Democracia está em permanente disputa e deve ser exercida cotidianamente, afirmam especialistas

Democracia é um campo de batalha. Está em permanente disputa. Há quem queira restringí-la e há quem queira que avance rumo a novos direitos e contemplando novos atores. Visões que estão explícitas no atual momento político do Brasil, realçadas pelo ano de eleições que podem mudar os rumos da nação.

Não é de agora que movimentos populares e da classe trabalhadora chamam a atenção para o risco que a democracia corre no país. No final de julho, foi lançada a “Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito!” que, em menos de uma semana, já tinha mais de 600 mil assinaturas e será apresentada nos atos contra o governo Bolsonaro marcados para 11 de agosto.

A fim de entender o que é a democracia como a conhecemos hoje e os riscos que a sociedade corre quando as pessoas preferem não exercer este “poder do povo”, Brasil de Fato RS conversou com dois especialistas: a professora de Serviço Social e integrante da Rede Solidária São Léo Marilene Maia, e o sociólogo e diretor do Instituto Democracia e Direitos Fundamentais, Jorge Branco.

Confira a entrevista na íntegra:

Brasil de Fato RS – Na visão de Florestan Fernandes, a democracia brasileira não era completa, pois não chegava à periferia, às camadas mais pobres da população. A democracia efetiva seria aquela que levasse a todos o direito à alimentação, à moradia e à educação. Para que serve a democracia?

Marilene Maia – Vale retomarmos esta palavra. Do grego demokratia – demos, significa povo; kratos significa poder. Em que pesem todas as variantes, limites e possibilidades do poder do povo na Grécia antiga, de onde temos sua origem, democracia é um termo e um tema que coloca em cheque a questão do poder exercido por mais de uma pessoa.

A democracia nos interpela ao reconhecimento e valorização das relações entre as pessoas e destas com a natureza, assim como entre as pessoas e as instituições. A democracia nos convoca à convivência, a partir de alguns pressupostos: liberdade, igualdade e poder decisório.


A assistente social e professora de Serviço Social na Unisinos, Marilene Maia, integra a Rede Solidária São Léo, que surgiu no início da pandemia num esforço de prestar apoio a ocupações do município de São Leopoldo (RS) / Foto: Arquivo Pessoal

Diante disso, a democracia se apresenta como um sistema de relações e de convivências que exige transparência e decisão. Trata-se, por isso, de uma experiência política que está em experiência em diferentes cantos do mundo com diferentes formatos.

São muitas as adjetivações de democracia, entretanto, na política brasileira ganham evidência a democracia representativa e a democracia participativa. O processo eleitoral reúne um pouco disso, já que todos os cidadãos são convocados a participar do processo votando, porém votando em alguns representantes da população para os poderes Executivo e Legislativo. Neste cenário, muitos são os questionamentos sobre os limites do sistema democrático brasileiro.

É a ideia de igualdade que forma o sistema democrático

Jorge Branco – É um tema muito relevante na ciência política. Fazemos uma confusão, que tem base histórica, mas também ideológica, entre o sentido geral e substantivo da democracia e os sistemas democráticos realmente existentes. Os sistemas democráticos são construções políticas, produto da correlação de forças entre classes sociais, portanto resultado histórico, que significa um regime hierárquico e que estabelece a hegemonia de uns setores sobre os outros.

Em relação aos sistemas e regimes democráticos, não podemos falar em liberdades substantivas necessariamente. Eles têm origem no pensamento liberal e nas revoluções burguesas antiaristocráticas para dizer que formalmente os seres humanos eram iguais entre si. E num confronto com a ideia aristocrática da diferença divina entre o rei e os súditos, entre o senhor feudal e os camponeses. Portanto, a ideia de igualdade é que forma o sistema democrático. Então, cidadãos iguais e livres podem decidir os destinos da comunidade. Mas isso sempre esteve associado, principalmente com esta origem histórica, à detenção da propriedade. No sistema feudal e nas monarquias absolutistas, a propriedade era aristocrática. Portanto, o sistema democrático permitiu à nova classe emergente que se tornou hegemônica, a ter propriedade sobre a terra, sobre a indústria, sobre o comércio. Se os homens são livres eles também são pagos pelo seu trabalho. E, a partir daí, gerou-se o sobretrabalho.

A ideia de Florestam Fernandes se relaciona ao sentido substantivo e não ao sistema. À ideia de que a igualdade não pode ser determinada apenas pela formalidade da lei para, depois, a dinâmica da economia estabelecer a desigualdade através da propriedade e da riqueza. Então modernamente, a partir do século 20, a esquerda e as classes trabalhadoras se apropriaram da ideia e do termo da democracia para falar de sociedade igual, conquistas sociais, aproximação entre mais pobres e mais ricos. Ou até mesmo eliminação dos mais ricos, de uma classe mais rica. A própria Revolução Russa fala em democracia da maioria. Esta é a distinção mais essencial que a gente pode fazer.

O nosso exercício da política acontece a todo o momento

BdF RS – Muita gente não quer nem ouvir falar em “democracia” ou “política”. Mas o que vai acontecer se ela mostrar desprezo pela política e pela democracia?

