Ângela Carrato: Os demônios do Tio Sam e os daqui
Por Ângela Carrato*
Além de dar início às viagens pelo Brasil, o presidente Lula deixou nítido que, neste segundo ano do seu terceiro mandato, pretende aprofundar as medidas para desfazer todos os desmandos dos golpistas.
Disposição também demonstrada pela direção de vários órgãos que compõem o Estado brasileiro.
Em Pernambuco, por exemplo, Lula anunciou a retomada das obras da refinaria Abreu e Lima, da Petrobras, como garantiu que ela será das mais modernas do mundo.
Se a simples retomada dessas obras seria uma afronta aos olhos dos golpistas e da própria mídia corporativa nacional e estadunidense, Lula foi além, deixando claro que a tentativa de destruí-la, por parte da Operação Lava Jato, tratou-se de uma jogada de setores da classe dominante brasileira, em conluio com o Departamento de Justiça do Tio Sam, para impedir o nosso desenvolvimento.
Para não deixar dúvidas sobre o assunto, Lula relembrou que a Petrobras esteve sob ataque desde a sua criação por Getúlio Vargas, em 1953.
Naquela época, enfatizou, dizia-se que o Brasil não precisava explorar petróleo, não tinha competência técnica, que seria mais barato comprá-lo do exterior.
Com poucas alterações, a ladainha dos entreguistas e dos viralatas continua a mesma, agora acoplada a uma suposta agenda ambiental, que Lula bem definiu como tentativa de se criar um “neocolonialismo verde”.
Bater tão de frente com os interesses golpistas já teria sido uma boa dose para a semana. Mas o governo Lula e as instituições brasileiras foram além.
O STF autorizou, na última quinta-feira, a busca, apreensão de bens e quebra de sigilo do deputado federal Carlos Jordy (PL-RJ), líder da oposição na Câmara dos Deputados.
Extremista de direita, bolsonarista declarado, Jordy é acusado de participação nos atos golpistas de 8 de janeiro, ao trocar mensagens com vários deles. Ele é o primeiro parlamentar a ser investigado por esses atos.
Até agora a Justiça vinha se concentrando na “arraia miúda”, deixando de fora os mentores e financiadores do que culminou com a destruição da Praça dos Três Poderes em Brasília.
A ação contra Jordy deixou os bolsonaristas de cabelo em pé, especialmente porque pouco antes ganhava repercussão nacional uma declaração do presidente nacional do PL, deputado Valdemar Costa Neto (SP), na qual fez elogios ao presidente Lula, afirmando que o petista é “totalmente diferente” do ex-presidente Bolsonaro, e que tem “muito prestígio” e “popularidade”.
Costa Neto criticou também o ex-juiz e senador Sergio Moro (União-PR) por sua atuação na Lava Jato, que levou à prisão de Lula, e disse que o petista tem razão de se sentir injustiçado pelas ações de Moro.
Moro e os bolsonaristas se assustaram com uma declaração deste porte vinda do dirigente nacional do PL. Nesta altura do campeonato, a cassação de Moro é considerada questão de tempo, com as denúncias – com provas – e inquéritos contra ele se avolumando.
Costa Neto, como manda a praxe, tentou se desculpar com Bolsonaro, mas o estrago estava feito. O ex-capitão chegou a comentar com amigos e aliados que o PL estava sendo implodido.
Isso mesmo, caro leitor. Você leu certo!
O PL, aquele partido minúsculo, que se tornou gigante de uma hora para a outra, que elegeu em 2022 a maior bancada na Câmara dos Deputados, que fez tudo o que Bolsonaro mandou, começa a implodir.
E quem está implodindo o PL não são apenas petistas ou governistas. É o próprio Bolsonaro e as verdades sobre ele que começam a vir à tona.
Melhor do que qualquer pessoa, Bolsonaro sabe que o crescimento vertiginoso do apoio à sua pessoa se baseava num tripé. Tripé que Lula está minando aos poucos, com a paciência política necessária para se desatar grandes nós.
