Ativista incansável, Desmond Tutu deixa legado de luta em defesa dos direitos dos oprimidos em todo o mundo

Desmond Tutu (1931-2021)

O significado do ativista e religioso para a África do Sul e o mundo

Por Julia Conley*, em A Terra é Redonda

Deixando um legado de luta em defesa dos povos oprimidos na África do Sul e por todo o mundo, o arcebispo Desmond Tutu faleceu no domingo, 26 de dezembro, aos 90 anos de idade, na cidade de Cape Town – supostamente em razão de um câncer.

Defensores dos direitos humanos, da equidade em saúde, da justiça econômica e da não-violência homenagearam Tutu, que ajudou a liderar o movimento antiapartheid na África do Sul e da Comissão da Verdade e Reconciliação posteriormente formada.

O grupo independente Os Anciãos (The Elders), composto por líderes globais engajados em prol da justiça e da boa governança, afirmou que seu “comprometimento com a paz, o amor, e a igualdade fundamental de todos os seres humanos irá perdurar, inspirando as gerações futuras.”

“Os Anciãos não seriam o que são hoje sem a sua paixão, seu comprometimento e sua aguçada bússola moral,” disse Mary Robinson, ex-presidente da Irlanda e atual presidente dos Anciãos. “Ele me inspirou a ser uma ‘prisioneira da esperança’, em sua frase inimitável. [Tutu] era respeitado por todo o mundo devido a sua dedicação à justiça, à igualdade e à liberdade. Hoje, estamos de luto por sua morte mas afirmamos nossa determinação em manter suas crenças vivas.”

Tutu foi o primeiro presidente dos Anciãos, de 2007 as 2013, depois de conquistar reconhecimento internacional por seu trabalho liderando os sulafricanos negros na luta contra o sistema do apartheid, que ele condenava como “terrível” enquanto insistia em métodos não-violentos de protesto.

Ele proclamava que o apartheid era uma ameaça à dignidade e a humanidade de ambos os sulafricanos negros e brancos, e convocava os líderes internacionais a impor sanções ao governo do país em protesto contra o sistema do apartheid, uma demanda que levou duas vezes à revogação de seu passaporte por autoridades sulafricanas.

“Se você fica neutro em situações de injustiça, você escolhe o lado do opressor”, diz a famosa frase de Tutu durante a luta contra o apartheid. “Se um elefante pisa na cauda de um rato e você diz que é neutro, o rato não apreciará sua neutralidade.”

Em 1984, Tutu recebeu o prêmio Nobel da paz por suas ações. Depois da queda do sistema do apartheid, em 1994, presidiu a Comissão da Verdade e Reconciliação, cujo objetivo era fornecer um registro da violência e das injustiças perpetradas pelo governo sob o sistema.

O arcebispo procurou estabelecer uma “justiça restauradora”, oferecendo compensações aos sobreviventes e anistia aos agressores que cooperaram com o inquérito.

Tutu era um duro crítico das desigualdades econômicas e raciais que persistiam na África do Sul após o fim formal do sistema do apartheid, acusando, em 2004, o presidente Thabo Mbekide de servir a um pequeno número de elites enquanto “muitos dentre os nossos vivem em uma condição extenuante, humilhante e desumanizante de pobreza.”

“Você é capaz de explicar como uma pessoa negra acorda, hoje, em um gueto esquálido, quase 10 anos após sua libertação?” Disse Tutu em 2003. “Depois vai trabalhar na cidade, que ainda é majoritariamente branca, em mansões palacianas. E, no fim do dia, retorna para a miséria?”

Para além de sua terra natal, Tutu era um franco crítico do militarismo e do imperialismo no norte global, cobrando que o ex-presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, e o ex-primeiro ministro do Reino Unido, Tony Blair, fossem processados pela Corte Criminal Internacional pela invasão e ocupação do Iraque.

