Dalva Garcia e Ione Ishii: De novidade, o Novo Ensino Médio só tem o nome e marketing; os alunos foram enganados

Por Dalva Garcia e Ione Ishii*

A memória é irmã do esquecimento.

Lembro-me de inúmeros produtos lançados no mercado que povoaram minha infância: elixir Biotônico Fontoura, Omo – a revolução para lavar as roupas… Claro!

Eu não poderia deixar de falar das balas Juquinha ou ainda da groselha vitaminada Millani, com os jingles que voltam à memória dos que já esqueceram do número de sua carteira de identidade, com todo respeito aos mais velhos.

Mas aqui me limitarei a um exercício simples: retomar as designações de uma etapa do Ensino Básico que já ganhou várias nomenclaturas e embalagens ao longo das últimas seis décadas.

Me refiro, especificamente, ao atual ensino médio ou Novo Ensino Médio, como está sendo vendido.

É o antigo curso Colegial ou Secundário, como era chamado. Ou, ainda, ensino de segundo grau.

Certamente quem tem mais de 60 anos neste “jovem país que vai para frente”, exterminando povos indígenas e assassinando lideranças populares, defensoras dos direitos humanos, já desistiu de designar essa etapa que antecede o ingresso na Faculdade ou Universidade.

Já ouvi inúmeras vezes: “meu neto ainda está na escola, naquela etapa do finzinho, quase na formatura para poder se formar na faculdade”.

“Quase na formatura para poder se formar na Faculdade” não é nem nunca foi contradição ou ignorância dos afastados dos jargões educacionais.

Aliás, para os “esquecidos” considerar como Básica essa etapa do ensino custou muita luta de educadores e sociedade civil.

Não me refiro à extensão de 8 anos de formação escolar para 11 anos que resultou na Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996.

Estou me referindo aqui a um cenário de indeterminações criado pelas políticas públicas de educação para esta etapa de ensino que se iniciou com o dever do Estado de contemplar os anseios de uma população que, embora pequena, sonhava ir além das agruras da alfabetização e dos conhecimentos fundamentais da tradição formal.

Chegar ao Colegial implicava – não muito tempo atrás – em concorrer no “vestibulinho” para obter uma vaga nas poucas escolas públicas que disponibilizavam essa remota oportunidade aos filhos de trabalhadores que conseguiam se safar do trabalho infantil, muitas vezes, escravo.

O Secundário ganhava outros objetivos vinculados ao objetivo de oferecer alguma inserção no mercado de trabalho através da educação tecnicista e os manuais de estudo dirigido.

O fracasso dessa tentativa fez surgir o “novo segundo grau” com certo teor de formação geral humanista no sonho da democratização do país.

Mas a fratura tinha criado cicatrizes profundas demais.

Filosofia, sociologia e psicologia aparecem como disciplinas optativas e o mercado editorial dos livros didáticos ganha força nas licitações governamentais.

Era bem ruim, mas eram livros que buscavam sintetizar algum tipo de ciência e não bíblias de edição barata como nas negociações do Ministério da Educação, como consta nas investigações do presente ano desse novo século.

Universalização do Direito à Educação e analfabetismo funcional foi o resultado desse cálculo não muito difícil de se equacionar.

Em 1996, a etapa é consagrada como Ensino Médio.

Mediocridade de discurso e circo de novas metodologias que avançam com o uso de recursos tecnológicos que chegam às escolas já sucateadas.

Salários de professores aviltantes e ultrajantes mas, mesmo assim, o vislumbre de alunos ao acesso às Universidades Públicas por meio de políticas de inclusão: ciência sem fronteiras, pró-UNE, financiamento universitário, cotas raciais.

Mas era preciso pensar o NOVO de NOVO.

Nova nomenclatura, nova carga horária, novo currículo.

Por que pensar o NOVO de NOVO?

Talvez por que esses jovens, mesmo diante do sucateamento crescente das escolas e profissionais da educação submetidos à miséria intelectual incessante, descobriram a ação?

Tiraram as cadeiras pobres e podres das salas de aula e as colocaram nas ruas: não só em São Paulo, mas em todo país.

Ocuparam o espaço público para denunciar uma política educacional que sempre os negligenciou nesta faixa etária.

Alguns afirmam: “O NOVO veio para ficar.”

Se veio para ficar já veio velho, eu diria. Mas dizem que é o início.

É fato que não há professores, recursos tecnológicos.

Arrumaremos, dizem os gestores!

Força tarefa para contratação temporária de profissionais sem qualificação adequada e sem vínculo com escolas é a solução imediata aqui em São Paulo, aonde o novo é nomenclatura de uma antiga política conhecida.

Mas, é preciso respeito e cuidado até porque não se pode jogar a criança com a água do balde.

O balde foi pintado com cores vibrantes, nova nomenclatura, mas o ditado é o mesmo.

A água é a mesma como o Novo OMO multiação, um pouco mais cara, com designer mas está suja ainda.

Ganhou NOVO NOME.

Como na canção: “o que era novo, jovem, hoje é antigo, precisamos todos rejuvenescer…” talvez com menos atenção às novas nomenclaturas oficiais e ouvindo quem de fato é jovem e ainda não engole os jargões oficiais.

Ou seja, lamentavelmente os alunos foram enganados por um novo que não enfrenta antigos problemas estruturais e ignora todos os esforços de décadas de trabalho.

Mesmo que por pouco tempo, produtos novos apresentam alguma qualidade para fidelização dos consumidores.

O novo ensino médio só fideliza as editoras e as empresas que vendem produtos educativos.

De novidade, portanto, o Novo Ensino Médio só tem o nome.

Coisa típica de marqueteiros.

Deram nova embalagem ao que de tão antigo veio para ficar.

Com um detalhe: o produto do NOVO — leia-se conteúdo — é muito pior, mais deteriorado e mais caro que o antigo.

*Dalva Garcia é professora de filosofia da rede pública de São Paulo.

Ione Ishii é professora doutora pela USP e efetiva de biologia da rede pública do estado de São Paulo.

Publicação de: Viomundo

Lunes Senes

Colaborador Convidado

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