Pedro Carvalhaes: “Prima Facie”, a face cruel da revitimização no processo penal

“Prima Facie”: a face cruel da revitimização no processo penal

Por Pedro Carvalhaes*, especial para o Viomundo

“As leis são belas”, escreveu em prosa Machado de Assis, homem do século XIX.

“As leis não bastam. Os lírios não nascem da lei. ”, advertiu em verso Carlos Drummond de Andrade, homem do século passado.

E, ao longo desses e outros séculos, homens notáveis nas letras jurídicas ajudaram a erigir os ordenamentos legais que regem a maioria das sociedades contemporâneas.

Tirante suas idiossincrasias, esses sistemas, mesmo buscando o justo, não raro resvalam em injustiças, pois são criações humanas, e inexoravelmente falhas.

Ou melhor, são criações patriarcais, e carregam em seu genoma traços de todos os vícios de um modelo social em que as leis e sua operacionalidade, não raro, servem para dar à sociedade uma mera máscara civilizatória.

Na luta de todos contra todos pelos recursos finitos, o Direito, seja qual for, nunca deixou de, em última instância, ser um instrumento de controle da ordem vigente — para o bem ou para o mal.

Num mundo estruturalmente machista, racista, homofóbico, classista, moralista e violento, é impossível que os sistemas legais, ainda que busquem atenuar essas mazelas, não estejam no fundo contaminados por todas elas — seja na formulação, seja na aplicação das normas.

Feito este preâmbulo, vou ao ponto: tive, no último dia 26, o prazer de enfim assistir à brilhante e premiada montagem brasileira de Prima Facie” — monólogo escrito pela australiana Suzie Miller, que , no Brasil, é estrelado e dirigido por dois dos mais notáveis expoentes da nossa atual cena: as mineiras Débora Falabella e Yara de Novaes.

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(Não por acaso , a encenação, para além de destacados prêmios da temporada, mereceu de Fernanda Montenegro uma emblemática e emocionada eulogia, que a meu ver é talvez o maior desses prêmios, podendo ser conferida em vídeo neste link).

Na peça, Falabella vive Tessa, promissora e ambiciosa advogada criminalista. De origem suburbana, ela exerce há 15 anos sua profissão, e como quem joga um jogo de regras claras e canônicas, por vezes expressas, e por outras tácitas.

Tessa encarna uma figura infelizmente comum no meio jurídico, seja nos escritórios, seja nas promotorias ou nas varas: o operador do Direito excessivamente formalista e técnico, que ganha a vida através da aplicação acrítica e distanciada das normas, não buscando Justiça, mas simplesmente a manutenção de um sistema por vezes injusto, e seu próprio crescimento profissional.

Algumas das causas de Tessa envolvem vítimas de violência sexual, mulheres que ela enxerga como meros obstáculos a serem contornados para encontrar não a verdade real, mas meramente a verdade processual conveniente aos seus clientes —inocentes ou não.

Para Tessa, o Direito é um sistema tão inexoravelmente sectário quanto sacro, num retrato do tecnicismo que, em nosso último regime de exceção , transformou a pedagogia jurídica brasileira naquilo que Paulo Freire classificou como “educação bancária”, incapaz de ensinar o aprendiz a problematizar os saberes para compreender e transformar a realidade.

Tudo, porém, muda quando Tessa acaba se tornando, ela própria, a vítima de um estupro. O fato faz a personagem deixar de ser pedra para se tornar vidraça, passando a sentir na pele a dor das vítimas que ela, no seu tecnicismo acrítico, sempre despersonalizou como causídica.

Na via sacra que se torna o julgamento de seu algoz, um influente e aparentemente exemplar colega de banca com quem teve uma breve relação sexual e sentimental, a advogada vivencia e enfim percebe todas as injustiças do jogo legal que ela sempre louvou, tendo destruídas não apenas suas ilusões profissionais, mas sua própria essência pessoal, como é comum acontecer com vítimas de crimes clandestinos.

O texto de Miller é de uma complexidade e de uma sagacidade notáveis.

