Trabalhadores da enfermagem ganham salários a partir de R$ 774 em Pernambuco

O estatuto dos funcionários públicos civis do estado de Pernambuco estabelece: “Nenhum funcionário poderá perceber vencimento inferior ao maior salário mínimo vigente em Pernambuco”. Mas não é o que acontece com os técnicos e auxiliares de enfermagem.

O salário-base (equivalente ao vencimento, ou seja, sem o acréscimo de benefícios e gratificações) recebido por esses profissionais da rede estadual não chega perto de R$ 1.212. Para os servidores de início de carreira, o valor é de R$ 774. A esperança dos trabalhadores repousa na instituição de um piso salarial nacional, demanda que há 20 anos os trabalhadores da enfermagem lutam para conquistar, e da qual nunca estiveram tão perto.

É que, em 23 de fevereiro, o Projeto de Lei 2564/2020, que estabelece um piso nacional para a enfermagem, foi aprovado pelo grupo de trabalho (GT) que discute o tema na Câmara dos Deputados e agora segue para votação no plenário da Casa. O projeto enfrenta resistência do governo Bolsonaro e de empresários da saúde.

Até fevereiro, o valor de R$ 774 era o salário-base da técnica de enfermagem Andrea Vasconcelos, de 34 anos, pela jornada de 30 horas no Hospital da Restauração (HR), na área central do Recife, onde trabalha como plantonista. Agora em março, ela avançou no Planos de Cargos, Carreiras e Vencimentos, mas a remuneração, somando todas as gratificações, é de R$ 1.257, valor pouco superior ao salário mínimo.

Para manter o lar, ela e o marido, que também é profissional de saúde, fazem malabarismos com os vínculos empregatícios que acumulam. Além de trabalhar no HR, ela é diarista em uma Unidade de Saúde da Família (USF), enquanto ele tem três empregos. A vida, diz ela, se resume a “trabalho, casa, filho e pagar conta”.

“A gente fica super exausto, com uma rotina em que a gente mal se vê. Quando um está com os meninos, o outro está trabalhando. A gente não consegue ter lazer. Quando tem um pouquinho de folga, não tem dinheiro pra sair com os meninos. Até para ir no médico não há tempo”, desabafa. O sentimento de cansaço nunca vai embora. “Onde me encosto, dá vontade de dormir. Mesmo que eu durma o dia todo na minha folga. É como se eu estivesse no corpo de uma pessoa de 70 anos”, completa.

Mesmo após seis anos de atuação, o técnico de enfermagem Mário Robson Soares, de 41 anos, também lotado no HR, ganha apenas R$ 859 de salário base. De adicional, recebe R$ 51 por perigo laboral; gratificação de plantão de R$ 260 de gratificação; e vale alimentação de R$ 71. Tudo junto dá R$ 1.241, o que não dá conta das despesas da família, composta por ele, um filho e a esposa profissional de enfermagem, gestante de cinco meses.

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Mário Robson Soares precisa conciliar o trabalho de técnico de enfermagem com o de condutor de ambulância / Arquivo pessoal

Mário é mais um que precisou assumir um segundo emprego; no seu caso, como condutor de ambulância. “Eu tenho que ter outro vínculo para pagar o financiamento do imóvel, escola das crianças, alimentação, água, luz. É como eu consigo melhorar meu orçamento. E, nesses dois, ainda falta”, conta ele, que, ao fim do mês, ganha, no total, cerca de R$ 2,2 mil. 

Em mais um capítulo da jornada de luta por direitos, os profissionais da enfermagem realizaram, nessa terça-feira (8), no Recife, um ato em favor da aprovação do Projeto de Lei (PL) 2564/2020, aprovado no Senado e em tramitação na Câmara Federal, que institui o piso salarial nacional dos Auxiliares e Técnicos de Enfermagem, Enfermeiros e Parteiras. O texto propõe um piso para jornada de 30 horas de R$ 4.750 para enfermeiros e o proporcional a 70% do valor para técnicos (R$ 3.325) e 50% (R$ 2.375) a auxiliares e parteiras. 

Mário foi um dos dois mil trabalhadores que participaram da manifestação, articulada pelo Sindicato Profissional dos Auxiliares e Técnicos de Enfermagem de Pernambuco (Satenpe), Sindicato dos Enfermeiros de Pernambuco (Seepe), Conselho Regional de Enfermagem de Pernambuco (Coren-PE) e Associação Brasileira de Enfermagem de Pernambuco (Aben-PE) – que juntos formam o Fórum de Enfermagem Pernambucana.

