Pedro Carrano: 10 anos após plebiscito por uma Constituinte, sistema político continua excludente
Dez anos depois do plebiscito popular por uma Constituinte, sistema político no Brasil continua antipopular e excludente
A última grande campanha dos movimentos populares mantém uma pergunta atual: É possível um parlamento popular no marco do atual sistema político?
Por Pedro Carrano*
Durante o mês de setembro e no começo de outubro, não há assunto mais urgente que as eleições municipais.
O pleito para prefeituras e câmaras municipais toma conta da tática das organizações políticas e ganha um contorno nacional, em vista do peso e influência que terá nas eleições de 2026, em meio ao risco de um avanço das candidaturas de extrema direita.
Uma reflexão necessária para este período reside em avaliar a real possibilidade de uma maior presença popular e dos trabalhadores no espaço das casas legislativas.
Há dez anos, no dia 7 de setembro de 2014, os movimentos populares e organizações políticas, sobretudo MST, CUT, MAB, Consulta Popular, PT, Federação Única dos Petroleiros (FUP), Unegro, Levante Popular da Juventude, entre outras organizações, concluíam uma campanha massiva e com unidade na esquerda, por uma Constituinte Exclusiva e Soberana do Sistema Político.
O fato é que na conjuntura das eleições de 2022 a Câmara Federal e o Senado conheceram um avanço das candidaturas conservadoras, levando muitos analistas a decretar que a esquerda não priorizaria, em tese, o espaço legislativo.
Porém, cabe também a pergunta: apenas um gesto de vontade seria suficiente para alterar a correlação de forças e alcançar uma maior representação no parlamento? Quais os limites estruturais do atual sistema político?
Dez anos atrás, um plebiscito popular
Ao todo, 7.754.436 de pessoas votaram no plebiscito popular por uma Constituinte Exclusiva e Soberana do Sistema Político.
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É fato que, durante toda a chamada Semana da Pátria, dados da própria campanha apontaram que 120 mil pessoas se envolveram naquela mobilização.
E o tema é urgente, ontem como ainda hoje.
“O orçamento nacional foi sequestrado pelo Legislativo. O PT de Lula conta com 68 parlamentares em 513 e 9 senadores em 81. É possível aprovar alguma coisa?”, constata o assessor sindical Gustavo Erwin, o “Red”, da executiva municipal do PT de Curitiba.
Red foi uma figura atuante no estado e nacionalmente na campanha de 2014.
Naquela campanha popular e massiva realizada pelos movimentos populares e sindicais, ao todo foram abertas mais de 40 mil urnas no país, com a participação de cerca de 450 organizações sociais, resultando na construção de mais de 2 mil comitês populares nos estados.
A metodologia foi semelhante, de mobilização e educação popular, ao que foi feito em 2000 (sobre a dívida interna), 2002 (sobre a Alca) e 2007 (sobre a Vale).
Dez anos depois, em que pese um aumento extremamente tímido da representatividade, por exemplo, de negros e negras no parlamento, uma avaliação do sistema político no Brasil ainda aponta para um sistema na prática e na ponta excludente no que se refere à participação do povo brasileiro.
Verifica-se a manutenção de uma subrepresentação de trabalhadores, negros e negras, indígenas, população LGBT, entre outros grupos fundamentais na composição da sociedade brasileira.
“Na eleição de 2022, as mulheres conquistaram 18% das cadeiras na Câmara dos Deputados mesmo sendo 51,5% da população”, afirma Juliana Mittelbach, enfermeira do SUS, doutoranda em Saúde Pública na Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, da Fundação Oswaldo Cruz.
À época, Juliana fez parte da campanha no Paraná como dirigente da Central Única dos Trabalhadores (CUT).
Constituinte do Sistema Político como saída para a crise de junho de 2013
Ricardo Gebrim, dirigente da organização Consulta Popular e integrante da Secretaria Nacional da campanha, em 2014, contextualiza a circunstância e a conjuntura política em que se deu aquele debate, colocado como alternativa política em meio ao cerco dos setores conservadores contra o governo de Dilma Rousseff.
Mesmo derrotada, essa bandeira ainda hoje mantém sua atualidade.
Na visão de Gebrim, junho de 2013 surpreendeu a esquerda num momento de aparente estabilidade do governo, colocando nas ruas setores que buscavam melhorias das condições de vida, bem como abrindo o flanco para os setores que buscavam desgastar o governo Dilma.
Com isso, ficava evidente os limites estruturais da política brasileira e a campanha da Constituinte se configurava como uma alternativa à esquerda em um momento de disputa.
