Pedro Amaral: A frágil vitória da vida

A frágil vitória da vida

Por Pedro Amaral*, em Linha Vermelha

Aprendemos com João Cabral de Melo Neto que é preciso celebrar toda explosão de vida – ainda que seja uma explosão franzina; ainda que seja a explosão de uma vida severina.

E a luta política ensina que é preciso celebrar as vitórias em todas as batalhas, mesmo as comezinhas, ou preparatórias, e não deixar para celebrar apenas a “grande vitória”, aquela conquista suprema, absoluta, que nem sabemos se um dia virá (a utopia em muito se assemelha à linha do horizonte).

Daí ser preciso saborear a vitória do último dia 11 de setembro sobre a extrema direita aqui instalada, ainda que ela não tenha se dado no campo decisivo da política.

Ora, toda derrota do fascismo, essa máquina mortífera, é, em si mesma, uma vitória da vida.

E isto não é apenas uma formulação com ar poético, mas algo bem concreto: para pessoas identificadas como de esquerda (e mesmo figuras da direita ou do “centro” associadas, de alguma forma, com a dita defesa da democracia); para indígenas e quilombolas e para a população LGBT, o afastamento da quadrilha de Jair Bolsonaro das esferas do poder reduz, em princípio, a perspectiva de agressões extremas e mesmo extinção física. E isto não é pouco.

Dada a necessidade de celebração, é compreensível que a opinião pública, inclusive a progressista, deixe para trás o abraço do STF, no passado recente, a teorias esdrúxulas como a do “domínio do fato”, o abandono de garantias previstas no texto constitucional e até o abono a aventuras midiático-punitivistas como a operação Lava Jato, que nos legou figuras lamentáveis como Moro e Dallagnol.

A alta corte, na pobreza nossa de liderança e de conquistas, e em face do Legislativo que aí está, é agora a sede da redenção nacional, o derradeiro refúgio da civilização, a voz do novo grito do Ipiranga.

Nessa reabilitação toda, é natural que se reabilite, também, a ministra Cármen Lúcia, – justo ela que, em 4 de abril de 2018, deu voto decisivo contrário à concessão de habeas corpus preventivo ao então ex-presidente Lula, praticamente selando seu impedimento de concorrer nas eleições presidenciais daquele ano[1] Lula (que indicara Cármen para o cargo em maio de 2006) seria preso dali a três dias, e levado para a Superintendência da PF em Curitiba. O resto é a atribulada história recente que todos conhecemos.

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O julgamento, repito, é de importância histórica, dá impulso ao abandono do projeto fascista que vem sendo ensaiado por parcelas da classe dominante, reforça as chances eleitorais de uma coalizão de centro-esquerda encabeçada novamente por Lula em 2026 e, ao condenar generais estrelados pela prática de crime contra o Estado democrático de direito, abre a possibilidade de uma virada de página em nossa história – uma história marcada, até aqui, pela permanente ameaça de golpes, quarteladas e intervenções indevidas na vida democrática por parte dos fardados.

Mas não se deve perder de vista que o juízo foi, no fundamental, expressão da autodefesa de uma poderosa corporação, que vinha sendo ameaçada, atacada (inclusive com depredação) e enxovalhada pelos neofacistas, até mesmo com o concurso de aliados externos.

O tom triunfalista presente em algumas falas dos juízes e juíza; a autocongratulação; as brincadeiras, que além de descontrair, serviam para exprimir união e cumplicidade; a simbólica presença, no ato final, do decano e mesmo do presidente do colegiado, a prestigiar os trabalhos da 1ª turma… tudo isto serviu para formar a imagem de um poder que, sem passar por mudanças fundamentais (seguem intocados os privilégios de sempre), demonstra capacidade de reagir e se defender.

Nesse contexto, o contraste representado pelo patético e extenuante voto do ministro divergente (integrante da tríade bolsonarista do STF), a mesclar retórica pomposa e vazia e viés de classe, serviu tanto para simbolizar a miríade de juízes e juízas brasileiros sempre abertos a negociar princípios, como para reforçar a legitimidade de um processo que chegou a ser qualificado como “caça às bruxas” pela principal liderança da extrema direita global: “pensamento único, só nas ditaduras”, sentenciou o ministro Barroso em suas considerações finais.

É cedo para avaliar o impacto que o revés judicial, cujos contornos ainda estão por ser definidos, terá sobre o fascismo caboclo, que mantém força política insofismável. É de esperar que a pregação sobre uma suposta injustiça do processo mantenha por algum tempo a coesão desse campo, ameaçada pela inelegibilidade do capo (ainda impune pelos crimes praticados na pandemia). E é sabido que, nos gabinetes do Congresso, vai se tramando um novo golpe, o da anistia, que precisa ser espancado do horizonte.

Mas, para além disso tudo, resta saber como – e quando – a esquerda retomará com força sua presença no debate ideológico-político, reatando o diálogo com a parcela da população hoje conquistada pelo reacionarismo, apresentando um projeto de futuro, e assim deixando de depender, para sua própria sobrevivência física, da intervenção salvadora de heróis e heroínas togados, cujos compromissos podem voltar a mudar, se adiante mudar a maré.

[1]Também votaram contra a concessão do HC: Edson Fachin, Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber e Luiz Fux.

*Pedro Amaral é escritor, mestre em Relações Internacionais e doutor em Letras (PUC-Rio). É autor do livro ”Meninas más, mulheres nuas – As máquinas literárias de Adelaide Carraro e Cassandra Rios” (Papéis Selvagens)

*Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.

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