O tripé em questão envolve interesses de setores da classe dominante brasileira, cujo PL e demais partidos de direita e extrema-direita são as expressões congressuais, parcela das Forças Armadas, sempre subservientes ao Tio Sam, e a maioria, mas não todas, as igrejas neopentecostais.
Na última quarta-feira, a Receita Federal derrubou a norma que dava isenção fiscal a líderes religiosos.
A medida começou a vigorar em 1º de agosto de 2022, duas semanas antes do início da campanha eleitoral, e era parte do kit de Bolsonaro para conseguir se reeleger.
O benefício tributário valia para o salário dos chamados “ministros de confissão religiosa”, como pastores.
Os valores pagos pelas igrejas aos líderes religiosos não eram considerados remuneração direta ou indireta. Em agradecimento à isenção, os pastores-bilionários colocaram todos os seus templos a serviço da vitória de Bolsonaro.
Esta jornalista, por exemplo, teve oportunidade de assistir a cultos na Igreja Universal do Reino de Deus, na praça Raul Soares, em Belo Horizonte, onde Lula era comparado ao demônio e Bolsonaro apresentado como exemplo de bom cidadão e homem temente a Deus.
Em todos os cultos era enfatizada a velha ladainha de que o PT e a esquerda comem criancinha, tomam a casa dos pobres, agem contra as famílias e defendem “a pouca vergonha” dos gays.
Por ser o item menos conhecido, vamos nos concentrar aqui na atuação dessas empresas-templos.
No Brasil, as igrejas com maior representação no movimento neopentecostal são a Universal do Reino de Deus, a Internacional da Graça de Deus, a Renascer em Cristo, a Batista Nacional, a Fonte da Vida de Adoração, a Mundial do Poder de Deus e a Comunidade Evangélica Sara Nossa Terra.
Presentes do Oiapoque ao Chuí, em inúmeras capitais elas rivalizam com botecos e bares. Em Belo Horizonte, por exemplo, existem quarteirões na região central com dois ou mais desses templos, todos com fieis cativos.
Pesquisa do Instituto Datafolha de 2020 indicou que 50% dos brasileiros são católicos, 31% evangélicos, 10% se declaram sem religião, 3% espítitas, 2% praticantes de religiões afro-brasileiras e 1% ateu.
O ativismo dos evangélicos, em especial dos neopentecostais é tão grande, que não só aparece mais do que o dos católicos, como, se continuar mantendo tal ritmo de atividade, pode, em 10 anos, superar os católicos.
A título de exemplo, dados do IBGE mostram que entre 1940 e 2010, o número de evangélicos no país saltou de 2,7% para 22,2% da população. Para alguns, isso pode soar como reflexo da liberdade de culto que impera no Brasil e seria até algo positivo.
Seria, se a maior parte das ditas religiões neopentecostais não fosse apenas parte do esquema de dominação do Tio Sam sobre amplas áreas do planeta, como a América Latina e a África.
Antes que um mais afoito diga que “isso é invenção do PT e dos comunistas”, vale lembrar que uma das primeiras denúncias nesse sentido partiu, há décadas, de um jornalista e pesquisador conservador, Délcio Monteiro de Lima.
Em 1987, ele, que chefiava a sucursal da TV Bandeirantes em Belo Horizonte, lançou um livro seminal, que causou muita polêmica na época e contimnua mais atual do que nunca: Os Demônios descem do Norte (Editora Francisco Alves).
Nele o autor mostrava como as campanhas de evangelização feitas pelos neopentecostais integravam uma estratégia estrangeira de domínio e intervenção político-ideológica, em diversos países.
No Brasil, nem os territórios indígenas, como se sabe, ficaram livres dela. Razão pela qual Délcio Monteiro de Lima considerava que o desmantelamento das máfias “religiosas” se constituía em uma questão de soberania nacional.
O início do neopentecostalismo no Brasil coincide com a fundação da Igreja do Evangelho Quadrangular, em 1953. Foi nesse ano que desembarcaram no país os missionários estadunidenmses Harold Williams e Raymond Boatri, trazendo em suas malas o movimento denominado “cura divina”.
