Lítio ameaça futuro do Salar de Uyuni e se torna pauta central da eleição boliviana
O Salar do Uyuni, uma das paisagens mais impressionantes da América do Sul e potência do turismo boliviano, pode desaparecer caso projetos de exploração intensiva de lítio avancem com o apoio do próximo governo.
O debate sobre a extração de lítio, que é um dos temas centrais da eleição presidencial boliviana, se tornou primordial para a campanha do empresário Samuel Doria Medina, da Aliança Unidade, que lidera as pesquisas eleitorais.
No próximo domingo (17), 8 milhões de bolivianos irão às urnas, de acordo com o Tribunal Supremo Eleitoral (TSE). Ao escolher o próximo presidente, eles sinalizarão também como o lítio será tratado pelo país. Medina já sinalizou abertamente a intenção de colocá-lo na vitrine internacional para atrair investimentos privados para o setor.
No encerramento de sua campanha de rua, na última quarta-feira (13), em El Alto, cidade que integra a região metropolitana de La Paz, a capital boliviana, Medina afirmou que caso seja eleito trabalhará para aprovar, entre fevereiro e março de 2026, uma “nova lei para a exploração de minérios” e uma legislação especial para a extração de lítio, que “dê participação de lucros de 11% aos departamentos produtores.”
Antes, em 16 de julho deste ano, durante agenda de campanha no Salar do Uyuni, Medina bradou aos seus seguidores: “A festa do MAS com o lítio acabou. Basta de usar nossos recursos como alavanca política e basta de mexer com o futuro de nossa gente”, afirmou o empresário.
Ao criticar o MAS, partido do presidente Luis Arce, Medina mira em um importante contrato com a empresa estatal russa Uranium One, que está sob análise da Comissão de Economia da Câmara dos Deputados, para exploração do lítio no país, que foi articulado pelo atual governo.
“Esse contrato não pode ser aprovado, ele deve ser analisado pelo próximo governo. Se vencermos e o contrato for aprovado, vamos processar todos os envolvidos”, ameaçou. Em 23 de fevereiro deste ano, a mesma comissão aprovou o contrato de um bilhão de dólares com o consórcio consórcio CBC, formado pelas companhias chinesas Contemporary Amperex Technology Limited (CATL), Brunp e China Molybdenum Company Limited (CMOC), que já atuam no salar do Uyuny.
“Eu tive diálogo com o governo chinês, com o governo russo, por conta do tema do lítio, e eu lhes comentei que estão completamente equivocados na maneira como querem encarar o tema, não os governos, mas sim suas empresas”, disse Medina, que reforçou o desejo de ser o principal articulador dos acordos com a Bolívia sobre o lítio.
Aos amigos e aliados
Enquanto endurece o jogo com chineses e russos, recentemente, Medina admitiu ter se reunido com o empresário boliviano Marcelo Claure, que declarou publicamente apoio à sua campanha, e com o magnata argentino Marcos Bulgheroni, sócios na Pan American Energy, conglomerado com investimentos no setor petrolífero na Bolívia, México, Paraguai e Uruguai, além de uma importante presença no mercado de lítio na Argentina.
Bulgheroni tem feito recorrentes elogios à gestão do presidente Javier Milei à frente da Argentina. Em maio deste ano, afirmou: “Ele (Milei) está trabalhando intensamente para gerar os investimentos necessários para o desenvolvimento de nossos recursos energéticos, assim como das obras de infraestrutura relacionadas a isso, que envolvem dezenas e dezenas de milhões de dólares por ano”, afirmou o empresário argentino, que concluiu dizendo que “o país está a toda velocidade.”
A relação entre Medina, Claure e Bulgheroni despertou suspeitas sobre a formação de um possível “consórcio empresarial” para controlar o negócio do lítio boliviano. Setores da política boliviana, entre eles o ex-presidente Evo Morales, apontam que a Pan American Energy, ligada aos dois empresários, figura entre as empresas interessadas em explorar o recurso com projetos que miram diretamente o salar.