Marilene Maia – É importante nos darmos conta que todos/as/es, mesmo aqueles/as que não querem falar em política, estabelecem relações e, por consequência, estão fazendo política. Gosto de dizer que estas relações, que são sociais, culturais, econômicas e, também, políticas podem estar afirmando ou negando a democracia. De forma simplificada, podemos dizer que nossas relações e/ou convivências podem ser mais horizontalizadas e, por isso, democráticas, ou verticalizadas e, assim, autoritárias.

Podemos com isso dizer que a nossa condição humana e de convivência exige protagonismo que é também político. Às vezes, nos equivocamos pensando que a política acontece apenas por meio da política institucional, dos partidos, dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, assim como dos processos eleitorais. Por aí passam algumas dimensões da política, que é menor e também maior. Insisto, o nosso exercício da política acontece a todo o momento, em meio às múltiplas relações com outras pessoas, com a natureza, com o Estado e a sociedade e suas diferentes organizações.

Negar tudo isso é negar a vida e a nossa condição humana, de cidadania e de “terranos”, ou seja, seres com participação na atenção, cuidado e direção do planeta Terra.

E, neste sentido, penso que estamos crescendo no entendimento e na participação da cosmopolítica, que é construída entre os humanos e todos os seres da natureza.

O desprezo pela democracia e a política tem origem no pensamento conservador

Jorge Branco – Podemos perceber com essa ascensão da extrema direita, que ela é calcada num processo político de rejeição à democracia e rejeição à política. É um ato de disputa de valores e de disputa ideológica. O vocabulário é um elemento da disputa ideológica, da disputa comunicacional, da esfera pública. O desprezo pela política e pela democracia, no entanto, não é relacionado somente à conjuntura atual.

Aparece essa rejeição em pesquisas sobre comportamento político há décadas. Tem sua base de explicação na hegemonia do pensamento conservador que formou a sociedade brasileira capitalista e republicana nos séculos 19 e 20. Ou seja, política é algo que era, primeiro, feito pelos senhores proprietários que sabiam o que era melhor para nós. E nos diziam o que fazer. Depois, para esconder as verdadeiras relações dos negócios, a política começou a ser tratada na esfera da comunicação em especial como algo sujo: “Ah, esse cidadão faz muita política”, quando se quer dizer que a pessoa mente para os outros.


Jorge Branco é sociólogo, mestre e doutorando em Ciência Política. Diretor Executivo da Democracia e Direitos Fundamentais / Foto: Arquivo pessoal

Também a rejeição à democracia está relacionada com o ascenso que a esquerda teve na pauta democrática durante o século 20. A partir da Segunda Guerra Mundial, a democracia passa a ser uma bandeira dos movimentos dos trabalhadores. Por direitos, de voto para mulheres, de salário igual também, de redução da jornada de trabalho, de 13º salário, de férias remuneradas, mais sistema público de saúde e de educação. Tudo foram conquistas, principalmente, do século 20 depois da Segunda Guerra e no contexto de Guerra Fria. Para fazer os trabalhadores não se encantarem pela perspectiva socialista que a União Soviética representava naquele período.

Então, a rejeição à política e à democracia é também luta política. Para tirar os trabalhadores do centro da política e permitir que, em nome do bom governo, se mantenham as regras de responsabilidade fiscal, sonegação, isenções fiscais, superávit primário para pagar a dívida. Ao invés de investir em saúde ou diminuir a jornada de trabalho, aumentar a massa de salários. Portanto, é pura política, pura ideologia e pura dominação.

É preciso de política para aliar a classe operária típica aos trabalhadores de aplicativos

BdF RS – Existe uma frase que diz que “Se você não gosta de política você vai ser mandado por alguém que gosta”. Concorda?

Marilene Maia – A palavra “política” tem também sua origem na Grécia e designava as relações entre os cidadãos que viviam na pólis, ou seja, na cidade. Assim, a política acontece onde existem convivências. E mais, hoje a política é a mediação que organiza as vidas e as convivências dos humanos, suas instituições e de todos os seres da natureza. Negar esta condição e participação pode implicar na negação da sua experiência e, por consequência, promover a exclusão de sua existência, dos acessos e garantias de vida.

Diante disso, somos desafiados a ser “parte” na direção que queremos dar a nossa vida e às outras “partes” que conosco convivem. Para isso, não há outro jeito se não pela política.

Jorge Branco – As relações da política são essenciais para que se possa, do ponto de vista das classes trabalhadoras, construir um novo bloco para substituir o bloco de poder que tem a hegemonia do capital financeiro. É preciso de política para aliar os operários metalúrgicos aos operários do sapato. Ou a classe operária típica com a nova classe de trabalhadores precarizados, de trabalhos de aplicativo. Da mesma forma, é preciso política para unir trabalhadores urbanos aos rurais. Isso é relação política. Num sistema democrático, em especial quando a hegemonia ainda é conservadora, ainda é do capital financeiro, como a que a gente vive, a política é essencial para que se possa estabelecer conquistas de direitos no Parlamento e no governo.