Desde o nascimento, no entanto, as igrejas evangélicas são plurais. Entre elas há divergências sobre a interpretação da Bíblia e forma de evangelizar. O que explica tantas igrejas diferentes coexistirem em uma mesmo movimento.
Esse fenômeno religioso tem em comum ser o promotor de uma lógica que estabelece a articulação do desamparo com a condição masoquista.
Duas precondições amplamente exploradas pela classe dominante brasileira e seus capachos de sempre, num país onde a escravidão perdurou por três secúlos e os senhores de engenho de antes e os barões das finanças de agora, com o apoio inestimável da mídia corporativa, conseguem persuadir os mais pobres de que eles são pobres porque não trabalham o suficiente, não temem a Deus o suficiente ou, pior ainda, não dão a Deus o dinheiro suficiente.
O neopentecostalismo pode ser visto, assim, através de suas características principais, a saber, a Teologia do Domínio, em sua articulação de um cenário de permanente guerra espiritual entre Deus e o Diabo, a Teologia da Prosperidade e sua organização empresarial.
As igrejas neopentecostais sustentam a ideia de que o sujeito pode gozar da experiência da absoluta realização e felicidade, desde que viva uma aliança societária com o próprio Deus e pague em dia o dízimo, que pode chegar a 50% ou mais do que recebe um fiel.
Dependendo do poder de sua aliança com Deus (leia-se de quando d$a), o fiel pode se tornar ilimitado na realização de suas aspirações. Claro que a parte do leão fica sempre com o pastor, mas um ou outro fiel recebe alguma migalha ou algum tipo de apoio até para justificar que a coisa funciona.
O efeito é enorme, especialmente quando se sabe da falta de acolhimento e de política pública de lazer e diversão nas periferias das cidades brasileira.
Esse discurso só funciona, por outro lado, dadas às baixas condições de vida da maioria dos fieis, mas também devido à prevalência do mal-estar subjetivo de cada um. Algo que a Psicanálise define como desamparado estrutural do sujeito. É aí que têm sucesso as práticas de servidão ou assujeitamento do outro.
Não por acaso, no Brasil, as mulheres representam 58% dos evangélicos, enquanto são 51% entre os católicos. A força maior dos evangélicos está no segmento entre 16 e 34 anos e eles também superam os católicos no segmento de renda até dois salários mínimos. Dito de outra forma, as comunidades carentes são os alvos, mas a tal Teologia da Prosperidade alcança também significativos segmentos da classe média.
Tudo isso mostra o acerto da decisão da Receita Federal em tributar religiosos que estavam sendo tratados com uma isenção injustificável. Se eles acreditam na prosperidade, comecem a pagar por ela, como fazem todos os cidadãos.
Mesmo sendo uma medida pontual, o fim dessas isenções promete muita polêmica tão logo o Congresso Nacional inicie suas atividades, em 5 de fevereiro. A bancada da Bíblia garante que vai reagir e seus porta-vozes na mídia corporativa dizem que Lula deu um tiro no pé em ano eleitoral.
Discordo. A Receita Federal fez o que devia fazer e o governo precisa fazer muito mais. É preciso separar o joio do trigo.
Não dá mais para pastores picaretas irem curtir mansão e férias em Miami, a bordo de jatinhos de último tipo, enquanto fieis que lhes garantem a boa vida através de suados e abusivos dízimos, continuando sendo alvo de assistencialismo barato, proselitismo de viés conservador e votando em quem lhes engana.
Lamentavelmente, parte deste movimento dito religioso tem por trás não apenas grandes empresas internacionais, mas também agências de espionagem.
Não se trata de liberdade de culto ou de decisão pessoal. Pastores picaretas e suas arapucas não combinam com a democracia e com a soberania popular.
São meros mercadores da fé se valendo de supostos templos. Fazem mal para as verdadeiras religiões e para a própria democracia.
O Brasil não pode continuar sendo o paraíso para gente deste tipo.
*Ângela Carrato é jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG
Publicação de: Viomundo