Tutu também era um defensor dos direitos dos palestinos e um crítico das políticas violentas de Israel que atingiam milhões de pessoas em Gaza e na Cisjordânia, comparando seu tratamento com o sistema do apartheid.

Em 2014, enquanto as Forças de Defesa de Israel realizavam ataques que mataram mais de 2.100 palestinos – em sua maioria civis – Tutu escreveu um artigo exclusivo para o jornal israelense Haaretz, convocando um boicote global a Israel.

Ele clamou aos israelenses que “ativamente desassociassem-se, junto com suas profissões, do planejamento e da construção de infraestruturas relacionadas a perpetuação de injustiças, incluindo a barreira de separação, os terminais de segurança e os checkpoints, e os assentamentos construídos em territórios palestinos ocupados.”

“Aqueles que continuam a fazer negócios com Israel, que contribuem com um sentimento de ‘normalidade’ na sociedade israelense, estão realizando um desserviço ao povo de Israel e da Palestina,” escreveu Tutu. “Eles estão contribuindo com a perpetuação de um status quo profundamente injusto. Aqueles que colaboram com o isolamento temporário de Israel estão dizendo que os israelenses e os palestinos são igualmente merecedores de dignidade e paz.”

Naquele mesmo ano, Tutu convocou um desinvestimento global na indústria de combustíveis fósseis nos mesmos moldes das sanções internacionais que apoiara contra a África do Sul, e que ajudaram a acabar com o apartheid.

“Vivemos em um mundo dominado pela ganância”, escreveu Tutu ao The Guardian. “Permitimos que os interesses do capital se sobrepusessem aos interesses dos seres humanos e da Terra. Está claro que [as empresas] simplesmente não vão desistir; elas ganham dinheiro demais com isso.”

“Pessoas conscientes precisam romper seus laços com empresas que financiam a injustiça das mudanças climáticas”, continuava Tutu. “Podemos, por exemplo, boicotar eventos, equipes esportivas, e programas midiáticos financiados por empresas de combustíveis fósseis… Podemos encorajar cada vez mais nossas universidades, municipalidades e instituições culturais a romper seus laços com a indústria de combustíveis fósseis.”

Tutu também era reconhecido por sua luta global em defesa dos direitos LGBTQ+, suas demandas pelo fim do negacionismo da AIDS na África do Sul e, mais recentemente, seus esforços no combate a desinformação sobre as vacinas contra a Covid-19.

“O bispo Tutu significava tanto para tantas pessoas”, disse o reverendo Dr. William Barber II, copresidente da Campanha do Pobres nos Estados Unidos. “Agradecemos a Deus por sua vida. Que nós, que acreditamos na liberdade e na justiça, sejamos para sempre o seu legado”.

*Julia Conley é jornalista.

Tradução: Daniel Pavan.

Publicado originalmente no portal Common Dreams.

Apartheid na Terra Santa

Por Desmond Tutu*, no site da Federação Árabe Palestina (Fepal)

Em nossa luta contra o apartheid, os grandes apoiadores eram o povo judeu. Quase instintivamente, eles tiveram que estar ao lado dos desprivilegiados, dos que não tinham voz, lutando contra a injustiça, a opressão e o mal.

Continuei a ter sentimentos fortes pelos judeus. Sou patrono de um centro do Holocausto na África do Sul. Acredito que Israel tem o direito de proteger as fronteiras.

O que não é tão compreensível, não justificado, é o que fez a outro povo para garantir a sua existência. Fiquei profundamente angustiado em minha visita à Terra Santa; isso me lembrou muito o que aconteceu conosco, negros na África do Sul. Tenho visto a humilhação dos palestinos em postos de controle e bloqueios de estradas, sofrendo como nós quando jovens policiais brancos nos impediram de andar.

Em uma de minhas visitas à Terra Santa, fui de carro a uma igreja com o bispo anglicano em Jerusalém. Eu podia ouvir as lágrimas em sua voz quando ele apontou para os assentamentos judeus. Pensei no desejo de segurança dos israelenses. Mas e os palestinos que perderam suas terras e casas?

