Lelê Teles: O homem sem chifres é um animal indefeso

Antro-apologia da sofrência: um estudo de caso

“homem-aranha teAntro-apologia da sofrência — um estudo de casom a Mary Jane/ super-homem a sua Lois Lane / até o ogro tem o seu amor…”, Pablo

Por Lelê Teles*

meu vizinho de parede mora relativamente bem: casa de frente pro mar, grama verde no quintal e um jardim cheio de flores coloridas que atraem beija-flores e borboletas.

tem, também, um pequeno comércio no centro e duas casas alugadas.

cria dois gatos e é, ele mesmo, o animal de regaço de sua esposa amantíssima; o casal de filhos está terminando a faculdade.

parece que temos aí uma vida feliz, não é mesmo?

quem não imagina esse sujeito assim, com um largo esgar de sorriso nos lábios, a regar a relva doméstica, ao som d’a primavera, de vivaldi: fan fan fanran ran fan fan fan…

no entanto, quem o diria?, esse pequeno burguês se diverte, em casa e sempre ao pé da churrasqueira, ouvindo músicas alegremente tristes; tanto as do presente quanto as do passado.

“desce desse pole dance…, volta pra mim…, cucurucucu paloma…”

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por que diabos?

ouço, porque não sou surdo, por todos os lados, a dissonante estridência do culto ao sofrimento, uma descarada e alienada apologia da dor e da desgraça.

“ô, rita, volta desgramada…”

copos sempre cheios, corpos sempre vazios e insaciados, malas de carros abertas e as ébrias lágrimas escorrendo pela sarjeta.

“volta que eu perdoo a facada.”

uns infelizes choram, enquanto outros cantam, trocam perdigotos, esfregam-se uns nos outros, sorriem e gargalham do infortúnio do irmão de copo, num sadomasoquismo teatral e brincante.

o diabo é que o sujeito que sorri hoje é o mesmo que pode estar a chorar amanhã.

schopenhauer diria que o futuro sofrente se felicita com a sofreguidão do sôfrego presente porque acredita que o sofrimento do outro é bem maior que o seu.

humm. já temos a cabeça do boneco.

o meu vizinho é um bom católico, se benze antes de dormir, vai à igreja aos domingos e sempre deixa umas moedas na sacola de espórtulas.

é nessa hora que o psicólogo põe a mão no queixo, inclina o corpo, curioso, e dá uma invisível baforada no charuto de freud: “fale-me mais sobre isso”.

sabemos que o catolicismo trouxe, junto com a chibata, a cruz que é, ao fim e ao cabo, um símbolo sagrado do culto à dor e ao sofrimento.

a paixão de cristo não é a madalena, é o teatro da tortura e da mortificação.

além do cristo esquálido e coberto de sangue, pendurado nos altares, a Igreja também é adornada com outros santos, ditos mártires, cujo calvário é a sua marca maior.

lembro-me de ter frequentado, quando criança, a igreja de são sebastião. na entrada, tinha uma enorme estátua do homenageado, nu da cintura pra cima, com uma canga pendurada na cintura e o dorso cravejado de flechas.

quem não se lembra do pobre são esteves, o protomártir, morto a pedradas – oh, opróbrio -, ou mesmo de são lourenço que, ardendo vivo numa grelha infernal, gracejou a seus algozes, “podem me virar, porque esse lado já está bem assado”.

não basta sofrer, é preciso sentir prazer na dor da morte, no êxtase deleitoso da alma que, finalmente, se desprende do corpo.

esse lance de êxtase foi o sartre quem falou n’o ser e o nada, onde afirma que tanto o sadismo quanto o masoquismo são uma “assunção de culpabilidade”.

o homem que vai ao cabaré é o mesmo que chora por ser chifrado, é um sofrimento de culpa, nada é mais católico do que a dor da culpa.

o sertanejo universitário e o arrocha da quinta-série são frutos dessa mentalidade.

no palco, o cantor sofrêncio representa o sádico da língua de chibata com a qual a plateia se masoquiza.

para sartre, o sádico é aquele puto covarde que aplica no outro as dores que deveras sente.

porque você sabe, quando não está cantando, o cantor também é plateia; ou seja, aquele que fere com ferro, com ferro também é ferido.

sedentos pela epicúrica e dionisíaca liberdade dos prazeres e presos à culpa e à castração da igreja, esses molambos vivos vivem numa eterna ambivalência.

durante a semana, cabaré, buteco, bate-coxa nos forrós e bate-bundas nos fluxos e, no domingo, penitência, genuflexão, rezas e ave-marias.

segunda-feira, chifre.

meu vizinho, como os seus pares de audição, tem essa necessidade do abismo, dessa mortificação interior, necessita descer à escuridão das catacumbas.

essa treva representa o inconsciente.

de forma consciente e conscienciosa, o sujeito entra no primeiro puteiro da esquina. em seguida, a culpa sai com ele de mãos dadas.

o venerando mestre cafuna chama isso de antro-apologia.

no grego, o étimo antro designa uma caverna sombria, covil de feras, mas aqui também significa um lugar de vícios e perdição: consciente e inconsciente.

eis aí um arranjo metafísico e psicológico para dar vida ao nosso homo sofrencius.

is epistemólogos de buteco, cornólogos e cornólatras, chamam de sofrência a este gênero musical que é, em síntese, apenas uma nova roupagem para uma manifestação cultural brazuca recorrente, atávica e que, por isso mesmo, se manifesta como um fenômeno ontológico e patológico da nossa gente.

“eu não sou cachorro não…”

claro que não é, os cães são livres, andam nus, não frequentam igrejas, não adoram santos e nem querem santas as cadelas, não têm relação de posse com suas parceiras e, por isso mesmo, não traem e nem se sentem traídos.

o chifre, apesar de estar na cabeça de alguns animais e até do próprio capeta, é uma típica invenção da cristandade.

há, no entanto, outra questão, tãomente importante e que deixa o analista em estado de aporia: é que o homem sem chifres é um animal indefeso.

palavra da salvação.

*Lelê Teles é jornalista, roteirista e mestre em Cinema e Narrativas Sociais pela Universidade Federal de Sergipe (UFS).

Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.

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Publicação de: Viomundo

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Colaborador Convidado

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