Pedro Carvalhaes: A Laudemir de Souza Fernandes (Lau)

Redação Viomundo

Na manhã de segunda-feira, 11 de agosto de 2025, em Belo Horizonte (MG), o gari Laudemir de Souza Fernandes, de 44 anos, foi morto a tiros durante seu trabalho de coleta de lixo.

Foi após uma discussão de trânsito com o empresário Renê da Silva Nogueira Júnior, de 47 anos – marido da delegada Ana Paula Lamego Balbino Nogueira.

O impasse começou quando Renê, irritado por supostamente estar sendo atrapalhado pelo caminhão de coleta, sacou uma arma e, após breve confronto, disparou contra Laudemir, que chegou a ser socorrido ao Hospital Santa Rita, mas morreu em razão de hemorragia interna.

Renê foi preso horas depois em uma academia, e a polícia investiga se a arma utilizada pertencia à delegada; ela própria está sendo apurada em procedimento interno, mas permanece em seu cargo por ora .

MORTE DO LIXEIRO*

A Laudemir de Souza Fernandes (Lau)

Há muito lixo no país,
é preciso coletá-lo cedo.
Há muito “pai, cristão, cidadão”,
é preciso servi-los sempre.
Há no país uma legenda,
que tudo pode o andar de cima.
Então o homem que é lixeiro
de madrugada com suas luvas
sai correndo e coletando
lixo de gente para gente de lixo.
Suas luvas, seu uniforme laranja
e sua botina de borracha
vão dizendo aos homens de bens
que um “Tigre” acordou cedinho
e veio de um bairro lá longe
colher o lixo mais sujo
e mais fétido da pior gente
para todos poderem suportar
a fedentina braba da cidade.

Na mão a luva escurecida
não tem tempo de sentir
os restos que ela apalpa
nem o homem leiteiro gentil,
morador da Grande BH,
empregado de terceirizada,
com 44 anos de idade,
sabe lá o que seja pulsão de morte
de acadêmica compreensão.
E já que tem pressa, o corpo
vai tirando das ruas e esquinas
toda sorte de detritos.

E como se a gente perfumada
também escondesse fedor
exalando da alma chorume
abundante em nosso tempo,
avancemos sobre essa gente,
dobremos à esquerda na esquina,
peguemos o título eleitoral,
computemos o voto cônscio…
Fazendo barulho, é claro,
que silêncio é cumplicidade.

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Nosso lixeiro tão alegre
de passo gingado e belo,
antes desfila que rasteja.
É certo que algum rumor
sempre se faz: passo errado,
berrante trincado no caminho,
cadela no cio sem princípios,
ou um gado barulhento.
E há sempre um cristão que peca,
reza e torna a pecar.

Mas este acordou atrasado
(precisa chegar à empresa),
não quis saber de empecilho.
O revólver de dentro do carro
Mirou logo o caminhão
”Tigre”? Se apaga com tiro.
O tiro naquela manhã
Liquidou nosso lixeiro.
Se era casado, se era pai,
se era alegre, se era bom,
era sim, que saibam todos,
não é tarde para lembrar.

Mas o “homem” perdeu a coragem
de todo, e foge da rua
Meu Deus, matei, mas sou inocente.
Bala que mata “Tigre”
também serve pra destravar
bloqueio de caminhão.
Melhor nem chamar médico,
polícia não bota a mão
neste marido de delegada.
Está salva a tal liberdade
de cortar caminhos e vidas.
O dia normal prossegue:
passear com os “pets” e malhar,
mas o lixeiro
estatelado, no cimento,
perdeu o futuro que tinha.

Do uniforme esburacado,
no asfalto por veneno
escorre uma coisa espessa
que é lixo, sangue… não sei
Por entre as sobras sem uso,
de gente sem redenção,
várias dores se entrelaçam,
revoltosamente se somam,
inconformadamente se unem,
formando uma esperança final
a que chamamos Justiça!

*Pedro Carvalhaes
*Livremente inspirado no poema “Morte do Leiteiro”, de Carlos Drummond de Andrade

Nota

“Tigres” eram escravizados ou trabalhadores pobres (muitas vezes negros libertos) que exerciam a função de carregar barris ou tonéis de fezes e urina pelas ruas das cidades brasileiras, antes dos sistemas de esgoto e saneamento.

O apelido vinha do fato de que, ao carregar esses recipientes, inevitavelmente os líquidos sujava suas roupas e pele, deixando manchas amarronzadas e amareladas, que lembravam listras, como as do felino selvagem. Tratava-se de trabalho humilhante, que reforçava o estigma social sobre quem os executava.

A utilização do termo para se referir ao gari assassinado não tem conotação pejorativa, constituindo mera denúncia da mentalidade escravocrata que, infelizmente, faz com que parcelas de brasileiros, em sua maioria honesta e trabalhadeira, ainda sejam desumanizadas pelo racismo estrutural.

Publicação de: Viomundo

Lunes Senes

Colaborador Convidado

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