Regina Camargos, sobre o novo regime fiscal: Copo meio cheio ou meio vazio?
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Por Regina Camargos*
Em 18 de abril, o governo Lula apresentou ao Congresso Nacional o Projeto de Lei Complementar que propõe um novo regime fiscal para substituir o famigerado e danoso Teto de Gastos, criado após o golpe de 2016.
A política fiscal define a aplicação dos impostos arrecadados da população e de outras receitas.
O regime fiscal define as regras para a utilização dos impostos e receitas, entre elas, o montante de recursos que pode ser gasto e investido pelo governo num determinado período de tempo – um ano ou mais.
Pode definir também os limites para o crescimento da dívida do governo e quanto ele deve “poupar” para reduzi-la, no mesmo período — o chamado superávit primário.
Os países adotam regimes fiscais cujas regras variam de acordo com suas realidades sociais e econômicas.
O Brasil tem diversas regras para a política fiscal que estão previstas na Constituição Federal, na Lei de Responsabilidade Fiscal, na Lei de Diretrizes Orçamentárias e na Lei Orçamentária Anual.
As duas últimas são elaboradas anualmente pelo Poder Executivo e enviadas ao Congresso Nacional a quem compete analisá-las e aprová-las.
O Teto de Gastos foi mais uma dessas regras. Infelizmente, extremamente desastrosa.
Além de estrangular gastos e investimentos públicos essenciais, acabou produzindo o indecente orçamento secreto por meio do qual parlamentares abocanharam polpudos recursos do orçamento público, destinando-os a finalidades pouco ou nada transparentes.
Portanto, o problema do Brasil não é a ausência de regras fiscais, mas a superposição de regras às vezes conflituosas.
Além disso, certas regras são muito rígidas e se tornam impraticáveis e disfuncionais com o tempo, pois a economia e a sociedade estão em permanente mudança.
O novo regime fiscal proposto pelo governo Lula pretende “garantir a estabilidade macroeconômica do País e criar as condições adequadas ao crescimento socioeconômico”, afirma o Projeto de Lei Complementar enviado ao Congresso.
A proposta é bastante ambiciosa. Ainda mais considerando a preocupante situação do país, herdada da ruinosa política econômica adotada por Michel Temer após o golpe, piorada pela dupla Bolsonaro-Guedes e na qual insiste o Banco Central com a manutenção de uma taxa de juros absurda.
O novo regime fiscal conseguirá cumprir suas promessas?
Antes mesmo de se tornar um Projeto de Lei a proposta do novo regime fiscal provocou muita polêmica.
Após a divulgação e o envio da proposta ao Congresso Nacional, economistas de diferentes vertentes teóricas e jornalistas dos veículos de comunicação tradicionais e alternativos divulgaram análises e realizaram eventos virtuais para debatê-la.
Os agentes do mercado financeiro também se manifestaram.
Como era de se esperar, a maioria desses agentes avaliou que a proposta é frouxa para impor disciplina aos gastos públicos, de acordo com a ortodoxia neoliberal que infelizmente ainda predomina no país.
No campo progressista, economistas e jornalistas manifestaram preocupação com a proposta.
Houve inclusive quem dissesse que o país não precisava de um novo regime fiscal, mas apenas de aperfeiçoar e atualizar as regras já existentes.
Tentarei resumir essas preocupações.
1. A proposta do governo mantém o princípio liberal, segundo o qual o Estado não deve gastar e investir mais do que arrecada e deve fazer uma poupança para reduzir a dívida pública — o chamado superávit primário.
2. A proposta estabelece limites um tanto rígidos para o crescimento dos gastos públicos que não poderão ultrapassar 70% do aumento da receita.
Isso significa que o gasto público crescerá menos que o PIB e que no médio e longo prazo o Estado brasileiro reduzirá sua participação na economia.
Essa regra contraria a lógica do desenvolvimento econômico brasileiro observada durante décadas, baseada numa forte atuação estatal.
Supõe, portanto, que o investimento privado será o protagonista da retomada do crescimento daqui em diante.
3. A médio e longo prazo esse limite de 70% poderá estrangular gastos com políticas públicas não previstas na Constituição Federal como, por exemplo, a valorização do salário mínimo.
4. Entretanto, esse limite ao crescimento dos gastos não se aplica ao pagamento dos juros da dívida pública. Ou seja, a proposta mantém os privilégios de uma minoria que possui aplicações financeiras.
5. Não permite ao Estado destinar recursos aos bancos públicos para que eles possam ampliar operações de crédito e financiar investimentos produtivos.
Durante a crise de 2008/2009 esses recursos foram fundamentais para que o país se recuperasse mais rapidamente.
E no momento atual, a atuação firme e forte dos bancos públicos é essencial para a retomada da economia.
6. Aposta no crescimento das receitas — basicamente, da arrecadação de impostos — para equilibrar as contas públicas.
Mas, como aumentar a arrecadação no curto e médio prazo sem definir de onde virão os estímulos à retomada da economia?
Há outras críticas ao novo regime fiscal e os leitores podem conhecê-las em diversos artigos, podcasts e lives disponíveis na imprensa alternativa e popular.
Deixo aqui uma dica bem didática e esclarecedora sobre o tema.
Mas, a proposta do governo também tem aspectos positivos.
Além de extinguir o famigerado Teto de Gastos, ela tem as seguintes virtudes:
1. O regime fiscal será implementado por meio de uma lei complementar e não de uma Emenda Constitucional.
A medida facilita alterações conforme as mudanças na conjuntura econômica, as necessidades da população e diante de situações imprevisíveis, como a pandemia ou catástrofes naturais.
2. Define um piso de gastos para impedir o estrangulamento de recursos para políticas públicas essenciais quando a economia crescer menos ou não crescer.
3. Preserva as chamadas vinculações constitucionais que garantem um mínimo de recursos para educação e saúde.
Daqui em diante
Certamente a proposta inicial do governo será bastante debatida no Congresso Nacional por parlamentares de todos os matizes ideológicos.
Aos do campo progressista, cabe aperfeiçoar a proposta para que a política fiscal possa efetivamente contribuir para reduzir as desigualdades, impulsionar a retomada do desenvolvimento e garantir a estabilidade econômica.
Aqui, vale mais uma vez advertir: se o Banco Central mantiver os juros na estratosfera, qualquer proposta de regime fiscal terá pouco efeito, por mais progressista que seja.
*Regina Camargos é economista e consultora.
Publicação de: Viomundo