O economista boliviano Martin Moreira, em entrevista ao Brasil de Fato, alerta para o risco: “Acabaria com o Salar do Uyuni, porque a exploração a céu aberto reduziria cada vez mais a área preservada, até acabar com o salar. Há um comitê cívico que exige uma lei de evaporíticos. Politicamente, o que está acontecendo é que o Samuel Doria Medina quer vender tudo ainda nos três primeiros meses de governo.”
Moreira também aponta que o valor sondado pelo salar é incalculável em termos de potencial estratégico. “Só em matéria-prima, estamos falando de 66 bilhões de dólares. Se industrializarmos, é muito mais. Mas, com a proposta que o mercado especula que a Pan American tenha na mesa, receberíamos só 10 bilhões antecipados e entregaríamos todo o salar, que tem 21 milhões de toneladas”, afirmou, classificando o modelo como “um negócio que sacrifica patrimônio natural e futuro econômico em troca de lucro imediato para poucos.”
O que é lítio?
O lítio é um elemento químico metálico que aparece principalmente em minerais como espodumênio, petalita e lepidolita, ou em salmouras ricas presentes em salares, como o de Uyuni, na Bolívia. Sua extração exige processos específicos para garantir pureza e estabilidade, já que seu uso está associado a tecnologias sensíveis.
No mundo moderno, o lítio se tornou um recurso estratégico por ser componente essencial das baterias recarregáveis de íons, utilizadas em celulares, computadores, tabletes, eletrodomésticos, veículos elétricos e sistemas de armazenamento de energia renovável.
A alta densidade energética do lítio, sua longa vida útil e a capacidade de recarga rápida o tornam indispensável para a transição energética no mundo contemporâneo, que caminha para o caos climático. Com a crescente pressão para reduzir a emissão de gases de efeito estufa e abandonar combustíveis fósseis, a demanda por esse metal disparou nas últimas décadas.
Assim sendo, Bolívia, Chile e Argentina, países da América do Sul com alta concentração de lítio, em possíveis países estratégicos para grandes potências, como China, Russia, EUA, França, Alemanha, entre outros.
De acordo com o Fórum Econômico Mundial, fundação que reúne as mil maiores empresas do mundo, que se reúne anualmente em Davos, na Suíça, a Argentina possui uma reserva de 22 milhões de toneladas de lítio; a Bolívia acumula 21 milhões de toneladas; e o Chile mantém uma reserva de 9,3 milhões de toneladas.
Na Bolívia, a soberania do país sobre a extração do lítio está preservada pela Lei 928, de 27 de abril de 2017, que foi proposta pelo ex-presidente Evo Morales e aprovada pela Assembleia Legislativa Plurinacional.
No bojo desta legislação, foi criada a Empresa Pública Nacional Estratégica de Yacimientos de Litio Bolivianos (YLB), que tem autonomia para cobrir toda a cadeia produtiva do lítio, desde a prospecção e exploração até a industrialização e comercialização.
A legislação não impede, no entanto, que a Bolívia formule parcerias com empresas estrangeiras, mas o país precisa manter 51% dos contratos.
O presidenciável magnata
Nascido em La Paz, em 4 de dezembro de 1958, Samuel Doria Medina é um empresário e político que construiu sua fortuna no setor de cimento. Herdeiro do grupo Soboce, transformou a empresa em uma das maiores da Bolívia antes de vendê-la parcialmente para o consórcio mexicano Grupo Cementos de Chihuahua.
Sua trajetória empresarial se estendeu e Medina passou a atuar em outros setores da economia boliviana, como hoteleiro, imobiliário e educação, consolidando sua imagem como um dos magnatas mais conhecidos e influentes do país.
Apesar disso, não lhe garantiu, até 2025, o sonho de ocupar a cadeira presidencial da Bolívia. Medina já se candidatou três vezes à presidência do país, mas perdeu todas para Evo Morales, em 2005, 2009 e 2015. Todas ainda no primeiro turno.
Formado em Economia pela Universidade Católica Boliviana, Medina também estudou nos Estados Unidos e no Reino Unido. Iniciou sua carreira política nos anos 1990, ocupando o cargo de ministro de Planejamento no governo de Jaime Paz Zamora. Desde então, se manteve como figura recorrente na política nacional.
