Viúva de tesoureiro do PT relata indignação e dor
Foto: Christian Rizzi/UOL
Faz dois meses que Pamela Suellen Silva, 38 anos, investigadora da Polícia Civil do Paraná, viu seu marido ser morto a tiros na comemoração do aniversário de 50 anos dele. No dia 9 de julho, durante a festa do guarda municipal Marcelo Aloizio de Arruda, que tinha como tema o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em Foz do Iguaçu (PR), o policial penal federal Jorge José da Rocha Guaranho apareceu no local de carro, acompanhado por esposa e filho pequeno. Sem sair do veículo, insultou Marcelo e seus convidados, e gritou palavras a favor do presidente Jair Bolsonaro. Após discutirem, o policial sacou sua arma, mas foi embora. Voltou pouco tempo depois e disparou contra Marcelo, que ainda conseguiu pegar sua arma e atirar em Guaranho, porém não resistiu aos ferimentos e morreu.
O caso ganhou grande repercussão, inclusive fora do país, e ainda tem muitos desdobramentos. Jorge Guaranho foi indiciado por homicídio duplamente qualificado, ficou internado por cerca de um mês no Hospital Ministro Costa Cavalcanti e, em agosto, foi transferido para o Complexo Médico Penal em Pinhais, na região metropolitana de Curitiba, onde cumpre prisão preventiva. Os advogados dele chegaram a entrar com pedido de prisão domiciliar, que foi negado pela Justiça do Paraná.
O que pouco se fala é sobre quem sobreviveu à tragédia. Há dois meses, Pâmela vive com seus filhos Helena, 6 anos, e Pedro, 3 meses, à sombra de sua morte. A seguir, ela conta como tem sido esses 61 dias sem o companheiro.
“Tem dia que acordo e durmo pensando naquela cena. Aquilo me traumatizou muito. Além da perda do Marcelo, a ausência dele é o que mais me dói. Ainda estou perdida. Perdi a noção do tempo, estou no automático, fazendo as coisas pelas crianças, que são totalmente dependentes de mim. O Pedro só tem 3 meses, requer atenção 24 horas. No meu entendimento, como mãe, estou pecando com a Helena, porque ela tem 6 anos e já entende as circunstâncias. Ela nega a morte dele, não quer falar sobre isso, mas demonstra com alguns comportamentos difíceis. Revolta, nervosismo, ansiedade, ela chora por qualquer coisa. Ela está totalmente diferente da Helena de antes. Tento acolhê-la como posso. Se nós, adultos, já temos dificuldade de entender essa situação, imagina ela?
Eu não aceito a morte dele. A primeira coisa que vem à minha cabeça quando acordo é: ‘Por que comigo? Por que isso aconteceu com o Marcelo? Não aceito a violência, não aceito a maneira como tudo aconteceu, não aceito que todos os nossos planos morreram. Saímos de casa naquele sábado com as coisas da festa. Saímos para comemorar o aniversário dele, mas não voltamos. Eu só voltei para casa na segunda-feira, e sozinha. Ainda estou presa no que aconteceu. Aquelas cenas fortes, horríveis. Fico me questionando: por que não fiz alguma coisa? Por que não consegui ligar para uma viatura? Por que não peguei minha arma e reagi? Por que não tirei o Marcelo dali? São vários “por quês” e “ses” todos os dias. Se a gente tivesse desistido desse aniversário, se a gente tivesse ficado em casa, ou se tivesse feito a festa em casa, se a gente tivesse ido embora antes.
A gente não tinha como imaginar que alguém chegaria e ameaçaria a nós e nossos convidados. A festa foi num clube afastado, reservado. Queríamos reunir os amigos, nos divertir. E foi tudo muito rápido. O agressor chegou no fim da festa, de repente parou o carro, abriu o vidro e começou a gritar. Daí o Marcelo foi até ele e disse: ‘Dá licença, isso aqui é uma festa particular, só tem família, amigos.’ Eles começaram a discutir e começou aquela loucura. Ele sacou a arma e ameaçou o Marcelo, eu intervi, me apresentei como policial, o Marcelo também, pedindo para ele parar, guardar a arma e ir embora. Foi terrível.
Ele foi embora, eu disse: ‘Ele não vai voltar’, mas o Marcelo achava que ele voltaria. Mesmo assim, fui tentar fechar o portão de acesso aos veículos, mas não trancava, então só deixei encostado e avisei o caseiro. Quando o agressor retornou, eu ainda estava voltando para a festa. Fiquei em pânico, não sabia o que ia acontecer. Pensei: “Meu Deus, o que ele quer?” Para mim foi uma tragédia, não tem outro nome.
Hoje, a maioria das pessoas mostra compaixão, empatia; me abordam na rua para dizer palavras de apoio, de indignação. Mas, no dia a dia, preciso lidar com uma enxurrada de coisas. E no meio disso fica o meu luto, ficam os meus filhos. Pessoalmente, nunca me atacaram, mas virtualmente, sim. Nas redes sociais as pessoas são cruéis. Elas têm a ousadia de entrar no meu perfil e fazer comentários que machucam. Há alguns dias, fui almoçar na casa de amigos e começaram a falar de política. Dessa polarização, por que não vota em fulano, vota no sicrano, não sei o quê. Parecia que tinha enfiado uma faca no meu peito. Falei: ‘Não consigo nem desejar para outra pessoa o que estou sentindo. Eu só queria respeito.’ É muito dolorido.
