Chris Hedges: A traição aos jornalistas palestinos
A traição aos jornalistas palestinos
Os repórteres ocidentais são parceiros plenos no genocídio. Eles amplificam as mentiras israelenses, que sabem ser mentiras, traindo os colegas palestinos, que são caluniados, alvejados e mortos por Israel.
Por Chris Hedges, em seu substack Chris Hedges Report
Há dois tipos de correspondentes de guerra. O primeiro tipo não comparece a coletivas de imprensa. Eles não imploram por entrevistas a generais e políticos. Eles assumem riscos ao reportar de zonas de combate. Eles enviam de volta aos seus espectadores ou leitores o que veem, o que quase sempre é diametralmente oposto às narrativas oficiais. Em todas as guerras, este primeiro tipo é uma ínfima minoria.
E aí, há o segundo tipo, a massa inconcreta de auto-identificados correspondentes de guerra, que brincam de guerra. Apesar do que dizem aos editores e ao público, eles não têm nenhuma intenção de encarar o perigo. Eles ficam satisfeitos com a proibição israelense da presença de repórteres estrangeiros em Gaza. Eles suplicam às autoridades por resumos informativos e coletivas de imprensa. Eles colaboram com os responsáveis governamentais que impõem restrições e regras que os mantêm distante do combate. Eles disseminam servilmente tudo o que recebem das autoridades, o que é em grande parte mentira, mas fazem de conta que é notícia. Eles participam de pequenos passeios organizados pelos militares — shows de cachorro e pônei — onde podem se vestir e brincar de soldados e visitar postos avançados onde tudo é controlado e coreografado.
O inimigo mortal desses presunçosos são os verdadeiros repórteres de guerra, neste caso, os jornalistas palestinos em Gaza. Esses repórteres os expõem como bajuladores e sicofantas, desacreditando quase tudo o que divulgam. Por esse motivo, os presunçosos nunca perdem a chance de questionar a veracidade e os motivos dos que estão no campo. Eu vi essas víboras fazerem isso repetidamente com meu colega Robert Fisk.
Quando o repórter de guerra Ben Anderson chegou ao hotel onde os jornalistas que cobriam a guerra na Libéria estavam acampados – em suas palavras, “embriagando-se” em bares “por conta”, envolvendo-se em casos e “trocando informações, em vez de realmente sair e obter informações” – sua imagem dos repórteres de guerra sofreu um grande golpe.
“Eu pensei: finalmente, estou entre meus heróis”, lembra Anderson. “É aqui onde eu queria estar há anos. E então eu e o cinegrafista com quem eu estava – que conhecia os rebeldes muito bem – ele nos levou para estar cerca de três semanas com os rebeldes. Voltamos para Monróvia. Os caras no bar do hotel nos disseram: ‘Onde vocês estavam? Pensamos que tivessem voltado para casa. Replicamos: ‘Saímos para cobrir a guerra. Não é esta a nossa função? Não era isso o que vocês deveriam fazer?’”
“A visão romântica que eu tinha dos correspondentes estrangeiros foi repentinamente destruída na Libéria”, continuou ele. “Eu pensei, na verdade, muitos desses caras estão cheios de merda. Eles não estão dispostos nem a deixar o hotel, muito menos deixar a segurança da capital e realmente fazer algumas reportagens.”
Você pode ver uma entrevista que fiz com Anderson aqui.
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Essa linha divisória, que esteve presente em todas as guerras que cobri, define a cobertura sobre o genocídio em Gaza. Não é uma divisão de profissionalismo ou cultura. Os repórteres palestinos expõem as atrocidades israelenses e implodem as mentiras israelenses. O resto da imprensa, não.
Os jornalistas palestinos, visados e assassinados por Israel, pagam – assim como fazem muitos grandes correspondentes de guerra – com suas vidas, embora em números muito maiores.
Israel já assassinou 245 jornalistas em Gaza, em uma contagem, e mais de 273, em outra. O objetivo é manter o genocídio na escuridão. Nenhuma das guerras que cobri chega perto desse número de mortos.
Desde 7 de outubro, Israel matou mais jornalistas “do que a Guerra Civil dos EUA, a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais, a Guerra da Coréia, a Guerra do Vietnã (incluindo os conflitos no Camboja e no Laos), as guerras na Iugoslávia nas décadas de 1990 e 2000 e a guerra pós-11 de setembro no Afeganistão, somadas”. Os jornalistas na Palestina deixam testamentos e vídeos gravados para serem lidos ou reproduzidos em sua morte.
Os colegas desses jornalistas palestinos na imprensa ocidental transmitem da cerca que separa Gaza, equipados com coletes à prova de balas e capacetes, onde têm tanta probabilidade de serem atingidos por estilhaços ou balas quanto de serem atingidos por um asteroide. Eles vão correndo como coelhos para as entrevistas com os oficiais israelenses. Eles não são apenas inimigos da verdade, mas também inimigos dos jornalistas que fazem o verdadeiro trabalho de cobertura de guerras.