Gebrim afirma:
“Ainda em 2013, as manifestações estavam em disputa, aqueles setores que foram às ruas estavam em disputa, e, naquele momento, num ato de sensibilidade, a presidente Dilma apontou, de forma correta, identificando o principal problema, que foi apontar o grande entrave que inviabiliza os governos petistas ainda hoje, que foi apontar uma mudança do sistema político”.
O advogado recorda que, após a sinalização da presidente Dilma, coube aos movimentos populares agarrarem a bandeira e transformá-la numa meta de mobilização que sintetizou as diferentes forças da sociedade civil:
“Foi uma campanha muito forte, talvez a última grande campanha que se usou do plebiscito popular, que é um grande instrumento pedagógico, que envolveu gente e pautou o tema da Constituinte. Envolveu setores jurídicos, causou intenso debate na sociedade. Ao final, a presidente Dilma é reeleita, naquele momento tenso, atacada pelo candidato Aécio (Neves, PSDB)”.
Para o dirigente, Dilma ainda teve a coragem de pautar o tema logo após sua vitória eleitoral de 2014, quando a campanha, em mobilização de cerca de 2 mil pessoas, fez a entrega do resultado do plebiscito em Brasília.
Entretanto, logo no ano seguinte, em 2015, Gebrim faz o balanço de que, ao final, a opção tática no começo de governo Dilma pela aplicação do ajuste fiscal mostrou-se um erro, retirou apoio popular do governo e permitiu o avanço do golpe.
“Gerou insatisfação e perda de base popular. Houve uma reação heroica (contra o golpe), mas insuficiente, dos setores populares”, critica.
Desde então, a avaliação de lideranças é que a fratura e o problema do sistema político seguem expostos.
“A situação política piorou e o projeto da Constituinte não avançou. Houve reformas insuficientes e com poucos avanços, como em 2020, quando o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) decidiu que a distribuição de recursos do Fundo Partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) e do tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão deve ser proporcional ao total de candidatos negros que o partido apresentar para a disputa eleitoral”, critica.
Red complementa:
“O que já era ruim naquele 2014, ficou ainda pior. A sub-representação da classe trabalhadora no Congresso Nacional, que denunciávamos na ocasião do plebiscito, só fez aumentar a cada pleito. O conjunto de deputados e senadores eleitos em 2022 é pior que o de 2018, que é pior que o de 2014”, aponta.
Juliana Mittelbach, por sua vez, confirma o problema que hoje segue desproporcional: a relação entre o número de candidaturas inscritas de mulheres, negros e negras, LGBT, entre outras, para concorrer e as condições materiais para a sua eleição.
“Na eleição de 2022 as mulheres conquistaram 18% das cadeiras na Câmara dos Deputados mesmo sendo 51,5% da população. Negros conquistaram 26% dos espaços na Câmara sendo 55,5% da população de acordo com o IBGE. O descumprimento das cotas para mulheres e negros foi descumprida pelos partidos e anistiada pelo parlamento”, denuncia.
Ela exemplifica este raciocínio apontando como um retrocesso a ementa da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 9/2023, que concede anistia aos partidos políticos que não aplicaram o mínimo de recursos em campanhas femininas ou de pessoas negras – como estava previsto no texto de 2022:
“Retrocedemos ainda mais com a aprovação da PEC que retira as sanções aos partidos que não destinaram os valores mínimos em razão de sexo e raça em eleições”, avalia.
Um cerco que apenas se fechou?
Movimentos populares mantiveram a agitação em torno dessa bandeira da Constituinte do sistema político e a própria campanha até meados de 2017.
Diante de uma correlação de forças desfavorável na sociedade, com a redução do número de greves e mobilizações dos trabalhadores e estudantes após a chegada de Temer à presidência, a avaliação é que não havia mobilização suficiente para uma Constituinte de caráter progressista.
O risco de reversão de patamares de direitos conquistados, como se verificou, por exemplo, na experiência chilena, tem sido sempre um fantasma preocupante.
Entretanto, as organizações políticas seguem debatendo e mantendo a propaganda acesa:
“Nesse contexto, a Constituinte foi a alternativa política, alternativa ofensiva, alternativa de romper o cerco, no seu elo mais frágil que é o sistema político, um sistema execrado pela maioria da população brasileira por sua natureza fisiológica. No entanto, faltou coragem, faltou ousadia, e isso acabou gerando que os inimigos populares viabilizassem o golpe, com tantos efeitos terríveis, com efeitos que vão desencadear essa verdadeira derrota de natureza estratégica para as forças populares. Por isso o resgate, pensar o que foi essa campanha, o significado, sua ousadia, seu significado, sua ousadia, o que não deve ser esquecido”, é o balanço de Ricardo Gebrim.