Extração de lítio
O lítio pode ser extraído principalmente de duas fontes naturais, as salmouras concentradas e as rochas duras. Nas salmouras, presentes em salares como o de Uyuni, o método mais comum é a evaporação solar, em que a água é bombeada para grandes piscinas e evaporada lentamente, concentrando o mineral. Já nas rochas duras, o processo envolve mineração, trituração e tratamento químico para separar o lítio.
Nos últimos anos, surgiu uma terceira via: a Extração Direta de Lítio (DLE). Essa tecnologia utiliza processos químicos para retirar o lítio da salmoura sem depender da evaporação prolongada. Com essa tencologia promete ser mais rápida, usando menos água e reduzindo os impactos ambientais. Sua aplicação em larga escala, ainda está em fase inicial..
Na Bolívia, o método predominante é a evaporação solar operada pela YLB. A salmoura é bombeada do subsolo do Salar de Uyuni e passa por meses de evaporação até atingir concentrações adequadas para a separação do carbonato de lítio. Por isso, as inúmeras imagens feitas por turistas mostram as piscinas à céu aberto, ocupando parte do salar, durante o processo de extração do lítio. O processo é de baixo custo, mas demanda tempo e pode afetar o equilíbrio hídrico da região.
A Bolívia também iniciou testes com a DLE, buscando acelerar a produção e lidar com um desafio específico do Uyuni, a alta concentração de magnésio, que encarece e dificulta o refino.
Estudo alerta para danos irreversíveis
A gravidade do risco é reforçada por um relatório elaborado por pesquisadores da Universidade de San Andrés, na Bolívia, e da Universidade Diego Portales, no Chile, com apoio de organizações como o Observatório Cidadão do Chile, a Anistia Internacional e o Centro de Estudos Legais e Sociais (CELS), que foi divulgado na última quarta-feira (13) na Bolívia.
O documento aponta que a exploração de lítio em larga escala ameaça recursos hídricos e ecossistemas frágeis nas regiões andinas, especialmente no Salar do Uyuni, a maior reserva do mundo.
O estudo destaca que a extração do mineral, essencial para a transição energética e a indústria de baterias, exige volumes expressivos de água em áreas áridas e já afetadas pela crise climática.
No caso boliviano, a pressão sobre os recursos hídricos é intensificada pela entrada de investimentos privados e por acordos firmados desde 2017 entre a estatal Yacimientos de Litio Bolivianos (YLB) e empresas estrangeiras. Muitas dessas parcerias, segundo o relatório, ocorreram sem consulta prévia às comunidades indígenas, violando compromissos internacionais.
A pesquisa alerta que a retirada de milhões de litros de água subterrânea por ano compromete a disponibilidade para comunidades locais, agricultura e pecuária, além de afetar a fauna e a flora.
No Salar do Uyuni, já se observam mudanças na quantidade e na qualidade da água, o que pode levar à degradação irreversível do ecossistema e à destruição do potencial turístico da região. Os autores também projetam que, sem mudanças no modelo de produção, a demanda por lítio pode dobrar até 2030 e multiplicar-se por seis até 2050, ampliando os danos ambientais e sociais.
O relatório é enfático, a transição energética, embora necessária, não pode reproduzir um modelo extrativista predatório, que esgota recursos naturais e aprofunda desigualdades. Se mantido o ritmo atual de exploração, a corrida pelo lítio transformará os salares andinos em áreas degradadas e inviáveis para a vida e para as atividades econômicas que hoje sustentam milhares de famílias.
Os indígenas e o salar
A preocupação com o desgaste do salar e o potencial de extermínio da área envolve também os indígenas que habitam a região. No entorno do deserto de sal, vivem comunidades aimarás e quéchuas, que garantem sua subsistência com o sal, que extraem do salar para uso culinário e artesanal.
A mística centenária entorno do salar colabora para que os indígenas mantenham centros culturais na extensão do deserto. A oferta aos turistas, que são estimados em 350 mil por ano pelo Ministério de Cultura, Descolonização e Despatriarcalização, também alimenta restaurantes e pequenos comércios na região.
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