Quando tropas iraquianas atacaram a cidade saudita de Khafji durante a primeira Guerra do Golfo, os soldados sauditas fugiram em pânico. Dois fotógrafos franceses e eu assistimos a soldados frenéticos se apossando de caminhões de bombeiros e fugindo para o sul. Fuzileiros navais dos EUA empurraram os iraquianos de volta. Mas em Riyadh, a imprensa foi informada sobre nossos corajosos aliados sauditas defendendo sua pátria. Assim que os combates terminaram, o ônibus da imprensa parou a algumas milhas da estrada de Khafji. Os repórteres do pool saíram do veículo, acompanhados por guias militares. Eles realizaram entrevistas com o som distante da artilharia e fumaça ao fundo e repetiram as mentiras que o Pentágono queria que contassem.
Enquanto isso, os dois fotógrafos e eu fomos detidos e espancados pelos policiais militares sauditas, enfurecidos por termos documentado a fuga em pânico das forças sauditas, enquanto tentávamos deixar Khafji.
Minha recusa em aceitar as restrições à imprensa na Primeira Guerra do Golfo fez com que os outros repórteres do New York Times na Arábia Saudita escrevessem uma carta ao editor internacional dizendo que eu estava arruinando o relacionamento do jornal com os militares. Se não fosse pela intervenção de R.W. ‘Johnny’ Apple, que havia feito a cobertura do Vietnã, eu teria sido mandado de volta para Nova York.
Não culpo ninguém por não querer entrar em uma zona de guerra. Isso é um sinal de normalidade. É racional. É compreensível. Aqueles de nós que se voluntariam para ir ao combate — meu colega Clyde Haberman do The New York Times certa vez comentou: “Hedges vai se lançar em uma guerra com ou sem paraquedas” — temos defeitos de personalidade óbvios.
Mas eu culpo aqueles que fingem ser correspondentes de guerra. Eles causam um imenso dano. Eles propagam narrativas falsas. Eles mascaram a realidade. Eles atuam — consciente ou inconscientemente — como propagandistas. Eles desacreditam as vozes das vítimas e isentam os assassinos.
Quando estava cobrindo a guerra em El Salvador, antes de trabalhar para o The New York Times, a correspondente do jornal regurgitava devidamente tudo o que a embaixada lhe passava. Isso teve o efeito de levar meus editores — assim como os editores dos outros correspondentes que realmente reportavam a guerra — a questionarem nossa veracidade e “imparcialidade”. Isso tornava mais difícil para os leitores entenderem o que estava acontecendo. As narrativas falsas castravam e muitas vezes se sobrepujavam às reais.
A difamação usada para desacreditar meus colegas palestinos — a alegação de que eles são membros do Hamas — é tristemente familiar. Muitos dos repórteres palestinos que conheço em Gaza são, de fato, bastante críticos do Hamas. Mas mesmo que eles tivessem laços com o Hamas, e daí? A tentativa de Israel de justificar o ataque a jornalistas da rede al-Aqsa, administrada pelo Hamas, também é uma violação do Artigo 79 da Convenção de Genebra.
Trabalhei com repórteres e fotógrafos que tinham uma ampla variedade de crenças, incluindo marxista-leninistas na América Central. Isso não os impedia de serem honestos. Eu estive na Bósnia e no Kosovo com um cinegrafista espanhol, Miguel Gil Moreno, que foi posteriormente morto com meu amigo Kurt Schork. Miguel era membro do grupo católico de direita Opus Dei. Ele também era um jornalista de tremenda coragem, grande compaixão e probidade moral, a despeito de suas opiniões sobre o governante fascista da Espanha, Francisco Franco. Ele não mentia.
Em todas as guerras que cobri, era acusado de ser apoiador ou pertencente a qualquer grupo que o governo, incluindo o governo dos EUA, estivesse tentando esmagar. Fui acusado de ser uma ferramenta da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional, em El Salvador, dos sandinistas, na Nicarágua, da Unidade Nacional Revolucionária da Guatemala, do Exército de Libertação do Povo Sudanês, do Hamas, do governo pró-muçulmano na Bósnia e do Exército de Libertação do Kosovo.
John Simpson, da BBC, como muitos repórters ocidentais, argumenta que “o mundo precisa de relatos honestos e imparciais de testemunhas oculares para ajudar as pessoas a se decidirem sobre as principais questões de nosso tempo. Isso até agora tem sido impossível em Gaza.”
A suposição de que, se repórters ocidentais estivessem em Gaza, a cobertura melhoraria é risível. Creiam-me. Não seria.
Israel proíbe a imprensa estrangeira porque há um viés na Europa e nos Estados Unidos a favor de reportagens de repórteres ocidentais. Israel está ciente de que a escala do genocídio é muito vasta para os meios de comunicação ocidentais esconderem ou obscurecerem, apesar de toda a tinta e tempo no ar que oferecem aos apologistas de Israel e dos E.U.A. Israel também não pode continuar com sua campanha sistemática de aniquilação de jornalistas em Gaza se tiver de lidar com a mídia estrangeira em seu meio.
