Roberto Amaral: É possível troca de comando da ordem internacional sem o horror de uma guerra mundial?
A guerra clássica e o fim da hegemonia anglo-saxã.
Por Roberto Amaral*
Ninguém cede poder por boa vontade. Olhando para a história, mudança na ordem mundial é um processo multifacetário, alongado, com lances imprevisíveis e necessariamente sangrento. A mudança não será pacífica. Hegemonia internacional rima com hecatombe. O sangue correrá em proporções inimagináveis. Treze Perguntas – Manuel Domingos Neto (05.03.2022)
A guerra da Ucrânia ainda não é o armagedom do Ocidente, mas pode chegar até lá, porque a batalha real, que se trava em todos os quadrantes do planeta, diz respeito à disputa da nova ordem mundial, anunciada pelo encontro da emergência da China com a decadência dos EUA.
Essa guerra, global, estratégica, permanente, já se opera em todos os níveis, no plano econômico tanto quanto no plano político, no plano diplomático tanto quanto nas esferas ideológica e comunicacional.
(A propósito, a cobertura oferecida pela Rede Globo revela seu extremo engajamento, ou seja, uma extremada parcialidade. Não se trata, porém, de fato isolado. Ela segue o padrão dominante da mídia internacional, que copia a linha editorial do The New York Times).
A novidade nessa guerra é o ensaio bélico levado a cabo na Ucrânia, que cobrará imprevisível rol de vidas humanas perdidas. Pode ser o prelúdio do choque inevitável que os deuses do Olimpo intentam adiar, enquanto os guerreiros aqui na Terra afiam suas adagas.
À Ucrânia foi destinado o papel do molusco na briga entre o mar e o rochedo. Pagará alto preço.
No centro do conflito armado – um dos cenários do confronto global, político, econômico, estratégico– temos um ator que não se apresenta no ringue, a saber, os EUA, a inteligência que comanda o espetáculo remotamente, como um videogame monstruoso, pois seus personagens são reais: soldados, homens e mulheres, velhos e crianças.
A personagem que aparece é o presidente da Ucrânia, marionete dos EUA, a quem se deve o golpe de Estado que derrubou o presidente Viktor Ianukovytch, ponto de partida para tomada do poder pela extrema direita.
Coube-lhe dar a motivação da crise com o pedido de ingresso da Ucrânia na OTAN, e ao permitir a instalação em seu território de artefatos de destruição em massa, na fronteira com a Rússia. Era cutucar o velho urso com vara curta.
O mundo todo, aterrorizado, clama pela paz ante a agressão da Rússia.
O que, porém, significa defender a paz num conflito como o que se dá na Ucrânia?
Condenar a Rússia e exigir sua rendição, sem garantias?
Ignorar que as ações empreendidas por EUA/OTAN há pelo menos 15 anos são, também, atos de agressão?
Ou considerar que não houve invasão do território ucraniano pelas tropas de Moscou?
Mas o adversário é a China, atingida por tabela, na medida em que o conflito põe em xeque seu principal aliado, a Rússia. A Ucrânia não é sujeito no processo.
A estratégia norte-americana, até aqui funcional, é levar a Rússia (o maior estoque de artefatos nucleares e o segundo exército do mundo) à exaustão, como levou no século passado a URSS à debacle, forçada a uma corrida bélica superior aos seus recursos.
Sua tática é promover a guerra por procuração, livrando-se dos percalços sofridos lá atrás no Vietnã, e mais recentemente no Afeganistão.
A Ucrânia, assim, é uma contingência, quase um experimento, e a guerra uma oportunidade de ouro para o complexo industrial-militar de que nos falou o general Dwight D. Eisenhower, no discurso de transmissão da presidência dos EUA a John Kennedy, responsável pela fracassada invasão de Cuba (1961).
Assim, a continuidade desse conflito e a abertura de outras frentes, principalmente fora da Europa e longe dos EUA, atendem a uma vasta gama de interesses, dos mais variados matizes.
Como dito, a guerra, no momento, atende ao planejamento do Império, empenhado em impedir ou adiar a troca de guarda com a China, o que explica a OTAN (sob seu diktat) rejeitar a hipótese de uma Ucrânia neutra, negando à Rússia as garantias de segurança que os EUA e toda potência militar consideram como direito inalienável.
A resistência à Rússia visa a enfraquecer o principal aliado da China, de resto também ameaçada pelo poder de fogo dos EUA instalado em Taiwan, um verdadeiro “porta-aviões terrestre”, a apenas 230 quilômetros de sua costa.
A Ucrânia é o sparring que os EUA escolheram para desafiar a Rússia. Esta, por seu turno, invadindo sua vizinha, ferindo sua soberania, nutre a esperança de livrar-se da instalação de mísseis da OTAN em suas fronteiras.
A guerra, no atual estágio, ainda um foco isolado na Europa (enquanto o morticínio corre solto no Oriente) tem por objetivo tático enfraquecer a coalizão eurasiana.
