Ângela Carrato: Se Gabriel Garcia Marquez estivesse vivo, daria a Lula o prêmio de equilibrista na categoria mais elevada

LULA, O EQUILIBRISTA

Por Ângela Carrato*

Gabriel Garcia Márquez, o grande escritor colombiano, prêmio Nobel de Literatura, se vivo estivesse, certamente concordaria comigo.

Para um presidente latino-americano comprometido com o povo e com o seu país conseguir governar, sem ser derrubado ou morto, é preciso dotes de equilibrista.

No passado, alguns equilibristas foram Juan Domingo Perón e Néstor Kirchner, ambos na Argentina, e Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek, no Brasil. Mais recentemente, outro equilibrista foi Pepe Mujica, no Uruguai.

Na atualidade, vencer o prêmio de equilibrista na categoria mais elevada é o que se espera de Luiz Inácio Lula da Silva, prestes a completar dois meses do seu terceiro mandato à frente do Palácio do Planalto.

Não foi pouco o que Lula realizou até agora.

Derrotou, na primeira semana de governo, uma tentativa de golpe de estado articulado por bolsonaristas e setores militares, retomou importantes programas sociais como Bolsa Família e Minha Casa Minha Vida, cessou o genocídio de que vinha sendo vítima o povo Yanomami, está enfrentando a sabotagem do Banco Central, que com seus juros astronômicos inviabilizam a retomada do crescimento econômico, e recolocou o Brasil no cenário internacional.

Lula já fez três viagens ao exterior: Argentina, Uruguai e Estados Unidos.

Na Argentina, em reunião de cúpula da CELAC, deixou nítido que o primeiro compromisso de sua política externa é com a integração da América Latina e o apoio a uma moeda comum para o comércio Brasil-Argentina.

No Uruguai, reforçou a importância do Mercosul, acordo que Bolsonaro quase destruiu. Nos Estados Unidos, a agenda foi política.

Convidado por Joe Biden e recebido com todas as honras, Lula e ele reafirmaram o compromisso com o combate ao extremismo de direita e às fake news, que tantos problemas têm criado para a democracia nos dois países.

Basta lembrar que os atos terroristas/bolsonaristas de 8 de janeiro no Brasil guardam inúmeras semelhanças com a invasão trumpista do Capitólio, dois anos antes, nos Estados Unidos.

No final de março, Lula irá à China, mas, como uma espécie de sinalização para a importância que dá para os BRICS, já indicou a ex-presidenta Dilma Rousseff para a direção do banco do bloco, o NDB, cujo objetivo é financiar projetos de infraestrutura em países emergentes. Impossível Lula mostrar de forma mais clara que o Brasil quer e irá participar das decisões globais.

Nem Getúlio Vargas e nem Juscelino Kubitscheck fizeram tanto em tão pouco tempo.

Mesmo assim setores de direita, da extrema-direita e até de esquerda estão juntos, por razões diferentes, na condenação ao recente voto que o Brasil deu na ONU, em que defendeu a retirada imediata de tropas russas da Ucrânia.

Direita e extrema-direita gostariam que o atual governo cerrasse fileiras com os Estados Unidos e com a OTAN na criminalização da Rússia, como a única responsável pela guerra que acaba de completar um ano. Gostariam, inclusive, que o Brasil se unisse ao “Ocidente” e enviasse armamentos para Ucrânia, coisa que, acertadamente, o governo Lula não fez.

Já setores de esquerda, alguns indiscutivelmente bem-intencionados, criticaram o governo por este voto, considerando que foi uma capitulação ao imperialismo estadunidense.

Como a guerra na Ucrânia, na prática, é uma guerra entre os Estados Unidos e a Rússia, agindo assim o Brasil teria se tornado um anão diplomático, deixando de lado a política externa “altiva e ativa” dos governos petistas anteriores.

Ninguém desconhece a importância que Biden teve para desarmar esquemas golpistas, seja pelo rápido reconhecimento da vitória de Lula nas eleições de 2022, seja pela forma com que rechaçou o terrorismo em 8 de janeiro.