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No meio da passeata, o técnico recebeu uma ligação da esposa. “Ela disse que tinham cortado a luz. Vai ficando uma conta pendurada, fica outra, e isso acontece”, relatou. Com o estabelecimento do piso salarial proposto para sua profissão, Mário ganharia um salário maior que o que recebe hoje em dois empregos, e, consequentemente, teria alguma qualidade de vida.

“Se melhora de forma igualitária em todo país, vai se deixar de ter necessidade de trabalhar 24, 36, 72 horas para receber o valor que está sendo colocado. Eu tenho 2 empregos, mas tenho colegas em três, quatro, e que ainda fazem uma coisa por fora, vendendo picolé, água, roupa”, relata.

Não raro essa situação acarreta em graves problemas na vida do trabalhador. “Afeta em tudo. Se a gente quiser estudar para se qualificar para outra profissão, a gente não consegue, porque o salário é muito baixo para conciliar com o pagamento de uma faculdade ou especialização. As consequências atingem diretamente a saúde, a gente vai se acabando aos poucos ergonomicamente por conta de excesso de trabalho, tem estafa mental, cansaço físico”, elenca. 

Somadas à sobrecarga, o presidente do Satenpe, Francis Hebert, destaca ainda as péssimas condições de trabalho, que, no nível público, são “caóticas”. “A gente vem mostrando a falta de insumos, hospitais sucateados, com ambientes insalubres”, cita. Na rede estadual, também não há adicional noturno ou de insalubridade. A manobra de usar as gratificações para fazer a remuneração chegar ao salário mínima é criticada pelo sindicalista.

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Profissionais da enfermagem realizaram, no último dia 8, um ato em favor da aprovação do Projeto de Lei 2564/2020 no Recife / Divulgação/ Satenpe

 “Quando junta, ele diz que tudo que o profissional recebe é salário, e diz que é constitucional. Mas a gente vai de encontro, porque o que chamamos de piso salarial é o salário base, as gratificações deveriam ser extras, e o Governo as tem como incorporação de trabalho”, reforça.

Na rede privada, a situação é um pouco melhor, com um piso salarial em torno de R$ 1,3 mil, comenta. Mesmo assim, valor muito abaixo do ideal e do apresentado na PL, e que também obriga o profissional a acumular vínculos empregatícios.

Para ele, as relações de trabalho dos profissionais de enfermagem de nível médio (técnicos e auxiliares) são mais complicadas. “Nós não assumimos cargos de chefia. Trabalhamos sempre no desempenhar das atividades, ou seja, na assistência direta, então a coisa fica fica mais precarizada, não só da sobrecarga do trabalho, mas porque não existe condição de trabalho. Para se ter ideia, todos os profissionais sofrem da síndrome de burnout. Somos a categoria que mais morreu na pandemia e mais se infectou, com 60% dos profissionais contaminados com a covid-19”, afirma. 

A reportagem do Brasil de Fato Pernambuco perguntou à Secretaria Estadual de Saúde (SES) com que base legal o Governo oferece esse salário base aos profissionais e se há previsão de aumento. Em nota, a pasta respondeu que tramita atualmente na Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe) um projeto de lei que “concede medidas de valorização profissional e define reajuste para servidores públicos estaduais, incluindo a área da Saúde”.

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Enfermagem: “Jornadas de 40 horas viram de 120h”

Isso não é dizer que os enfermeiros sofram menos. A rotina de acúmulo de trabalho, sobrecarga física e mental e baixos salários acompanha os profissionais de nível superior. A enfermeira Janekelle Barbosa de Lima, de 43 anos, é servidora estadual no Hospital Regional do Agreste (HRA) e servidora municipal em uma Unidade de Saúde da Família (USF), ambos localizados no município de Caruaru, Agreste de Pernambuco. Seus colegas de trabalho também vivem na mesma situação. 

“Dificilmente se encontra um enfermeiro que só tem um vínculo. Os que tem, é porque não conseguiram outro emprego. A maioria tem dois ou três para conseguir sobreviver com o mínimo de qualidade de vida– aliás, para pagar as contas, porque qualidade não tem”, afirma.

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Ao longo da carreira de 19 anos como enfermeira, Janekelle observou a crescente precarização do trabalho. Ela conta que, à época, recebia o equivalente a 10 salários mínimos pelo Programa Saúde da Família (PSF). Agora, em 2022, seu salário base é de R$ 1.481, não ultrapassando R$ 4 mil com as gratificações. “Era como se eu ganhasse cinco vezes mais que hoje, realizando o mesmo trabalho e com carga horária menor. Estou mais sobrecarregada, com menos tempo para família e sem conseguir pagar as contas”, relata.

