Jair de Souza: Meditando sobre o papel da religião
Meditação sobre o papel da religião
Por Jair de Souza*
Pelo que podemos deduzir através dos estudos históricos já realizados, as práticas de cunho religioso sempre estiveram presentes em boa parte dos integrantes de todas as sociedades humanas conhecidas.
As razões que embasam esta flagrante constatação são debatíveis e, em grande medida, controversas.
Há quem defenda que o sentimento religioso foi introduzido no ser humano precisa e deliberadamente pelo próprio Criador, ou seja, por Deus.
Outros, por sua vez, argumentam que estas preocupações com questões ditas religiosas derivam-se do medo e da frustração do ser humano ao pressentir que teria tão somente uma passagem breve e limitada em relação com a eternidade vislumbrada.
Assim, a crença na existência da possibilidade da continuidade da vida para além de nossa inevitável morte física serviria como uma espécie de consolo que nos ajudaria a suportar com menos desespero a certeza de que a vida concreta em que estamos é limitada, mas poderia ser estendida por prazo ilimitado ao ser transposta a um nível espiritual.
Portanto, por meio da atuação de Deus, os que creem em sua existência aspiram a atingir esse estado de imortalidade, o qual se alcançaria através de nossa alma, desde que esta esteja em confluência com os desígnios de Deus.
Em consequência, é de suma relevância determinar as características de Deus e quais seriam seus desígnios para o conjunto da humanidade e para cada um de nós em particular.
Existem religiões politeístas (que acreditam na existência de vários deuses) e monoteístas (as que acreditam que há tão somente um único Deus).
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Entretanto, em qualquer dessas variantes, o significado de Deus, ou dos deuses, que merece e deve ser louvado e pregado está sempre associado com o bem da humanidade.
Entes espirituais que advogam pela maldade nunca representam o caminho que os fieis dessas religiões deveriam trilhar. É, por exemplo, o caso do diabo, para os que seguem religiões afiliadas ao cristianismo.
Em outras crenças, pode haver espíritos do bem que disputam com os do mal pela fidelidade dos seres humanos. Moralmente falando, só os do bem são dignos de nossa adesão e lealdade.
Então, como saber se estamos lidando com uma divindade do bem ou do mal?
Para tirar a conclusão quanto a isto, é fundamental que tenhamos clareza sobre os desejos e propostas com as quais a tal divindade chega a nós.
Nenhum espírito do bem poderia conclamar a seus seguidores que praticassem atos que estivessem evidentemente associados com a maldade.
Mas, como definir se algo que nos há sido exigido em nome de alguma divindade se trata de bondade ou maldade?
Com respeito a isto, podemos e devemos recorrer a uma qualidade com a qual apenas os seres humanos estão dotados: o uso da razão.
Qualquer pessoa que esteja imbuída de um sentimento religioso e acredita que o ser humano é fruto da criação de Deus deve também aceitar que essa capacidade de refletir nos foi atribuída para que pudéssemos aferir as diferenças entre o bem e o mal.
Se assim não fosse, para que nos serviria esta tão importante faculdade?
Em vista do que acabamos de expressar, é simplesmente inaceitável que um ser humano fiel a Deus acate qualquer ordem ou determinação desse mesmo Deus, ou de alguém que se diga seu preposto, quando esta se mostra nitidamente contrária ao que nossa razão entenderia como sendo justa.
Um Deus justo e todo poderoso deve saber muito bem que ele mesmo criou o ser humano com a capacidade de analisar a situação antes de acatar ou rechaçar alguma ordem proferida.
Em consonância com o que acabamos de mencionar, um seguidor sincero de Jesus procuraria atuar em conformidade com o comportamento que Jesus sempre adotou quando se deparava com situações em que parecia haver discrepâncias entre o que estava estipulado como sendo opiniões de Deus e o que ele próprio entendia ser o correto de acordo com seu raciocínio.
Quem não se lembra das inúmeras passagens de sua vida nas quais Jesus era cobrado por fazer coisas não aceitas nos escritos do Velho Testamento, mas que faziam todo sentido em sua visão e razão humanitárias?
O caso da proibição de fazer curas aos sábados é tão somente um dos vários exemplos que podemos citar.
Com base nesta mesma consideração, Jesus se contrapôs decididamente aos que afirmavam que os judeus constituíam o povo escolhido de Deus.
Ele jamais poderia aceitar que um pensamento tão racista e discriminador pudesse ser proveniente de um Deus associado com o bem e a justiça.
Não bastava que tal proposição estivesse escrita nos textos considerados sagrados para que Jesus concordasse com tamanha aberração.
A boa razão com a qual ele estava dotado lhe dizia que o povo digno de Deus seriam todos os que praticassem a obra do bem, da justiça e da solidariedade, independentemente de sua origem étnica ou nacional.
A condição fortuita de ter nascido no seio de certo povo jamais poderia servir como o fator determinante para isto.
Ninguém que se proponha a seguir fielmente o legado ministrado por Jesus pode se recusar a refletir diante de escritos que não parecem condizer com aquilo que nossa razão entenderia como sendo justo e aceitável para um Deus digno de nosso amor, respeito e obediência.
Por isso, tenho plena convicção de que Jesus jamais admitiria como válida de acatamento aquele pedido em Gênesis 22, no qual Deus exige que Abraão sacrifique a seu filho Isaque para dar prova de sua fidelidade.
É evidente que, em tal situação, Jesus simplesmente argumentaria que nenhum Deus bondoso e merecedor de nosso respeito nos faria uma exigência tão monstruosa e diabólica. Uma manifestação tão egoísta e desalmada como aquela só poderia emanar do diabo.
Com sua disposição de obedecer sem questionamentos aquela orientação tão medonha e monstruosa, Abraão deve ter causado muito desgosto a Deus. Seguramente, Jesus a teria rechaçado de imediato, por considerá-la ignominiosa e indecente.
Outra postura que confronta abertamente os ensinamentos de Jesus é o criminoso apoio que certas igrejas que se autointitulam cristãs dão aos sionistas genocidas do Estado de Israel em seu afã de exterminar o povo palestino e erradicar sua presença daquelas terras onde eles habitam há milhares de anos.
Sob a alegação de que Deus reservou aqueles espaços para o povo judeu, os colonialistas sionistas europeus invadiram a região com o amparo bélico dos Estados Unidos e das principais potências europeias.
Assim, há mais de 75 anos, o humilde povo palestino vem sendo expulso de suas casas e eliminado fisicamente.
É intolerável que o nome de Deus continue sendo usado por certas igrejas que se dizem cristãs para justificar a matança terrível de centenas de milhares de seres humanos.
Ainda mais dor nos causa quando sabemos que a grande maioria das vítimas mortais da agressão sionista é composta por crianças e mulheres.
Como é possível que algum seguidor sincero de Jesus possa concordar com tanta perversidade?
Jesus jamais aceitaria transformar a figura de Deus na de um corretor de imóveis que oferece condições especiais a seus clientes colonialistas europeus e condena ao abandono e à morte os milhões de humildes palestinos. Essa indecência nada tem a ver com Jesus!
O que pretendo deixar evidente com este texto é que não há nada de errado em ter uma religião e cultuá-la normalmente.
O que não podemos tolerar é que a religião sirva como um instrumento para a prática de crimes e injustiças contra aqueles que mais deveriam contar com o apoio dos seguidores de Jesus.
Não é possível ser fiel a Jesus praticando a obra do diabo!
*Jair de Souza é economista formado pela UFRJ; mestre em linguística também pela UFRJ.
*Este texto não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.
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Publicação de: Viomundo