o sabe, é aquele que projeta em nós imagens de futuro.
ele é o inconsciente material, vivo e ativo.
o poeta é produtor e reprodutor de imagens do inconsciente que se fixam no nosso consciente.
o poeta é sempre a infância da alma social, a projeção, é o sonho em vigília.
o velho, por sua vez, é o guardião do passado.
livre das atribuições práticas do presente, sua função social agora é ser o mantenedor da memória coletiva: da família, do grupo, do tecido social no qual está envolto.
quando uma pessoa vai envelhecendo, ela se prepara, inconscientemente, para essa tarefa.
o alzheimer, que alcançou o poeta antonio cícero, promove o esquecimento, a destruição dos arquivos de memória, fazendo do velho um inválido, tornando-o um corpo que arrasta um cadáver vivo.
não é mais a criança que lembra do futuro e nem o velho que se recorda do passado, ele, agora, é aquele trapo embriagado pelas águas do lethe.
vive, mas falta-lhe o sopro vital que lhe dá movimento e anima: a memória social.
palavra da salvação.
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