Ainda ouço muitos absurdos. As pessoas ainda se acham no direito de olhar uma violência daquele tamanho e falar coisas como: ‘Mas a culpa também foi do Marcelo.’ A culpa foi do Marcelo? Porque o Marcelo quis fazer uma festa de aniversário? Porque ele escolheu uma festa temática? Se fosse, sei lá, da Frozen, ele não teria morrido? A gente deveria ter pelo menos o direito de fazer o que quer, de se expressar, de fazer escolhas. Sinceramente, ainda tenho medo de falar e não estou preparada para discutir com alguém. Nesse dia, não consegui me expressar, só senti muita dor e tristeza. Peguei meus filhos e fui embora.
Desde que o Marcelo morreu, estou fazendo acompanhamento psicológico, e minha terapeuta disse na última sessão que ainda estou na primeira fase do luto. Não consegui progredir. Tem dia que estou melhor, me sinto bem. Mas tem dia que a cabeça não ajuda. Não sei ainda qual história sobre o Marcelo vou contar para o Pedro. A psicóloga sugeriu de fazermos uma caixa da memória para ir guardando algumas coisas dele, para o Pedro e para a Helena.
Ainda existem muitas coisas do Marcelo pela casa, não consegui mexer nisso. Mas vou tentar fazer essa caixa da memória com as crianças para quando elas sentirem necessidade do pai, ou saudade, no caso da Helena. O Marcelo era um cara muito otimista, tem coisas aqui em casa bem bacanas, como um orquidário que ele fez. Toda vez que abro a janela, está todo florido, lindo.
Quando me dei conta desse orquidário, agradeci a ele por ter se dedicado àquelas plantas, para que hoje elas estejam aqui, proporcionando essa beleza para nós.
Eu só consigo viver meu luto, chorar, quando as crianças estão dormindo. Aí tenho esse momento em que fico sentada ali fora sozinha. Mas são em horários determinados. A verdade é que tenho momentos específicos para viver esse processo. Pela manhã, a hora em que tomo meu café sozinha, por exemplo. Porque eu e o Marcelo sempre tomávamos o café da manhã juntos. Aí bate a saudade, a tristeza em lembrar de tudo o que aconteceu. E à noite, quando as crianças dormem. Preciso ter essa disciplina dentro do luto. A Helena já falou: ‘Mamãe, não gosto de ver você chorar’. Então tenho que me controlar, mas às vezes não consigo. E os fins de semana estão sendo terríveis porque era o momento em ficávamos juntos. O Marcelo sempre cozinhava, chamava os amigos, era muito gostoso. Eu prefiro segunda a sexta porque tenho uma rotina. O fim de semana é um vazio imenso.
Ainda estou em licença-maternidade, então vivo tudo isso muito intensamente. Mas vou ter que pensar neste momento da volta ao trabalho. Sou muito grata por estar cercada de muita gente, uma prima vem todos os dias me ajudar com as crianças, meus pais e tios têm sido muito importantes. A presença das pessoas fortalece, conforta a gente. A Helena também criou um pânico de ficar sozinha. Quando ela se dá conta de que estamos só eu, ela e o Pedro, fica triste. E confesso que o que eu mais temia era isso: ficarmos só nós três aqui dentro. Pensava ‘E aí? Como vai ser?’ E esse dia chegou. Estou rebolando com eles dois em casa.
O Marcelo sempre foi um paizão tanto para os dois pequenos, quanto para os dois maiores dele, de outro relacionamento. Ele sempre foi muito presente, era o ponto de apoio das crianças –da Helena até o mais velho. Às vezes, o Marcelo chamava ela para os fundos da casa, onde montou uma espécie de marcenaria. Passavam a tarde inteira lá, mexendo com madeira, lixando, cortando. Ela sempre em volta do pai e ele explicando as coisas. O Marcelo trabalhava muito o desenvolvimento das crianças. Eu gostava do jeito com que ele lidava com as coisas do dia a dia, sem estresse, tudo na conversa. Era assim que a gente levava a vida, sabe? Conversando numa boa e tentando ajustar as coisas, fazendo com que as crianças entendessem a realidade. O Marcelo sempre fez questão que elas o acompanhassem nas reuniões políticas. Sempre tentou educá-las para a realidade. E isso o Pedro não vai ter.
Hoje, um dos meus esforços é dar vazão a essa situação. Quero falar sobre o assunto justamente para alertar as pessoas que isso destruiu a nossa família. E destruiu o outro lado também. O autor desse crime também tinha uma família.
Foram minutos de uma atitude impensada, uma reação violenta e irresponsável, que mudaram nossas vidas completamente
Os sentimentos que a gente carrega hoje, o luto, a saudade do Marcelo, doem demais. Precisamos falar que essas pessoas existem, que temos que ter cuidado, principalmente neste ano eleitoral. Ninguém precisa chegar nesse nível de violência para dizer: ‘Olha, as minhas ideias, as minhas crenças, são melhores que as suas.’ Ninguém precisa morrer para você dizer que o seu lado é melhor que o meu. Hoje, com as nossas vidas completamente alteradas, vamos carregando essa dor e tentando seguir adiante. Ainda não consegui me recuperar. E nem sei quando vou conseguir.”
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