Marcelo Zero: O Brasil deve se alinhar a um dos polos da nova “Guerra Fria”?
O Brasil deve se alinhar a um dos polos da nova “Guerra Fria”?
Por Marcelo Zero*
O caso da Venezuela vem provocando críticas internas à política externa do Brasil.
No plano mundial, está tudo indo bem. O Brasil vem recuperando celeremente o protagonismo regional e internacional perdido com Bolsonaro. Nosso papel de mediador é muito elogiado por diversos países e até mesmo pela oposição venezuelana.
No plano interno, não obstante, às velhas críticas da direita se somam, agora, críticas de alguns setores da esquerda. Esses setores consideram que o Brasil deveria ser mais assertivo na luta contra o “imperialismo”, o que implicaria escolher alinhar-se ao “polo oposto”, na luta pelo poder mundial.
Acredito que isso seria um erro estratégico.
Em primeiro lugar, é preciso considerar que o que se chama de nova “Guerra Fria” é uma invenção e uma imposição do EUA e aliados.
Esses países querem a volta da antiga ordem mundial, que predominava até o início deste século, caracterizada pela hegemonia praticamente absoluta dos EUA e por um unilateralismo agressivo, que corroía, e ainda corrói, as instituições multilaterais.
Nesse sentido, os EUA e aliados pressionam o denominado Sul Global para que “escolha” entre o lado das “democracias” e o lado das “autocracias”.
Pude testemunhar pessoalmente essa pressão na Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados do Brasil, quando da visita de uma delegação da Comissão de Relações Exteriores do Parlamento Europeu ao nosso país.
Apoie o jornalismo independente
Na conversa, um parlamentar estoniano, do grupo de direita “Identidade e Democracia”, afirmou, a respeito do conflito na Ucrânia e da geopolítica em geral, que o Brasil “teria de decidir” entre ficar do lado das “democracias”, isto é, o lado da Europa, dos EUA e aliados, ou do lado das “ditaduras”, a saber, Rússia, China e outros países. Não haveria meio-termo e equidistância possíveis.
Outro parlamentar europeu afirmou que a China tende a “escravizar” outros países, por meio de empréstimos e dívidas. Um parlamentar espanhol classificou o conflito da Ucrânia como uma “guerra imperialista” promovida unilateralmente pela Rússia, que, segundo ele, quer impor seu domínio autocrático em toda a Europa.
Essa é a mentalidade binária, simplista e obsoleta que predomina nos EUA e seus aliados.
Não apenas isso. É uma mentalidade profundamente antidemocrática, que considera que democracia, a democracia segundo o modelo ocidental, é algo a ser imposto via sanções, golpes e intervenções militares.
Por outro lado, não há nenhuma pressão por parte de China, Rússia, Irã ou de nenhuma outra “autocracia” para que o Brasil se alinhe automaticamente aos seus interesses.
Tome-se o exemplo das estratégicas relações bilaterais Brasil-China, que completam, neste ano, meio século de grandes realizações.
Neste longo período, o único momento de alguma tensão se deu quando Bolsonaro et caterva passaram a agredir a China sistematicamente.
Em nenhum momento, Beijing pressionou o Brasil a se tornar “socialista” ou a se afastar dos EUA e da Europa para cooperar ativamente com o nosso país. O mesmo se dá com a Rússia, Irã, Turquia etc.
A construção do BRICS, fundamental para a afirmação de um mundo multipolar, também obedece à mesma lógica não-excludente. Com efeito, esse bloco geopolítico incorpora países que têm boas relações com EUA e aliados, como Brasil, África do Sul, Índia, Egito, Arábia Saudita e Emirados Árabes.
Observe-se que a Argentina de Milei só não entrou porque não quis. Não foi o Brics que vetou a Argentina. Foi a Argentina de Milei que vetou o BRICS, por alinhamento ideológico aos falsos dilemas da nova “Guerra Fria”.