No que se refere ao tema da memória e verdade, o sistema político brasileiro ainda carrega uma verdadeira herança da ditadura militar que a própria Constituição de 88 não conseguiu romper.
Isso sem contar a distância entre os itens sociais expressos na Constituição e a realidade do povo brasileiro – o que também foi tema da campanha em 2014:
“Quando a ditadura no Brasil foi derrotada, em 1985, o movimento das massas colocou na ordem do dia a necessidade de novas instituições no país. Esse movimento foi contido pelos acordos entre as cúpulas do regime e dos extintos partidos Arena e MDB. A Constituinte de 1988 é, assim, parte dessa contenção, da “transição servadora”, sem ruptura”, afirma trecho da cartilha divulgada na época do plebiscito Constituinte.
Gustavo Red aponta que problemas da realidade brasileira não enfrentados ainda podem ser vistos na conjuntura atual, e foram acentuados com os governos de Temer e Bolsonaro.
“A PM, herança da ditadura, continua agindo como tropa de ocupação nas periferias, impondo o terror nas favelas, como se dispusesse de mandados de busca e apreensão coletivos. E a tutela militar mantida na CF de 88 ainda é uma ameaça”, aponta.
Propostas: Agenda Marielle Franco
Curitiba (PR) teve no começo de setembro o lançamento da Agenda Marielle Franco, um guia de compromissos políticos que defendem a igualdade, o antirracismo, o feminismo, e os direitos das comunidades LGBT, periféricas e populares, a partir do Instituto Marielle Franco e da força da simbologia da vereadora carioca – mulher negra, lésbica e periférica –, brutalmente assassinada no dia 14 de março de 2018.
Com a presença de Marinete Silva, mãe da vereadora Marielle Franco, o evento de lançamento reforçou dados apontando que, historicamente, as mulheres negras são sub-representadas na política institucional, contabilizando apenas 6,3% nas câmaras legislativas e 5% nas prefeituras, de acordo com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), com base nas eleições de 2020, e 8% no Congresso Nacional.
De acordo com a Agência Brasil, a Justiça Eleitoral registrou 240.587 candidatos negros, o que representa 52,7% das candidaturas. É a segunda vez na história que supera o número de candidatos brancos, que este ano são 215.763.
Para Santa de Souza, estrategista do Instituto Marielle Franco, no projeto Ocupa Curitiba, “O avanço da representatividade ainda é pequeno, se pensamos que a sociedade brasileira é formada por 56% da sociedade entre negros e pardos, e temos 2% de representatividade de mulheres negras, houve um avanço, mas a subrepresentação ainda é evidente”, constata.
Um dos fatores do problema está na forma como partidos trabalham a questão e na condição que oferecem para cada candidatura.
“Há uma disparidade grande de valores, entre homens brancos e mulheres negras. Ainda que tenha grande participação de mulheres negras na política para concorrer, mas o repasse dos partidos, as candidaturas negras ficam com com valores mais baixos de todos os candidatos. São candidaturas que se lançam para garantir representatividade, mas não têm estrutura, como concorrer de igual para igual com outro candidato?”, questiona.
Santa de Souza defende que a experiência de parlamentares negras que trouxeram as pautas, os debates e as medidas concretas para as mulheres negras da classe trabalhadora foram marcantes e estão servindo como exemplo, caso, no Paraná, de Carol Dartora (PT), atual deputada federal, e Giorgia Prates (Mandata Preta – PT), na Câmara de Curitiba.
Como apontamento final, Santa afirma que chamou sua atenção, no marco da Agenda Marielle Franco, o espírito de solidariedade e não competição entre as candidaturas de mulheres negras de diferentes partidos e organizações.
Para ela, o apoio mútuo, o encorajamento, entre mulheres negras de diversos partidos é uma marca das eleições atuais, mesmo em meio aos limites impostos.
“A união das mulheres negras do campo progressista, essa vontade e união e importância de entender que, quanto mais juntas estivermos, vamos avançar. Uma está se vendo na outra, aonde uma chega a outra pode chegar”, aponta.
Referências e informações adicionais
– https://www.poder360.com.br/poder-eleicoes/pela-1a-vez-em-20-anos-esquerda-nao-disputa-51-das-prefeituras/
– https://www.brasildefatopr.com.br/2024/02/09/do-cafe-entre-lula-e-lira-aos-10-anos-da-campanha-da-constituinte-um-sistema-politico-agonizante
– Cartilha Plebiscito Constituinte, 2ª edição, fevereiro de 2014, São Paulo.
*Pedro Carrano é jornalista, escritor e militante social.
*Este texto não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.
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Publicação de: Viomundo