Eu experimentei palestinos apontando para quais eram suas casas, agora ocupadas por judeus israelenses. Eu estava caminhando com o cônego Naim Ateek (chefe do Centro Ecumênico Sabeel) em Jerusalém. Ele apontou e disse: “Nossa casa era ali. Fomos expulsos de nossa casa; agora ela está ocupada por judeus israelenses.”

Meu coração dói. Eu digo porque nossas memórias são tão curtas. Nossos irmãos e irmãs judeus esqueceram sua humilhação? Eles se esqueceram do castigo coletivo, das demolições de casas, em sua própria história tão cedo? Eles viraram as costas às suas profundas e nobres tradições religiosas? Eles se esqueceram de que Deus se preocupa profundamente com os oprimidos?

Israel nunca terá verdadeira segurança e proteção oprimindo outro povo. Uma verdadeira paz só pode ser construída com base na justiça. Condenamos a violência dos homens-bomba e condenamos a corrupção de mentes jovens ensinadas ao ódio; mas também condenamos a violência das incursões militares nas terras ocupadas e a desumanidade que impede que as ambulâncias cheguem aos feridos.

A ação militar dos últimos dias, prevejo com certeza, não proporcionará a segurança e a paz que os israelenses desejam; só vai intensificar o ódio.

Israel tem três opções: voltar à situação de impasse anterior; exterminar todos os palestinos; ou – espero – lutar pela paz baseada na justiça, baseada na retirada de todos os territórios ocupados e no estabelecimento de um estado palestino viável nesses territórios lado a lado com Israel, ambos com fronteiras seguras.

Nós, na África do Sul, tivemos uma transição relativamente pacífica. Se nossa loucura pode acabar como acabou, deve ser possível fazer o mesmo em qualquer outro lugar do mundo. Se a paz pudesse chegar à África do Sul, certamente poderia chegar à Terra Santa?

Meu irmão Naim Ateek disse o que costumávamos dizer: “Não sou pró-este ou aquele povo. Sou pró-justiça, pró-liberdade. Sou anti-injustiça, anti-opressão.”

Mas você sabe tão bem quanto eu que, de alguma forma, o governo israelense está colocado em um pedestal [nos Estados Unidos], e criticá-lo é ser imediatamente apelidado de anti-semita, como se os palestinos não fossem semitas. Não sou nem anti-branco, apesar da loucura daquele grupo. E como aconteceu que Israel estava colaborando com o governo do apartheid em medidas de segurança?

As pessoas estão com medo neste país [os EUA], dizer que errado é errado porque o lobby judeu é poderoso – muito poderoso. Bem, e daí? Pelo amor de Deus, este é o mundo de Deus! Vivemos em um universo moral. O governo do apartheid era muito poderoso, mas hoje não existe mais. Hitler, Mussolini, Stalin, Pinochet, Milosevic e Idi Amin eram todos poderosos, mas no final morderam o pó.

A injustiça e a opressão nunca prevalecerão. Os poderosos devem se lembrar da prova de fogo que Deus dá aos poderosos: como você trata os pobres, os famintos, os sem voz? E com base nisso, Deus passa o julgamento.

Devemos lançar um clarim ao governo do povo de Israel, ao povo palestino e dizer: a paz é possível, a paz baseada na justiça é possível. Faremos tudo o que estiver ao nosso alcance para ajudá-lo a alcançar esta paz, porque é o sonho de Deus, e vocês poderão viver juntos como irmãs e irmãos.

*Desmond Tutu foi um arcebispo sulafricano, ativista antiapartheid e vencedor do Nobel da Paz em 1984

* Publicado originalmente na edição de 29 de abril de 2002 do jornal inglês The Guardian, mesmo ano de uma das visitas do ex-arcebispo e Nobel da Paz Desmond Tutu à Palestina

Publicação de: Viomundo

Lunes Senes

Colaborador Convidado

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