Fernanda Giannasi: Segurança e saúde do trabalhador, uma questão de direitos humanos
“Requiem aeternam” para as vítimas dos crimes socioambientais no Brasil
A Bruno Pereira e Dom Phillips, nossas homenagens.
Seus legados jamais serão esquecidos.
Por Fernanda Giannasi*
É uma grande responsabilidade inaugurar neste momento o blog Saúde & Trabalho no site Viomundo.
Há dois meses acompanhamos estarrecidos o bárbaro assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista inglês Dom Phillips, que causou comoção mundial.
Mais um crime perpetrado no Brasil contra ambientalistas, ativistas e agentes estatais defensores dos direitos humanos.
Há mais de 30 anos luto nas trincheiras da saúde do trabalhador e trabalhadora, em especial junto com as vítimas do amianto, para tornar visível à sociedade os males causados pelo mineral que o navegador italiano Marco Polo (1254-1324) conheceu em suas expedições à Ásia e chamava de ”mágico”.
Até o início do século 20 era denominado “lã da salamandra”, o anfíbio parecido com uma lagartixa, cuja pele é resistente ao fogo.
Uma das propriedades propriedades mais apreciadas desta matéria-prima é justamente a sua resistência.
Por isso, é intensivamente usada na indústria da construção civil, naval, metalúrgica, química e petroquímica. Até pouco tempo atrás o Brasil era o terceiro maior produtor e exportador e o quarto utilizador mundial.
Banido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2017, o amianto continua a ser produzido e exportado pelos portos marítimos brasileiros, numa total demonstração da fragilidade de nossos mecanismos institucionais de proteção à saúde e à vida da população, em especial dos trabalhadores, e de repressão aos crimes socioambientais praticados diuturnamente em nosso país.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), são mais de 107 mil mortes por ano de trabalhadores e trabalhadoras, causadas pela exposição às fibras deste mineral cancerígeno.
O Senado da França considerou-o a catástrofe sanitária do século 20.
São mortes que não ganham destaques na mídia e ainda são inviabilizadas por mecanismos sociais.
Essa inviabilização é causada por vários fatores: inexistência de diagnósticos confiáveis por serviços de saúde técnica e humanamente impossibilitados de os realizarem; não reconhecimento do nexo causal; subnotificação nos registros oficiais dos Ministérios da Previdência e da Saúde; morosidade, parcialidade e cumplicidade da Justiça brasileira, que inverte o ônus da prova às vítimas sem recursos e capacidade para fazê-lo.
Outro problema grave para a realização dos trabalhos de vigilância e defesa dos direitos dos trabalhadores é a falta de proteção aos agentes responsáveis pela fiscalização de ambientes nocivos à saúde dos obreiros. que há tempos vimos denunciando.
Exemplo disto é o programa brasileiro de proteção aos defensores dos direitos humanos, que se restringe a uma ação meramente burocrática sem qualquer reflexo ou alteração da realidade de violência cotidiana.
Muitas vezes essa violência é institucionalmente praticada pelo próprio aparato estatal, que, em vez de protegê-los, se coloca ao lado e em defesa dos interesses dos seus algozes.
Denúncias desta violência e assassinatos de agentes defensores dos direitos humanos foram selecionados para o relatório Na Linha de frente: Defensores dos Direitos Humanos no Brasil — 2002-2005, publicado em dezembro de 2005 pelas ongs Justiça Global e Terra de Direitos.
Alguns dos casos relatados com desfecho trágico são os assassinatos da missionária Dorothy Stang, em 12 de fevereiro de 2005, e de quatro meus colegas do extinto Ministério do Trabalho e Emprego, em 28 de janeiro de 2004.
Nelson José da Silva, Erastótenes de Almeida, João Batista Soares Lage e do motorista, Aílton Pereira de Oliveira foram mortos numa emboscada sob o comando de um poderoso fazendeiro e político de Minas Gerais, que estava sob investigação de exploração de mão-de-obra análoga à escravidão e oferecer péssimas condições de trabalho.
As ameaças que sofri no trabalho (tanto vindas do exterior como praticadas pelo aparato estatal) por combater ao amianto estão no relatório acima (páginas 79-82).
Elas constam do trabalho Independência dos Juízes no Brasil. Aspectos relevantes, casos e recomendações, enviado à Organização das Nações Unidas (ONU).
Nele, é descrita a tentativa de um juiz corrupto, preso na operação Anaconda, da Polícia Federal, de nos incriminar e o conluio criminoso do Judiciário com a indústria do amianto (páginas 144-150 deste link)
É mais do que conhecida a ineficiência dos organismos da ONU para impedir ou minimizar os efeitos das agressões físicas e psíquicas desferidas contra os defensores dos direitos humanos, os trabalhadores e trabalhadoras e a população em geral.
Na grande maioria dos casos isso decorre de membros com notórios conflitos de interesses.
Exemplo recente ocorreu na rodada da Conferência das Partes (COP) da Convenção de Roterdã em Genebra, na Suíça, na semana de 14 de junho de 2022.
Mais uma vez uma minoria de países (Rússia, Cazaquistão, Zimbábue, Índia, Paquistão) impediu que o amianto crisotila entrasse para a lista do Anexo III, que prevê que os países importadores sejam informados pelos exportadores dos riscos cancerígenos intrínsecos aos produtos, que o contenha, ou a matéria-prima in natura.
Se aprovado, isso regularia o comércio internacional de tóxicos, no caso o amianto, onde deve haver o chamado Consentimento Prévio Informado (PIC) por parte do importador, que passa a ser corresponsável por tal decisão, não mais podendo alegar desconhecimento sobre os riscos envolvidos com o produto adquirido.
A única arma que nos resta é buscar energia para transformar nossa indignação em atitudes para combater e mudar esta execrável situação de injustiças que nos rondam, promovidas por este conluio criminoso entre Estado e organizações defensoras do capitalismo predatório, que quer nos subjugar, calar e domar a natureza e sua biodiversidade.
Para não deixar que a memória dos trabalhadores e trabalhadoras mortos pelo assassino amianto continuem invisíveis aos olhos da sociedade “moderna e tecnológica”, será erigido ainda este ano em Osasco (SP) o Memorial das Vítimas do Amianto.
Símbolo da luta da vigorosa Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto (Abrea), fundada em 1995, que nas palavras de seu combativo presidente, Eliezer João de Souza, soa como um brado de guerra:
“Será a demonstração materializada de nossa resistência em contraposição às agressões a nós e nossas famílias sofridas e às mentiras sobre a segurança da fibra assassina propalada há anos por nossos inimigos”.
É mais um momento histórico na luta contra o amianto no Brasil, contra as empresas e o capital, que visam apenas o lucro em detrimento da saúde e vida de seus trabalhadores e trabalhadoras, e a sociedade como um todo.
O Memorial é uma homenagem aos que se contaminaram com a fibra assassina e um alerta para as futuras gerações, para que possam evitar que tragédias como essa não se repitam. Essa catástrofe sanitária do século 20 não pode se repetir. Osasco já foi o espelho da morte. Que seja agora o espelho do respeito à vida”
*Fernanda Giannasi é engenheira civil e de segurança do trabalho. Foi auditora fiscal do trabalho no hoje extinto Ministério do Trabalho e Emprego, em São Paulo. Atuou na inspeção das condições de saúde e segurança no trabalho com ênfase na insalubridade, letalidade e periculosidade dos agentes cancerígenos (amianto, nuclear, sílica) e outros tóxicos. Atualmente, atua na área de saúde, trabalho e meio ambiente para entidades de trabalhadores e vítimas de processos industriais.
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Publicação de: Viomundo