Para o “partido militar” e a vira-lata classe dominante brasileira, o recado não poderia ter sido mais claro.

Não se sabe o teor da conversa que Lula e Biden tiveram, a sós, na Casa Branca. Pragmáticos como são os presidentes dos Estados Unidos, pode ser que a fatura já tenha sido cobrada ali mesmo.

Se este raciocínio estiver certo, o que você acha que Lula deveria ter feito?

Aproveitar a entrevista com a internacionalmente conhecida jornalista Christiane Amanpour, da CNN, para denunciar as pressões de Biden ou fazer do limão uma limonada?

Além de tremenda descortesia em termos de relações internacionais, qualquer denúncia de Lula seria inócua. Serviria apenas para por mais lenha na nossa fogueira interna, cujas brasas estão longe de se apagar.

É nesse momento que o equilibrismo de Lula, a exemplo do que fizeram Getúlio e Juscelino, pode fazer a diferença.

Getúlio Vargas não queria que o Brasil entrasse na Segunda Guerra Mundial. Foram as pressões dos Estados Unidos, da “casa grande” brasileira e da mídia entreguista de então que o obrigaram a cerrar fileiras num conflito no qual o Brasil não tinha nada a ver e nem nada a ganhar.

Getúlio poderia ter dito não ao presidente Franklin Roosevelt?

Poderia, mas o custo seria altíssimo, uma vez que o Tio Sam precisava do nordeste brasileiro como base de apoio para suas operações militares e não hesitaria em invadir a região, se necessário fosse.

Na época não tínhamos e continuamos não tendo armamento para enfrentar um inimigo externo. As nossas Forças Armadas, lamentavelmente, especializaram em combater apenas o povo brasileiro.

O que fez Getúlio?

Deu início a um processo de industrialização, com base no modelo de substituição de importações, conseguindo, através da intervenção estatal, convencer parte da “casa grande”, a elite econômica brasileira, de que esse era o caminho mais adequado.

Já naquela época, Getúlio e Perón, seu colega argentino, tinham tudo para realizar uma política conjunta entre seus países, com vantagens comerciais para ambos e para a própria América do Sul. Mas por pressões de Washington, jamais chegaram sequer a se encontrar pessoalmente.

Juscelino Kubitscheck deu sequência e ampliou o modelo iniciado por Getúlio, cujo ápice está materializado no Plano de Metas, sintetizado no slogan “50 anos em cinco”, que norteou seu governo.

JK se aproximou e se afastou dos Estados Unidos em muitas oportunidades.

Preocupado com a integração latino-americana, propôs a Operação Pan-Americana (OPA), que tinha por objetivo unir todos os países do continente em torno de um projeto de desenvolvimento social e econômico e de combate à pobreza.

A proposta foi usurpada pelo Tio Sam, que rebatizou a ideia como Aliança Para o Progresso.

No governo Kennedy e no de sucessor, Lyndon Johnson, o plano se voltou apenas para o combate ao comunismo, verdadeira obsessão da Casa Branca em relação à América Latina, após a vitória de Fidel Castro em Cuba.

Até o final da década de 1980, foram políticas econômicas iniciadas por Getúlio e JK que estiveram presentes, inclusive em parte dos governos militares – notadamente no período Geisel.

A partir dos anos 1990, teve início um recuo nas políticas industriais baseadas na intervenção do estado na economia e passou a prevalecer uma visão neoliberal.

É importante lembrar que em 1991 a URSS chegou ao fim e os Estados Unidos comemoraram ter se tornando a única potência mundial.

Os piores exemplos de adoção de políticas neoliberais no Brasil se deram durante os governos Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso.

A título de colocarem o Brasil entre os países do Primeiro Mundo, adotaram posturas equivocadas e subservientes aos interesses dos Estados Unidos e da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o clube dos ricos.

