Antonio de Azevedo: Ferrajoli e o garantismo constitucional na defesa da democracia brasileira
Luigi Ferrajoli e o garantismo constitucional na defesa da democracia brasileira
Por Antonio Sérgio Neves de Azevedo*
A recente condenação do ex-presidente Jair Bolsonaro e de outros envolvidos na tentativa de golpe de Estado no Brasil foi descrita por Luigi Ferrajoli, jurista e professor italiano de 85 anos, como “um ato importantíssimo de garantismo constitucional”.
O comentário, concedido em entrevista a uma revista digital, reflete a coerência de uma trajetória teórica que consolidou Ferrajoli como o principal expoente do garantismo penal, uma doutrina que se ergue em defesa da legalidade, da racionalidade e dos direitos fundamentais frente ao poder punitivo do Estado.
Autor da monumental obra Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal, Ferrajoli sustenta que o Estado Democrático de Direito somente se preserva quando o poder, em todas as suas dimensões, inclusive a penal, é limitado por princípios e garantias constitucionais.
O garantismo, nessa perspectiva, é mais do que uma técnica processual: é um modelo normativo de civilização jurídica, fundado na supremacia dos direitos humanos e na contenção do arbítrio, seja ele estatal ou político.
Ao reconhecer na decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que condenou os responsáveis pela tentativa de golpe, um exemplo de “superioridade na defesa do Estado Democrático de Direito”, Ferrajoli sinaliza para algo que transcende o caso concreto.
Em um contexto global de erosão democrática, populismos autoritários e tentativas de captura das instituições, o julgamento de uma tentativa de golpe representa a reafirmação de que nenhum projeto político está acima da Constituição. O ato de condenar não é revanche, mas a aplicação de uma racionalidade jurídica que distingue o Estado de Direito do estado de exceção.
Em relação ao voto divergente do ministro Luiz Fux, que propôs a absolvição dos réus na ação penal relativa à tentativa de golpe de Estado, Ferrajoli avaliou que tal posicionamento “não adere ao modelo garantista constitucional que legitima o poder punitivo dentro do Estado de Direito”.
Segundo o jurista, o voto de Fux representa uma inversão da lógica garantista, pois, ao enfatizar aspectos processuais e formais em detrimento da tutela das instituições democráticas, enfraquece as próprias garantias materiais que dão sentido à legalidade penal.
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O voto de Fux repercutiu amplamente na comunidade jurídica. Parte da doutrina reconheceu coerência em sua preocupação com o devido processo e a tipicidade estrita, mas a maioria das análises, sobretudo sob a ótica do garantismo constitucional, apontou que o ministro isolou-se ao restringir o conceito de proteção democrática à forma, enquanto o garantismo, como explica Ferrajoli, exige também a efetividade do direito diante de ameaças concretas à ordem constitucional. Assim, o contraste entre o voto de Fux e a visão majoritária do Tribunal ilustra a tensão entre dois paradigmas: o formalismo jurídico e o garantismo democrático.
Nessa seara, o pensamento ferrajoliano se estrutura em três níveis normativos: validade, eficácia e legitimidade.
Uma norma é válida quando está formalmente prevista no ordenamento; eficaz, quando é aplicada; e legítima, quando respeita os direitos fundamentais.
Portanto, para que uma decisão judicial seja democraticamente legítima, é preciso que ela observe garantias processuais, mas também realize a proteção substancial da ordem constitucional, condição sem a qual o garantismo se tornaria um formalismo vazio.
Dito isso, o que Ferrajoli identificou na decisão da justiça brasileira que condenou os réus no STF foi precisamente esse equilíbrio: um ato de justiça que respeita as garantias de defesa e, ao mesmo tempo, protege a democracia contra quem tentou destruí-la.
Trata-se, em suas palavras, de um “garantismo constitucional”, isto é, a ampliação do paradigma penal para a própria estrutura do Estado e das instituições democráticas.
Enquanto o garantismo penal clássico se preocupa em conter o abuso punitivo contra o indivíduo, o garantismo constitucional opera na direção inversa: protege a sociedade e o ordenamento contra o abuso político que ameaça as garantias de todos.
É essa dupla face, garantismo de liberdade e garantismo de democracia, que confere ao pensamento de Ferrajoli uma atualidade singular e uma força ética rara no debate jurídico contemporâneo. O reconhecimento do jurista italiano de que o Brasil demonstrou “superioridade” no campo democrático não é um elogio retórico, mas uma advertência teórica.
Em tempos em que a retórica da força e da desinformação tenta relativizar o golpe e inverter papéis entre vítimas e algozes, reafirmar o valor das instituições e do direito é um dever civilizatório.
Dessa forma, o garantismo é, em última análise, o antídoto contra o autoritarismo, seja o de toga, de farda ou de tribuna.
Ao aplicar o direito com base em princípios e não em paixões, o Judiciário brasileiro deu um passo importante na consolidação de uma cultura constitucional. Como ensina Ferrajoli, a democracia não se defende com armas, mas com garantias.
*Antonio Sérgio Neves de Azevedo é engenheiro, mestre e doutorando em Direito, em Curitiba, no Paraná.
Este texto não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.
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Publicação de: Viomundo