Então, quando a classe trabalhadora e a maioria da população refuta política, demoniza política e democracia, está permitindo que os especialistas políticos, os intelectuais orgânicos das classes dominantes, fiquem sozinhos no cenário e tenham grande vantagem para manter a disputa ideológica, mas também conquistas muito práticas como aprovar o teto de gastos (públicos).

Hoje, apesar dos avanços, a democracia ganha novas ameaças

BdF RS – A filósofa Marilena Chauí observa que a democracia está sempre em disputa, está sempre em movimento, não é uma coisa parada no tempo. O que acha? 

Marilene Maia – Sim, a democracia é um dos jeitos de se fazer política e este jeito está em disputa o tempo todo com outros jeitos e agentes. Existem diferentes jeitos e agentes políticos. Propósitos. valores e mediações distintas se colocam em disputa. Hoje, apesar dos avanços alcançados desde os anos 1980, que implicaram na afirmação da democracia como sistema de governo do Estado brasileiro, a democracia ganha novas ameaças. As diferentes formas de fazer política e as disputas eleitorais dos últimos anos têm demonstrado isso.

Somos desafiados à retomada da história, análise dos avanços e recuos na democracia, seus agentes e perspectivas contemporâneas. Participar destes processos de análise se constitui como critério para os necessários avanços para a democratização da democracia como relembra permanentemente (o sociólogo) Boaventura de Sousa Santos. E democracia exige materialidade e não só retórica.

Quando vieram as férias remuneradas, houve gente dizendo que iam acabar com a economia

Jorge Branco – Marilena Chauí traz uma compreensão perfeita. Ao dizer isso, está compreendendo e está fundindo duas dimensões do termo democracia, o sistema e o substantivo. Em um regime ou sistema político é possível fazer política, construir alianças para obter direitos. Mas esses direitos contradizem direitos dos poderosos, quando a gente, por exemplo, aumenta a licença-maternidade de seis meses para dois anos, e também a concede ao pai, transformando a licença em licença da criança, como fez recentemente a Islândia e seu sistema democrático. Pai e mãe ou duas mães ou dois pais ficam em casa com a criança por dois anos. Este direito gera descontentamento em quem perde dinheiro ou perde lucro com o aumento do custo dos direitos dos trabalhadores.

As férias, em alguns países, como os Estados Unidos, não são remuneradas. Já foram de 15 dias. Quando se conquistou 30 dias de férias remuneradas, houve gente que dizia, na época, que isso ia acabar com a economia brasileira, que não ia suportar um direito como esse. Então, é um processo de disputa. O ambiente democrático permite alianças, eventualmente até conquistar governos populares. Mas ele é um vai-e-vem, um progresso e um regresso, um passo adiante, um passo atrás.

Os trabalhadores não podem apostar em saídas conservadoras como aconteceu em 2018

BdF RS – Em que a democracia precisa avançar no Brasil e qual o papel do cidadão e do eleitor nisso?

Marilene Maia – É urgente e necessário o avanço da democracia com participação efetiva de todos os segmentos populacionais, dos diferentes territórios. E, em especial, daqueles que historicamente têm sido excluídos dos processos de afirmação da vida em suas múltiplas dimensões: ambientais, culturais, econômicas, políticas, religiosas, sociais…

Entendo que a democracia hoje nos convoca à construção de novas convivências ou, como diz (o antropólogo) Edgar Morin, a novas convivialidades. As disputas para o avanço da democracia vão muito além da esquerda e direita. Alguns valores necessitam ser os balizadores de sua análise e reconstrução. Um deles, que me parece urgente, está na justiça socioambiental. Novas exigências estão postas para isso: nova política, nova economia, nova cultura. Rostos e corpos invisibilizados e vozes devem compor a grande sinfonia da democracia, que necessita acontecer no Brasil, na América Latina e no mundo.

Repartir as experiências neste sentido, colocando-nos em um compromisso inadiável com a humanidade e o planeta, pode ser um importante objetivo para o nosso protagonismo político para este tempo.

Rostos e corpos invisibilizados e vozes devem compor a grande sinfonia da democracia, que necessita acontecer no Brasil, na América Latina e no mundo

Jorge Branco – Precisa avançar para deixar de ser um mero arranjo legal de direito como um sistema que permite a igualdade formal e o voto, para ser uma economia e um regime político que garantam a ideia de igualdade. Precisamos de mais direitos sociais no Brasil, menor jornada de trabalho, aumento real dos salários, distribuição de terra, ampliação da rede de educação pública, investimento em saúde pública e infraestrutura, educação e pesquisa, ciência e inovação. Essas conquistas geram dinamismo econômico e junto com os direitos garantidos pelo Estado brasileiro, pela democracia brasileira, garantem equidade social.

Os trabalhadores precisam apostar, portanto, em políticas distributivistas, democráticas, de investimento público e não mais em saídas conservadores como ocorreu no último pleito.


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Publicação de: Brasil de Fato – Blog

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