Os EUA jamais considerarão uma troca pacífica de poder, como aquela oferecida pela autodissolução da URSS, e nada sugere que a China e seus aliados, com destaque para o poderio bélico russo, aceite como fato natural o desafio do “Ocidente”, na contramão do processo histórico que anuncia, para além de uma nova governança mundial, o fim da hegemonia anglo-saxã, no pódio desde 1815, trazendo em seu prontuário dois séculos de colonialismo e imperialismo, duas guerras mundiais, um incontável número de guerras localizadas, guerras terceirizadas, invasões e genocídios.
Moscou, com a China às suas costas, e na atual contingência, luta para sobreviver; não pode perder, pois a brutal alteração do quadro de forças pode precipitar o conflito EUA/Otan x China/Rússia – o que, presentemente, não interessa a nenhum dos contendores.
A estratégia chinesa conta com o arsenal atômico da Rússia e a experiência de suas forças armadas. A negociação, o fim da beligerância significando um armistício em face do conflito maior entre as duas coalizões, encontra, porém, uma barreira na lógica da guerra: pois quanto mais durar o conflito, mais a Rússia enfrentará dificuldades (econômicas e políticas), e mais ganharão os EUA e seus aliados. Além do alto custo de uma guerra, não se deve subestimar o peso das sanções econômicas em proporção jamais vista.
De outra parte, o conflito constitui preciosa fonte de recursos para os EUA e seus aliados, sôfregos pela venda de armas e equipamentos, pela conquista de mercados, pelo estabelecimento de áreas de influência, pela desestabilização de concorrentes.
Enquanto esse for o cenário, não interessará aos EUA qualquer sorte de negociação. Sua tática deverá ser a de esperar a exaustão do adversário, aparentemente surpreendido com a lentidão do progresso de suas forças, que deve ensejar tanto maior resistência da Ucrânia quanto maior desgaste, militar, estratégico, político e econômico da Rússia.
Sem dar um tiro, sem precisar desembarcar no cenário da luta, poderão os EUA ganhar, mesmo que a Rússia não perca militarmente; basta prolongar a guerra fornecendo munição à Ucrânia, por exemplo, e assistir de longe tanto o desgaste das forças de Moscou no campo de batalha (que se supunha não passaria de uma Blitzkrieg) quanto o desgaste de Putin no front interno. Há alguma similitude entre essa estratégia e aquela que levou à debacle da URSS, em 1991.
O fortalecimento da resistência ucraniana é, certamente, o primeiro passo para prorrogar o conflito contra a estratégia do invasor, como ocorreu no Afeganistão.
É possível, igualmente, que o grande encontro apocalíptico se materialize numa série de conflitos de menor envergadura. Um insurgente exército ucraniano (financiado e treinado pela OTAN) pode prolongar o conflito e impor pesados danos às forças russas.
A resistência dos vietnamitas e as perdas impostas ao exército invasor construíram nos EUA a reação da opinião pública contra a guerra. Assim também a resistência da guerrilha afegã contra a presença das tropas soviéticas é contabilizada como um dos fatores que apressaram a debacle do regime de Moscou.
É um risco, já vivido por outras poderosas potências militarmente vitoriosas, que a Rússia se veja na continência de refém de sua própria vitória, não podendo abandonar, para não perdê-lo, o espaço conquistado, permanecendo porém sem garantias para sua segurança.
Precisará de um pretexto para o armistício, quando este se oferecer como do interesse dos EUA.. Pelo andar da carruagem, e considerando o investimento na guerra, é improvável que Moscou, ao fim e ao cabo, se contente com menos que a garantia de sua segurança, cujo condicionante fundamental é o não ingresso da Ucrânia na OTAN e a autonomia das províncias do Donbass.
De uma forma e de outra, tanto Washington quanto Moscou sabem como as guerras começam, mas que é impossível predizer seu desenvolvimento e principalmente seu fecho.
Desta feita, todas as alternativas são plausíveis, desde uma solução pacífica a uma escalada contínua convencional, que chegará ao limiar da opção atômica. Uma paz amarga imposta a uma Ucrânia derrotada tanto quanto a retirada das tropas russas de mãos abanando são hipóteses difíceis de serem admitidas hoje.
O caminho lógico para a paz parece, hoje, interditado, e mais distante ainda ela parecerá na medida em que o conflito de blocos, já em um crescendo, avance.
O embate de nossos dias é explicado pela principal preocupação de segurança nacional dos EUA que é a competição estratégica de longo prazo com a China e a Rússia.
O que está em jogo é a decadência do grande império do Norte e a emergência da China, a hegemonia mundial das próximas décadas, o futuro do “Ocidente”.
Está em jogo a possibilidade da hecatombe, porque o próximo conflito mundial, se houver, será nuclear. A guerra final.
É uma questão, pois, que diz respeito a todos os povos.
Os tempos responderão se é possível uma troca de comando da ordem internacional sem o horror de uma guerra.
* Com a colaboração de Pedro Amaral
*Roberto Amaral foi presidente do Partido Socialista Brasileiro (PSB) e ministro da Ciência e Tecnologia do governo Lula. Atualmente, é professor, cientista político e jornalista.
Publicação de: Viomundo