No estado de Pernambuco, a remuneração também estacionou sem avanços. “Eu faço a comparação com meu marido, que fez concurso de agente penitenciário. Mesmo ele sendo nível médio, hoje em dia ganha mais que eu, sendo nível superior. O salário do enfermeiro estagnou e em outras áreas aumentou, é uma miséria total. Temos o pior salário dos enfermeiros do Brasil em Pernambuco”, comenta.

O casal se desdobra para tentar proporcionar boas condições para os três filhos – o mais velho de 15 anos, e as gêmeas de 11. “Mantê-los em escola particular tem sido o maior desafio nosso. Tudo o que a gente almeja é dar um bom ensino para que eles tenham uma qualidade de vida melhor que a nossa. Esse ano a gente está fazendo das tripas coração para consegui-los manter na escola, coisa que ano que vem a gente não sabe se vai conseguir.”

Assim, o pleito pela aprovação do piso salarial é um pedido de socorro. “Os profissionais estão trabalhando numa linha de fogo, em condições péssimas, sem receber aumento há muito tempo, com os piores salários, onde a gente não é escutado”, reclama a enfermeira.


A enfermeira Janekelle Lima viu seu salário estagnar ao longo de quase 20 anos de carreira / Arquivo pessoal

A presidente do Seepe, Ludmilla Outtes, reitera que os baixos salários submetem os profissionais a um alto nível de estresse físico e psicológico. “O que são jornadas de 40 horas semanais viram de 80h, 100h, 120h, devido a esse acúmulo de vínculo, e ainda assim não se consegue garantir uma renda familiar adequada. Somos um dos maiores índices de depressão e burnout, e isso se agravou principalmente depois da pandemia. Tem vários profissionais afastados com licença médica por esses problemas”, denuncia.

No interior do Estado, a situação é ainda pior que na capital. “Os hospitais e unidades de saúde são bem mais precarizados, tem bem menos profissionais, e, por não ser foco da mídia, acaba a gestão abrindo mão, não tem tanta cobrança”, aponta.

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Projeto de lei está na Câmara

Os profissionais da enfermagem travam uma luta de décadas pautada por duas principais pautas: a regulamentação da carga horária e o estabelecimento do piso salarial. Essa última ganhou força quando a pandemia escancarou a importância dos profissionais de saúde, e deu uma guinada com o encaminhamento do PL 2564/2020 no Congresso, cujo texto base é de autoria do senador Fabiano Contarato (Rede-ES) e foi aprovado no Senado no dia 24 de novembro do ano passado.

Até chegar lá, a categoria realizou inúmeros ato, movimentos em Brasília e idas a gabinetes de governadores e deputados federais. Hoje, o projeto de lei encontra um entrave na Câmara dos Deputados, com a negligência do presidente da Casa, o deputado Arthur Lira (PP-AL), em relação ao texto.

“A gente enfrenta um lobby muito grande. Existem muitos deputados financiados por hospitais privados e planos de saúde. A iniciativa privada, para conceder o piso para a gente, tem que reduzir seu lucro, e boa parte dele é por conta dos salários baixos. A enfermagem, por ser o maior corpo [entre profissionais de saúde], é responsável por isso. Então estamos vendo essa atitude de Arthur Lira de sentar em cima do projeto”, detalha Ludmilla. 

A tramitação do PL deu sinais de que iria andar na última quarta-feira (9), quando Lira recebeu  representantes do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) e garantiu que  colocaria o projeto na pauta da reunião de líderes partidários que aconteceria na noite dessa quinta (10), a fim de que se definissem uma data de votação. No entanto, o deputado suspendeu a reunião. 

O Satenpe convocou os profissionais, bem como Seepe, Coren e Aben, para participarem de assembleia geral na noite da sexta-feira (11) e deliberarem sobre possível ato em Pernambuco. “Queremos mostrar para o Brasil que só vão atender nosso PL sob pressão. O tempo é curto, estamos em ano eleitoral. Vamos mostrar que não vamos aceitar esse tipo de jogo que está sendo feito na Câmara dos Deputados”, chama Francis Herbert, na postagem.

Na ocasião, foi determinado que auxiliares e técnicos de enfermagem sairão em marcha novamente nesta terça-feira (15). No Recife, o ato tem concentração às 8h na Praça do Derby, na área central da capital, e vai percorrer a Avenida Conde da Boa Vista em direção à Alepe. Os demais municípios que sediam Gerências Regionais de Saúde (Geres) da SES também terão atividades; são eles Goiana, na RMR;  Palmares, na Zona da Mata Sul; Limoeiro, Caruaru e Garanhuns, no Agreste; e Arcoverde, Salgueiro, Petrolina, Ouricuri, Afogados da Ingazeira e Serra Talhada, no Sertão.

A manifestação tem apoio do Coren, Aben, Seepe e Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde (CNTS).

Publicação de: Brasil de Fato – Blog

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