As mentiras israelenses amplificadas pelos meios de comunicação ocidentais, incluindo meu ex-empregador The New York Times, são dignas do Pravda. Bebês decapitados. Bebês assados em fornos. Estupro em massa pelo Hamas. Foguetes palestinos errantes que causam explosões em hospitais e massacram civis. Túneis do comando secretos e centros de comando em escolas e hospitais. Jornalistas que dirigem unidades de mísseis do Hamas. Manifestantes contra o genocídio em campi universitários que são antissemitas e apoiadores do Hamas.
Eu cobrí o conflito entre palestinos e israelenses, grande parte desse tempo em Gaza, por sete anos. Se há um fato indiscutível, é que Israel mente tanto como respira. A decisão dos repórteres ocidentais de dar credibilidade a essas mentiras, de dar a elas o mesmo peso que às documentadas atrocidades israelenses é um jogo cínico.
Os repórteres sabem que essas mentiras são mentiras. Mas eles, e as agências de notícias que os empregam, prezam o acesso — neste caso, o acesso a oficiais israelenses e dos EUA — acima da verdade. Os repórteres, assim como seus editores e publicadores, temem tornarem-se alvos de Israel e do poderoso lobby israelense. Não há nenhum custo em trair os palestinos. Eles não têm poder.
Revele essas mentiras e você logo verá que seus pedidos de briefing e entrevistas com oficiais serão rejeitados. Você não será convidado por assessores de imprensa para participar de visitas encenadas a unidades militares israelenses. Você e sua empresa midiática serão atacados persistentemente. Você será abandonado ao relento. Seus editores porão fim a sua missão ou a seu emprego. Isso não é bom para carreiras. E assim, as mentiras são diligentemente repetidas, sem importar o quão absurdas sejam.
É patético observar esses repórters e suas agências de notícias, como Fisk escreve, lutarem “como tigres para ingressar nesses ‘poços’ nos quais seriam censurados, restritos e privados de toda liberdade de movimento no campo de batalha.”
Quando os jornalistas do Middle East Eye, Mohamed Salama e Ahmed Abu Aziz, juntamente com o fotojornalista da Reuters, Hussam al-Masri, e os freelancers Moaz Abu Taha e Mariam Dagga — que haviam trabalhado com várias agências de notícias, incluindo a Associated Press — foram mortos em um ataque “torneira dupla” — projetado para matar os primeiros socorristas que chegassem para tratar as vítimas dos ataques iniciais — no Complexo Médico Nasser, como reagiram as agências de notícias ocidentais?
“O exército israelense diz que ataques a hospital de Gaza miravam o que diz ser uma câmera do Hamas,” relatou a Associated Press.
“IDF afirma que ataque ao hospital foi direcionado à câmera do Hamas,” anunciou a CNN.
“O exército israelense diz que seis ‘terroristas’ foram mortos nos ataques de segunda-feira ao hospital de Gaza,” dizia a manchete da AFP.
“A investigação inicial diz que a câmera do Hamas foi o alvo do ataque israelense que matou jornalistas”, disse a Reuters.
“Israel afirma que as tropas viram a câmera do Hamas antes do mortal ataque ao hospital”, explicou a Sky News.
Apenas para constar, a câmera pertencia à Reuters, que disse que Israel estava “totalmente ciente” de que a agência de notícias estava filmando do hospital.
Quando o correspondente da Al Jazeera, Anas Al Sharif, e três outros jornalistas foram mortos em 10 de agosto em sua tenda de mídia próxima ao Hospital Al Shifa, como isso foi noticiado na imprensa ocidental?
“Israel mata jornalista da Al Jazeera que diz ser líder do Hamas”, titula a Reuters sua matéria, apesar do fato de que al-Sharif fazia parte de uma equipe da Reuters que ganhou um Prêmio Pulitzer em 2024.
O jornal alemão Bild publicou uma matéria de primeira página com a manchete: “Terrorista disfarçado de jornalista é morto em Gaza.”
O bombardeio de mentiras israelenses amplificadas e dotadas de credibilidade pela imprensa ocidental viola um princípio fundamental do jornalismo, o dever de transmitir a verdade ao telespectador ou leitor. Isso legitima o massacre em massa.
É a recusa a responsabilizar Israel. É a traição aos jornalistas palestinos, àqueles que reportam e estão sendo mortos em Gaza. E expõe a falência dos jornalistas ocidentais, cujas principais características são o carreirismo e a covardia.
*Chris Hedges (@ChrisLynnHedges), jornalista ganhador do Prêmio Pulitzer, autor de best-sellers e ativista. Seu último livro The Greatest Evil is War.
Tradução: Jair de Souza
Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.
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Publicação de: Viomundo