Eliara Santana: O tiro certeiro no sistema de desinformação bolsonarista
Por Eliara Santana*
Na quinta-feira, 17 de março, o ministro Alexandre de Moraes, afirmando que o Telegram ignora a Justiça brasileira, atendeu a um pedido da Polícia Federal e ordenou a suspensão do aplicativo no país.
O ministro usou como argumento o descumprimento de decisões judiciais que determinavam o bloqueio de contas do blogueiro Allan dos Santos.
A decisão envolve controvérsias, pode dar margem a várias discussões sobre interferência na comunicação, na liberdade de expressão, sobre judicialização, enfim, há muitos aspectos.
No entanto, é preciso registrar: o Telegram não adotou medidas para combater a viralização de desinformação – isso é fato notório –; além do mais, não há representação do aplicativo no Brasil, ou seja, ele não está sob o mando da legislação brasileira. E sim, o aplicativo abre espaço sem controle não somente para desinformação, é bom dizer. Portanto, a medida do ministro tem caráter legal.
Dito isso, vamos voltar um pouquinho a algumas questões para entender a importância da medida e o significado dela.
A partir de 2020, grupos e canais políticos tiveram um aumento muito expressivo no Telegram.
De acordo com levantamento feito por um estudo da UFMG, coordenado pelo pesquisador Fabrício Benevenuto, 92,5% dos usuários da rede social que seguem temas políticos estão em canais bolsonaristas – o que totaliza quase um milhão e meio de seguidores.
A mesma pesquisa indica que o volume de mensagens nos grupos monitorados teve um aumento de mais de 500% entre 2020 e 2021.
Os grupos do Telegram podem ter até 200 mil membros – os do Whatsapp têm até 256 membros.
Os canais (com listas de transmissão) não têm limite de membros. O canal do presidente Bolsonaro, em junho de 2021, tinha mais de 700 mil membros.
A pesquisa da UFMG também relacionou os picos de mensagens a momentos políticos acirrados, geralmente de embate de Jair Bolsonaro ou do governo com as instituições.
Muito bem, produzir conteúdo para alimentar todos esses canais e disseminar desinformação com um alcance gigantesco não é coisa feita espontaneamente, por amadores, sem dinheiro.
É preciso estrutura, e para isso, é preciso muito dinheiro, ou seja, para ser efetiva, a estrutura de desinformação precisa ter financiamento – privado ou público ou ambos. Esse é um primeiro aspecto para entendermos a complexidade da decisão do ministro.
Em março de 2021, uma comitiva do governo federal, com 10 pessoas, foi até Israel para testar um spray contra Covid – cujos estudos eram bem preliminares.
O assunto nunca andou adiante e foi questionado – sem explicações – durante a CPI da Covid.
A comitiva, bancada por dinheiro público, não contribuiu para nada no tocante à doença. Mas houve encontros de membros do grupo com empresas responsáveis por equipamentos e esquemas de espionagem.
Em maio de 2021, o vereador Carlos Bolsonaro, articulador do gabinete do ódio, se envolveu numa disputa com o alto comando militar do país para comprar um programa de espionagem, o Pegasus, que possibilita o monitoramento de empresas e pessoas.
Em reportagem publicada no dia 17/01 deste ano, o jornalista Jamil Chade denunciou que o gabinete do ódio do governo Bolsonaro está interessado em uma poderosa tecnologia espiã desenvolvida por empresas de Israel.
De acordo com a matéria, um assessor ligado ao vereador Carlos Bolsonaro conversou com as empresas DarkMatter e Polus Tech.
Em fevereiro deste ano, Carluxo integrou a comitiva de Jair que foi à Rússia.
Até agora, a despeito do pedido de explicação por parte do ministro Alexandre de Moraes – atendendo a pedido do senador Randolfe Rodrigues –, o Planalto não deu qualquer explicação plausível para a ida de Carlos Bolsonaro na comitiva do pai.
No entanto, a viagem encheu o TSE de preocupações. Não é segredo que a estrutura de desinformação bolsonarista busca apoios de peso no mercado internacional – como Steve Bannon e os hackers russos, por exemplo.
Também não é segredo que Carluxo é o articulador e mantenedor do gabinete do ódio e responsável pela articulação das redes sociais bolsonaristas. Essas articulações são um segundo aspecto importante para entendermos os últimos passos do ministro Alexandre de Moraes.
Vamos ao terceiro aspecto: Allan dos Santos.
O blogueiro, um dos grandes articuladores da extrema-direita bolsonarista está foragido nos EUA.
De lá, livre, leve e solto, ele tem produzido muitos e muitos vídeos criticando pesadamente o ministro Alexandre de Moraes e disseminando fake news.
O blogueiro migrou para o Telegram e segue fazendo vários ataques às instituições – ou seja, ele permanece alimentando a máquina de fake news bolsonarista.
E essa máquina, não se enganem, é responsável pelo fato de Jair Bolsonaro – com mais de 650 mil mortos pela pandemia, desemprego em alta, pessoas comendo pé de galinha, milhares de pessoas morando nas ruas, queda na renda, PIB negativo – estar com praticamente 30% de intenções de voto, segundo as últimas pesquisas.
Muito bem, todos esses aspectos e fatos relacionados se juntam para explicar a decisão do ministro Alexandre de Moraes em relação ao Telegram – na quinta, dia 17/03, o ministro proibiu a rede social no Brasil, decisão que foi revogada depois de o aplicativo dar algumas explicações e retirar de circulação um vídeo de Jair Bolsonaro atacando as urnas eletrônicas.
Pela primeira vez, vejo uma ação mais efetiva de combate à desinformação. Uma ação certeira de Alexandre de Moraes, que assume o TSE em agosto.
A ação não mirou pessoas, nem plataformas somente, mirou um sistema de desinformação; o ministro parece compreender de fato o que significa esse sistema, como ele está estruturado (o ecossistema de que já falei aqui algumas vezes) e o impacto desse funcionamento para a democracia de um modo geral, não apenas para as eleições.
Claro que a medida não resolve o problema, que é gigantesco; claro que a medida é controversa e pode suscitar questionamentos, mas a ação do ministro indica um caminho que será seguido e, sobretudo, indica que Alexandre de Moraes sabe onde está o problema.
E ele se localiza na montagem estruturada desse sistema de desinformação bolsonarista, dessa rede, que se intensifica a partir de 2018 – um sistema estruturado que conta com um grande financiamento.
Uma rede que não é amadora, que tem várias pontas e articulações, que tem propósitos e uma capilaridade impressionante.
Uma rede estruturada de desinformação que determinou os rumos da eleição de 2018 – inventando e disseminando, por exemplo, a a ideia de um kit gay.
Claro que essa rede teve também o apoio de um ex-juiz que estava de olho em ministério e indicação para vaga no Supremo e também de estruturas da mídia tradicional. Portanto, uma rede poderosa
É um sistema poderoso e perigosíssimo, que impacta vários aspectos da vida nacional, não apenas nos processos eleitorais – vejam que o Brasil tem hoje a pior cobertura vacinal no país, pais estão deixando de vacinar os filhos; pessoas durante a pandemia acreditaram que remédio para verme e piolho era capaz de combater o coronavírus.
É um sistema poderoso e estruturado que se alicerça em crenças, pauta moral e medos, que tem financiamento pesado, inclusive oficial, e um poder incrível de disseminação. Por tudo isso, só tenho a celebrar a decisão de Alexandre de Moraes.
*Eliara Santana é jornalista e doutora em Linguística pela PUC/MG
Publicação de: Viomundo