A questão essencial, contudo, tange ao fato de que quaisquer alinhamentos desse tipo limitariam, a priori, o protagonismo do Brasil.
Uma política externa realista, racional, profícua e realmente soberana tem de ser sustentada essencialmente com base nos interesses nacionais, não com base em interesses de terceiros países, por mais “amigáveis” que possam ser.
É claro que, no atual cenário mundial, muito mais diverso do que aquele que prevalecia até o início deste século, as oportunidades maiores para a expansão do protagonismo do Brasil estão no Sul Global e, em especial, na sua própria região.
Isso não significa, porém, investir em uma política externa confrontacionista com os EUA, a União Europeia etc.
Com esses países, as oportunidades de cooperação são mais estreitas e sujeitas a maiores assimetrias e, muitas vezes, a imposições políticas inaceitáveis. Mas estão longe de serem inexistentes.
Nos dois primeiros governos Lula e nos governos Dilma, a política externa ativa e altiva aumentou muito o protagonismo brasileiro, mediante a estratégia da “autonomia pela diversificação”.
Naquela época, o Brasil sem abandonar seus parceiros mais tradicionais (EUA e Europa) expandiu-se no mundo mediante parcerias estratégicas com países como China e Rússia, mediante a aproximação à África e ao Oriente Médio, e por meio de um grande investimento na integração regional soberana.
É verdade que o cenário mundial de hoje é bem mais complicado e conflitivo que o quadro daquela época. O superciclo das commodities encerrou-se, tivemos uma crise econômica profunda, a emergência de uma extrema-direita internacional bastante ativa, a desaparição paulatina, mas constante, da complementariedade entre as economias chinesa e estadunidense, a reação da Rússia à continua expansão da Otan em direção às suas fronteiras, a centralidade da política externa dos EUA na “disputa pelo poder mundial” com China, Rússia e as “autocracias” etc. etc.
Mas é justamente esse quadro mais conflitivo que recomenda, à luz dos interesses do Brasil, a insistência e o aprofundamento de uma política externa universalista, pacifista e não-alinhada.
Não se trata de neutralismo ingênuo, como avaliam alguns.
Na realidade, é a melhor maneira de propugnar por uma ordem mundial multipolar e simétrica, mais permeável aos interesses de países como o Brasil. As grandes disputas mundiais criam espaços para o Brasil ocupar.
Há de se considerar, ademais, nessa avaliação, uma questão de estratégia geoeconômica absolutamente fundamental para o futuro do Brasil.
Nosso país precisa muito se “reindustrializar”, com base em novas tecnologias limpas e “descarbonizadas”.
O Brasil tem imenso potencial nesse campo, mas precisa de parcerias tecnológicas e de investimentos para concretizar esse potencial. Dessa maneira, a nova dimensão criada pela necessidade da “neoindustrialização” tem de ter absoluta centralidade na política externa do Brasil, em sua dimensão econômica, comercial e tecnológica.
Temos se fazer um grande esforço, em política externa, para dar sustentáculo a um esforço interno vital.
Por conseguinte, não podemos rejeitar, a priori, por motivos geopolíticos, nenhuma oportunidade de cooperação. Esse seria um erro crasso, um bolsonarismo com sinais invertidos.
E teremos de revisar as prioridades nas relações com alguns países que têm maior capacidade tecnológica e de investimentos que o nosso, independentemente de que “lado” da nova “Guerra Fria” estejam.
Afinal, se permanecermos como exportadores de commodities e de produtos industriais de baixo valor agregado nosso protagonismo internacional será sempre limitado.
Já escrevi, alhures, que entre um e outro lado da “Guerra Fria”, o Brasil, rejeitando as imposições e as pressões de EUA e aliados, escolhe o Brasil. Não se trata de frase vazia e retórica ingênua.
É simplesmente a melhor estratégia para promover nossos interesses próprios. Sempre será.
*Marcelo Zero é sociólogo e especialista em Relações Internacionais.
Publicação de: Viomundo