Marcelo Zero: A disputa pelo Ártico

A Disputa pelo Ártico

Por Marcelo Zero*

As mudanças climáticas estão esquentando não apenas as águas do Oceano Ártico, como também as disputas territoriais nessa área estratégica do planeta.

Enquanto o Ártico era um oceano congelado praticamente o ano inteiro, essas disputas estavam um tanto adormecidas, mas, com o crescente derretimento das calotas polares, que facilita a navegação e a exploração dos recursos naturais, essas disputas ressurgem com força.

Claro que há normas interncionais sobre o tema. As regras sobre propriedade no Ártico são estipuladas pela Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM,) de 1982, um quadro jurídico internacional que regula as atividades marinhas e marítimas em todo o mundo.

Depois de um país ratificar a CNUDM, terá dez anos para reivindicar uma plataforma continental alargada para além da sua ZEE, algo que já foi feito anteriormente pelo Canadá, Dinamarca, Noruega e Rússia.

A propriedade territorial das partes constituintes do Ártico tem, portanto, regras claras, desde que a CNUDM entrou em vigor, em 1994.

Contudo, há três grandes disputas territoriais em curso no Ártico: a Passagem Noroeste (disputada desde 1969), o Mar de Beaufort (disputado desde 2004) e a Lomonosov Ridge (Cordilheira Lomonosov-disputada desde 2014).

A famosa Passagem Noroeste é atualmente objeto de uma disputa territorial entre os Estados Unidos e o Canadá.

A passagem atravessa águas canadenses, que o Canadá deseja regular por razões ambientais, inclusive para decidir quais navios podem entrar. Mas os Estados Unidos rejeitam essa abordagem, alegando que a passagem pertence “à comunidade internacional” e que, por consequência, os EUA podem usá-la livremente.

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Tal passagem foi visitada por inúmeros exploradores ao longo da história, que procuravam estabelecer uma nova rota comercial para a Ásia.

Antigamente, tal passagem permanecia totalmente congelada ou parcialmente congelada o ano inteiro. Agora, está se abrindo parte do ano.

Devido ao aquecimento global, há previsões de que a Passagem Noroeste poderá estar aberta à navegação durante grande parte do verão em menos de 10 anos.

Trata-se de uma nova rota marítima entre a Ásia e a Europa que reduziria em 5.000 quilômetros a rota atual, através do Canal do Panamá.

Os EUA querem controlá-la e usá-la, sem a anuência do Canadá.

O Canadá e os Estados Unidos também estão envolvidos numa disputa territorial sobre o Mar de Beaufort, uma parte do Oceano Ártico, desde 2004. Naquela época, os Estados Unidos estudaram parcelas do fundo do mar para exploração de recursos.

Embora os dois lados (EUA e Canadá) tenham iniciado negociações sobre este assunto, em 2011, a disputa ainda não foi resolvida.

Já a cordilheira Lomonosov é uma cadeia montanhosa subaquática da crosta continental no Oceano Ártico.

Ela se estende por 1.800 quilômetros entre as Ilhas da Nova Sibéria, sobre a parte central do oceano, até a Ilha Ellesmere, no Arquipélago Ártico Canadense.

A largura da cordilheira Lomonosov varia de 60 a 200 quilômetros e ela se eleva de 3.300 a 3.700 metros acima do fundo do mar, que tem 4.200 metros de profundidade, em média.

Como o nome indica, foi descoberta por uma expedição soviética, em 1948.

A Federação Russa, em 20 de dezembro de 2001, apresentou reivindicação à Comissão das Nações Unidas sobre os Limites da Plataforma Continental, de acordo com a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (artigo 76, parágrafo 8).

O documento propõe estabelecer novos limites externos para a plataforma continental russa, além da zona anterior de 200 milhas náuticas (370 km), mas dentro do setor ártico russo. Algo que o Brasil também fez, frise-se.

Na reivindicação russa, ainda em estudo, um dos argumentos utilizados é o fato de que as cordilheiras subaquáticas de Lomonosov e Mendeleev são extensões do continente euroasiático.

Canadá e Dinamarca (a quem pertence a Groelândia), no entanto, reivindicam também partes dessa cordilheira e do fundo marinho do Ártico. Os EUA apoiam esses países, em suas disputas com a Rússia.

