Come Ananás: Anistia além do jurídico: notas sobre as implicações políticas de uma audácia reacionária
Anistia além do jurídico: notas sobre as implicações políticas de uma audácia reacionária
É um bom momento para pararmos de fingir normalidade e que tudo se resolve com a crença na reeleição do presidente — que não se sabe se ocorrerá nem se será suficiente
Por Elidio Alexandre Borges*, no Come Ananás
A Câmara aprovou na noite desta quarta-feira, 17, a urgência do projeto de lei de anistia e com uma maioria ampla, 311 votos, que seria suficiente para aprovar uma emenda constitucional. Lula já disse que o vetaria, mas o Congresso poderia derrubar o veto e a questão iria para o Supremo, que sinaliza ter maioria pela inconstitucionalidade, ao menos nos termos atuais.
Por que, então, esta aprovação é grave? Algumas razões:
Primeiro, porque mostra que o Presidente da Câmara, deputado Hugo Motta, está em boa medida nas mãos dos golpistas que ocuparam a mesa da casa no início do período legislativo. Desde o fim daquela ação havia sinais ambíguos, que contrastavam as versões de ter ou não havido acordo para votações de interesse da direita, como a blindagem e a anistia, com o líder oficial da casa fazendo equilíbrios físicos e verbais para mostrar alguma preservação de autoridade combinada com o apoio da ala direita majoritária que o sustenta e pressiona.
Segundo, porque evidencia que há força e intransigência da oposição e sinalização de indisposição total para viabilizar os projetos do governo até o final do mandato. Raras vezes se viu, na história brasileira, incluindo estados e municípios, uma oposição parlamentar tão disposta ao enfrentamento como a atual. Nossa história é marcada por oposições fracas e ambíguas — e nem tão opositoras assim — talvez com exceção da oposição feita pelo PT ao neoliberalismo dos anos 90 (ainda que sendo minoritário, incapaz de impedir a agenda dos governos e com bastante “responsabilidade institucional”, o que é totalmente diferente da atual).
Terceiro, porque reforça a crise produzida pelo Congresso contra o STF — em alguma medida contra o TSE, já que este é em parte dirigido por aquele — numa aposta de que este ou bem cederá às suas vontades e interesses ou sofrerá modificações de competências ou composição. A questão das emendas e as investigações são crescentemente importantes à medida que o orçamento livre foi sequestrado pelas oligarquias parlamentares e as irregularidades e eventuais crimes se mostram crescentemente presentes neste jogo de gestão cada vez mais fisiológica do fundo público.
Quarto, porque dissemina, junto com a PEC da Blindagem, um sentimento “anti-política” que tem bases justas quando se volta contra a maioria congressual, mas que, sejamos realistas, tem sido muito mais captado pela extrema-direita que pela esquerda nas últimas décadas. A disputa aí é crucial, há indignação social, mas se ela não se torna movimento e vitória — política e parcial que seja — deixará aberto campo para novas derrotas nas próximas votações e na eleição do ano que vem. Nada garante que o eleitor contrariado de hoje votará amanhã num parlamentar melhor para seus interesses, sendo disputado pelos diversos absenteísmos e por novos líderes comunicacionais, religiosos ou de aparentes pautas “novas”, inclusive os que têm ligações mais ou menos nítidas com o crime organizado e que têm sido cada vez mais presentes nos parlamentos locais.
Quinto, porque este quadro de paralisia política do governo se dá num cenário de desmobilização e em que todas as boas oportunidades para retomá-la têm sido desperdiçadas. Desde os mandatos anteriores e inclusive desde o início deste parece ter se instalado numa parte da base social governista — em direta associação com as fragilidades tanto estruturais como subjetivas de suas direções políticas — uma desconfiança em relação à mobilização social, como se o risco de perder o controle sobre ela a fizesse não valer a pena na maior parte do tempo.
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Vivemos e viveremos uma batalha difícil e estranha, em termos que não acordamos e nem são justos. A base parlamentar de Lula é pequena, muito frágil e pouco confiável (veja a quantidade de votos que partidos como PSB e até o próprio PT deram para a PEC). O bolsocentrão (está mais do que na hora de reconhecermos a proximidade e tendencial fusão entre estes “dois setores”) não tem a menor responsabilidade com o país (Eduardo Bolsonaro foi escolhido líder mesmo tramando abertamente desde os EUA contra os interesses nacionais) nem com as instituições (todos sabem que a aprovação da anistia gerou atrito e descrédito). A oposição é irascível e a situação tem um projeto de traços que aparecem publicamente de forma frágil. O grande projeto visível do governo, a isenção de IR até R$ 5 mil com taxação dos mais ricos, é justo, mas de impacto limitado e aprovação, nesta formulação, agora improvável e não parece haver uma agenda B. A mídia dominante é ambígua e a “a internet” é o que sabemos, apesar de alguns esforços de ocupação de espaço ainda insuficientes.
Atos — ainda que por enquanto sem assinatura e direções claras — contra a anistia e a PEC estão sendo chamados. É sempre uma esperança. A toupeira que levante sua cabeça, as maiorias sociais que recusem o abismo. As organizações sérias que respeitem e apoiem o que ainda há de vivo e positivo nos sentimentos populares. A esperança e indignação capaz de se colocar em movimento não são inesgotáveis e podem se mostrar cansados por períodos longos. Muitas oportunidades já foram perdidas. Não sabemos se haverá muitas mais. Se haverá mais. Se há.
É um bom momento para pararmos de fingir normalidade e que tudo se resolve com a crença na reeleição do presidente — que não se sabe se ocorrerá nem se será suficiente. O Brasil não está normal, nem mesmo para padrões “Brasil” de normalidade. A resposta também não pode ser a mesma de sempre, não é?
*Elídio A. B. Marques é professor do Instituto de Relações Internacionais e Defesa da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o IRID/UFRJ.
Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.
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Publicação de: Viomundo