Tessa transita entre suas vidas profissional e privada, entre seu cotidiano e sua subjetividade, e entre diferentes tempos e emoções, como uma verdadeira metralhadora que, apesar da aparência descontrolada, sempre acerta no alvo, a não ser quando ela mesma, já como vítima, é metaforicamente fuzilada pelo mesmo sistema que tanto adorava.

A escalação de Falabella, que também produz a peça, não poderia ser mais acertada. Melhor atriz brasileira de sua geração, e com uma longa e sacerdotal dedicação ao teatro, para além do audiovisual, a mineira consegue dar conta da maratona de interpretar não apenas Tessa, mas também personagens secundários que ajudam a contar sua história.

A interpretação mais parece uma possessão, na melhor acepção possível. Débora, mesmo só em cena, parece valer pelo elenco de uma companhia teatral inteira.

Vê-se ali um preparo de atuação precioso, que se revela na intensidade quase atlética da atriz — que tem seu auge num momento na qual esta, como se dançarina fosse, dança de modo tão bem coreografado que faz o público se sentir assistindo ao show de uma diva pop.

A direção de Novaes também é outro acerto.

Figura conhecida e reconhecida também como atriz, Yara é parceira de Débora de longa data, no famoso Grupo 3 de Teatro.

A sintonia entre ambas, mesmo com Yara integralmente ausente do proscênio, é visível em cena, em função da integração perfeita entre Falabella e o complexo texto da peça.

A cenografia, mais metafórica e minimalista do que a da montagem original, é um outro acerto. O cenário (composto por mesas, cadeiras e uma enorme parede suspensória e fendada) consegue não apenas ambientar bem a história, mas também ajudar a contá-la, como se fosse ele próprio um personagem.

Projeções e recursos sonoros e audiovisuais ajudam a tornar a peça ainda mais imersiva e bem ilustrada, mesclando o milenar e primitivo teatro à modernidade das encenações multimídia.

A trilha sonora, pontuada por composições instrumentais e também pop, é outro acerto, que só faz intensificar o impacto cênico da atuação magistral de Débora.

O mesmo pode ser dito da iluminação do espetáculo, capaz de elevar à enésima potência a profusão sinestésica e catártica que se vê em cena.

“Prima Facie” é o retrato de um processo penal frequentemente insensível às suas vítimas, que, em função da revitimização institucional, são novamente mortas/agredidas/estupradas, justamente pelo sistema que deveria confortá-las com Justiça.

Embora vítimas, são por vezes tratadas como se estivessem sentadas no banco dos réus, em vez dos seus algozes.

Por mais que, no Brasil, sejam inegáveis avanços recentes como a Lei Mariana Ferrer, e a própria maior valorização da vítima como sujeito central no processo penal, dramas como o de Tessa estão em cartaz diariamente, em tribunais do Oiapoque ao Chuí — e naturalmente do resto do mundo também.

Como a própria Tessa diz em cena, estatísticas oficiais apontam que uma a cada três mulheres já passou por algum tipo de violência, como a sexual. Alguns discretos choros femininos ouvidos por mim, na plateia, fizeram-me concluir que a protagonista não era a única sobrevivente ali presente. Impossível, aliás, não imaginar a catarse emocional dessas eventuais vítimas, vendo diante de seus olhos o desenrolar nu e cru de um drama que muitas devem ter vivido em silêncio, segredo e vergonha, sem nenhum referencial tão visceral de que não estavam sozinhas em seus calvários.

Ao final do espetáculo, fica a amarga sensação de que as leis talvez não sejam tão belas quanto escreveu Machado de Assis, e que, na prática, talvez não possam mesmo fazer nascer os lírios aludidos por Carlos Drummond de Andrade.

Mas fica também a sensação de que os lírios e a beleza da boa arte sempre podem trazer algum justo consolo, principalmente ao sentenciarem à luz do sol e ao escrutínio público as mazelas e as vicissitudes sociais.

*Pedro Carvalhaes é graduado em Direito pela UFMG e roteirista.

Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.

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Publicação de: Viomundo

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Colaborador Convidado

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