Há muito em jogo, nessas disputas.

De acordo com o Serviço Geológico dos EUA, existem, ao menos, 90 bilhões de barris de petróleo e 1.670 trilhões de pés cúbicos de gás natural ao norte do Círculo Polar Ártico.

No geral, estima-se que cerca de 10% dos recursos petrolíferos mundiais estejam no Ártico. A porção dominante dos hidrocarbonetos offshore do Ártico, tal como refletido nos estudos do USGS, está localizada justamente dentro das atuais Zonas Econômicas Exclusivas disputadas.

Ademais dos imensos recursos naturais, dos quais os hidrocarbonetos são apenas uma parte, o Oceano Ártico tem, cada vez mais, significado estratégico para a comunicação marítima e o comércio mundial.

Com efeito, o Oceano Ártico comunica, por vias marítimas bem mais curtas e cada vez mais desimpedidas, a Europa, a Ásia e a América do Norte.

Além da citada Passagem Noroeste [linhas vermelhas, no mapa acima], há também a “Northern Sea Route[traços turquesa] ou “Transpolar Sea Route[traçados verdes] a qual poderá ficar totalmente desimpedida de gelo, no verão, até 2035.

Por isso mesmo, os EUA, que tem o Alasca banhado pelo Oceano Ártico, estão muito empenhados no domínio da região e na contenção das reivindicações da Rússia.

Em tempo recentes, os EUA lançaram a “Estratégia Nacional para a Região Ártica” e um relatório sobre como as mudanças climáticas impactam as bases militares americanas.

Os EUA também abriram um consulado em Nuuk, na Groenlândia, nomearam um embaixador-geral para a região do Ártico no Departamento de Estado e um vice-secretário adjunto de defesa para o Ártico.

Segundo a mencionada Estratégia, a guerra na Ucrânia e o crescimento das tensões geopolíticas tornaram qualquer cooperação com a Rússia no Ártico virtualmente “impossível”.

Ainda conforme tal Estratégia, “para garantir os nossos interesses, à medida que a atenção, os investimentos e as atividades aumentam no Ártico nas próximas décadas, os Estados Unidos reforçarão e exercitarão as capacidades militares e civis no Ártico, conforme necessário para dissuadir ameaças e para antecipar, prevenir e responder a ameaças”.

Ademais, o texto da Estratégia prevê o aprofundamento “da cooperação com os Aliados e parceiros do Ártico, em apoio a estes objetivos”.

Desse modo, os EUA pretendem construir uma grande aliança no Ártico destinada a conter a Rússia.

A menção explícita ao aumento das “capacidades militares” é preocupante.

A esse respeito, o Exército (Army) dos EUA produziu o documento REGAINING ARCTIC DOMINANCE, no qual se afirma explicitamente que:

o Ártico tem potencial para se tornar um espaço contestado, onde as grandes potências rivais dos Estados Unidos, a Rússia e a China, procuram utilizar o poder militar e econômico para obter e manter o acesso à região às custas dos interesses dos EUA. A Estratégia de Segurança Nacional dos EUA destaca o Ártico como um corredor para a expansão da competição estratégica de grandes potências entre duas regiões – o Indo-Pacífico e a Europa. A defesa nacional identifica a erosão da vantagem competitiva da Força Conjunta dos EUA contra a China e a Rússia como um problema central que o Departamento de Estado deve priorizar, mantendo, ao mesmo tempo, um equilíbrio de poder favorável entre os dois teatros. O Exército precisa de gerar forças capazes de competir eficazmente, com e através de aliados e parceiros, para colocar obstáculos aos adversários, à medida que procuram obter acesso e competir na região”.

Mais claro, impossível.

O Conselho Ártico, criado em 1996 para estabelecer a cooperação na região, e composto por oito estados-membros: Canadá, Dinamarca, Estados Unidos, Finlândia, Islândia, Noruega, Rússia e Suécia, derreteu. Agora, exclui claramente a Rússia.

O Ártico será crescentemente militarizado e se tornará uma zona de intensa disputa geopolítica.

Dizem que os ursos polares estão ameaçados de extinção. A paz no Ártico também.

*Marcelo Zero é sociólogo e especialista em Relações Internacionais.

Publicação de: Viomundo

Lunes Senes

Colaborador Convidado

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