Ainda hoje a “casa grande” brasileira e a sua mídia entreguista batem palmas para FHC e o tratam como estadista, coisa que nunca foi.

A penúltima vez que o Brasil teve uma proposta de política industrial, tecnológica e de comércio exterior foi em 2003, no início do primeiro governo Lula.

A última foi em 2011, no início do primeiro governo Dilma Rousseff, quando houve não só reforço da visão do plano anterior, como se atribuiu ao setor industrial um papel de destaque na promoção do desenvolvimento, com foco no estímulo à inovação para que a indústria pudesse ser competitiva tanto interna quanto externamente.

Nos últimos seis anos, os governos golpistas Temer e Bolsonaro destruíram a indústria brasileira, sob os aplausos da “casa grande”, da mídia vassala ao Tio Sam e demais interesses imperialistas.

Nenhuma palavra foi escrita na autointitulada grande mídia criticando a destruição pela Operação Lava Jato das empreiteiras brasileiras e da indústria naval.

Nenhuma palavra foi escrita ou falada sobre a destruição da cadeia produtiva da Petrobras e da privatização, a preço de banana, da sua rede de postos de gasolina (BR Distribuidora), de várias de suas refinarias e da entrega de grande parte do pré-sal a empresas internacionais.

Sob os aplausos desses mesmos senhores, o Brasil, em 2022, regrediu aos anos 1930, quando as nossas exportações consistiam apenas em produtos agrícolas, rebatizados com o pomposo nome de commodities.

Foi este Brasil rural, junto com os rentistas da Faria Lima e a turma do Tio Sam, que estiveram à frente do golpe que derrubou Dilma, prendeu Lula por 580 dias, e elegeu Bolsonaro.

Foi este mesmo Brasil que fez de tudo para que Lula não fosse eleito, uma vez eleito, tentou derrubá-lo e, como denuncia o ministro Flávio Dino, planejou até matá-lo.

É esse mesmo Brasil que agora, na maior cara de pau, cobra, junto com bem e mal intencionados, que Lula se alinhe aos Estados Unidos na condenação à Rússia ou que “seja coerente” e mantenha sua postura de neutralidade, que, na prática, significa não criticar a Rússia.

Como Getúlio e JK, Lula vai se equilibrando. Bate aqui, sopra acolá. Prioriza a América Latina sem hostilizar os Estados Unidos. Amplia a presença do Brasil no BRICS, sem romper os laços com os Estados Unidos e com a Europa.

Vai assumir a presidência do G-20 ao mesmo tempo em que retoma a luta pela ampliação do número de países que integram o Conselho de Segurança da ONU.

Defende a Amazônia e seus povos originários, sem abrir mão da busca por parceiros para reindustrializar o país e modernizar nossa infraestrutura.

A geopolítica mundial está mudando. Os Estados Unidos não são mais a única potência. A história, como chegou a escrever Francis Fukuyama, não acabou. Ela segue.

O eixo econômico mundial desloca-se com rapidez para a Ásia. Cada dia fica mais claro que o Sul Global – América Latina, Ásia e África – rejeita a OTAN, simpatiza com a China e com a Rússia.

Não houve e continua não havendo empatia do chamado Ocidente (leia-se Estados Unidos e seus aliados) para com os problemas experimentados por latino-americanos, africanos e asiáticos.

Aos olhos do Norte Global, não passamos de um bando de mestiços ignorantes e que devem ser tutelados.

Mesmo assim, a ficha da “casa grande” brasileira ainda não caiu.

A mídia vira-lata continua achando que Washington e Londres são os centros do mundo. O agronegócio brasileiro, mesmo tendo a China como principal comprador, prefere bater continência para os Estados Unidos.

Lula sabe de tudo isso. Sabe, sobretudo, que é nesse contexto que ele, se quiser avançar em suas propostas tanto internas quanto externas, terá que se movimentar.

Haja equilibrismo!

*Ângela Carrato é jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG.

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Publicação de: Viomundo

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