Núcleos do Cebes debatem o Agora Tem Especialistas: Amanhã vai ser outro dia para o SUS?
Por Conceição Lemes
Na última terça-feira, 14 de agosto, o Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (Cebes) realizou um debate entre os núcleos Alagoas Agreste, Goiás e Mato Grosso do Sul.
Tema, o programa Agora Tem Especialistas, lançado no final de maio pelo Ministério da Saúde: Amanhã será outro dia para o SUS?
O encontro foi online, mediado por Cristiane Lemos, professora da Universidade Federal de Goiás (UFG) e integrante da coordenação do núcleo Cebes GO.
Participaram:
Flávio Domingos – Economista, professor da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e militante do Fórum SUS–AL, representando o Cebes Alagoas Agreste
Neia Vieira – Enfermeira e presidente do Sindsaúde Goiás
Sílvia Uehara – Médica, professora da Universidade Federal de Mato do Sul (UFMS), representando o Cebes MS
O encontro foi riquíssimo, como mostra Cristiane Lemos no artigo que segue abaixo sobre o encontro.
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Nele, a cebiana de Goiás destaca as falas dos convidados e as conclusões dos participantes.
Por Cristiane Lemos*
O Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) é um espaço suprapartidário e democrático de produção e difusão de conhecimentos, de articulação e mobilização da sociedade.
Trata-se de uma instituição histórica na conquista da saúde como direito universal de cidadania e dever do Estado, protagonista na criação e na defesa do Sistema Único de Saúde (SUS). Como define seu próprio site, é “uma instituição que pensa criticamente”.
Além da diretoria nacional, o Cebes conta com núcleos em diversos estados brasileiros.
Segundo o site da entidade, “um núcleo do Cebes é um coletivo de pessoas que se identificam com os princípios da Reforma Sanitária e da entidade, optando por aderir a eles e militar pela democratização da saúde. Cada núcleo é, ainda, um espaço plural de encontro entre o conhecimento científico e a análise política, que permite transformar o saber em propostas estratégicas de intervenção na realidade”.
Uma iniciativa interessante deste evento foi a articulação entre três núcleos do Cebes de estados diferentes — Alagoas Agreste, Goiás e Mato Grosso do Sul — que se uniram para debater o novo programa do governo federal. O objetivo foi refletir sobre o programa Agora Tem Especialistas (ATE) a partir de diferentes perspectivas e expertises.
O encontro foi mediado por mim, do núcleo Cebes Goiás, e contou com a participação de Flávio Domingos – economista, professor da UFAL e militante do Fórum SUS–AL (representando o Cebes Alagoas Agreste); Neia Vieira – enfermeira e presidente do Sindsaúde Goiás; e Sílvia Uehara – médica, professora da UFMS, representando o Cebes MS.
Inspirados no lema da 17ª Conferência Nacional de Saúde — “Garantir direitos, defender o SUS, a vida e a democracia – Amanhã vai ser outro dia!” —, os núcleos promoveram o debate com o intuito de analisar criticamente os rumos do programa “Agora tem mais especialistas”, proposto recentemente pelo governo federal.
A atividade partiu de uma concepção crítica, coletiva e emancipatória de saúde, compreendendo o SUS como resultado de lutas sociais e não como mero instrumento técnico de gestão.
Assim, o encontro teve como objetivo tensionar uma reflexão sobre o modelo proposto, discutindo se ele representa avanço ou retrocesso na consolidação do SUS, especialmente à luz das deliberações democráticas das últimas Conferências Nacionais de Saúde — das quais os núcleos do Cebes tiveram participação ativa.
O debate foi riquíssimo. Na abertura da discussão, destaquei a surpresa dos movimentos em defesa do SUS diante da rapidez com que a proposta surgiu após a entrada do ministro Padilha, rompendo com a tradição de diálogo com o controle social — já que as primeiras reuniões ocorreram com empresários da saúde.
Destaquei a frase do ministro — “O paciente quer atendimento na rede, não importa onde” — dita em defesa da parceria entre o sistema público e o privado para resolver a demanda por especialidades.
Essa fala gerou preocupação, especialmente por se tratar de um governo progressista, eleito com forte apoio dos movimentos sociais.
Essa aproximação com instituições privadas e planos de saúde populares acendeu o alerta entre os que defendem que a única via possível para uma saúde digna no país é a consolidação de um sistema público, universal e estatal, em que a saúde é um direito, e não uma mercadoria.
Houve consenso entre os debatedores quanto à necessidade de ampliar o acesso da população às especialidades médicas, mas o grande questionamento recaiu sobre o modus operandi do Ministério da Saúde.
A ampliação do atendimento pode ser feita a qualquer custo? Os princípios que orientaram a Reforma Sanitária e a criação do SUS tornaram-se obsoletos?
A primeira convidada a se pronunciar foi Sílvia Uehara, que apresentou dados relevantes sobre os gargalos na Atenção Básica, evidenciando como problemas aparentemente simples comprometem fortemente a Atenção Secundária e Terciária.
Trouxe também informações sobre o mau uso de recursos públicos, equipamentos e força de trabalho, que impressionaram pela gravidade. Ela ainda abordou a baixa adesão de hospitais e profissionais que não cumprem os critérios exigidos pelo Programa — um aspecto compreendido apenas por quem vivencia o cotidiano da gestão pública.
Em seguida, Neia Vieira, do Sindsaúde Goiás, abordou a expansão da privatização e a dependência estrutural do setor privado em detrimento da rede pública.
Criticou a pouca participação do controle social nas discussões do Programa e os conflitos com os princípios do SUS, alertando para o risco de que o ATE aprofunde desigualdades regionais, privilegie os grandes centros urbanos e ignore o processo de regionalização e a integralidade da atenção.
Ressaltou, ainda, a necessidade de revisão das legislações que sustentam a privatização, como as Leis das Organizações Sociais (OSs), e das normas que justificam o desfinanciamento do SUS sob a lógica da austeridade fiscal.
Por fim, Flávio Domingos, professor da UFAL e representante do núcleo Alagoas Agreste, fez um resgate histórico do movimento da Reforma Sanitária da década de 1970 e reforçou a importância da defesa de um SUS público, gratuito e estatal.
Foi enfático ao afirmar que o ATE transfere recursos públicos ao setor privado, reproduzindo a lógica neoliberal das OSS. Flávio, economista, tem defendido essa tese com base em estudos que comprovam a alta lucratividade dessas organizações.
O debate também destacou a terceirização, a precarização e a superexploração do trabalho em saúde, apontando que a ideia de “desprivatização” , defendida por alguns sanitaristas neste contexto parece incoerente diante das medidas em curso.
O Prouni foi citado como exemplo comparativo — um programa que ampliou o acesso ao ensino superior via instituições privadas, enriquecendo empresários do setor, enquanto o ensino público seguiu subfinanciado.
A discussão deixou claro que políticas elaboradas de forma apressada, sem diálogo com o controle social nem escuta das trabalhadoras, dos trabalhadores e das gestoras do SUS, tendem a fracassar.
Os problemas de acesso às especialidades devem ser priorizados, mas com uma agenda estruturante, de curto, médio e longo prazo, ancorada nos princípios do SUS: universalidade, integralidade, regionalização, hierarquização e controle social. Considerou-se, ainda, a importância de fortalecer a Atenção Básica, essencial para reduzir as demandas da Atenção Secundária e Terciária.
Concluiu-se que, para que “amanhã seja outro dia para o SUS”, é fundamental barrar todas as formas de privatização — clássicas ou disfarçadas — sustentadas nas últimas décadas pela lógica de mercado.
É preciso, mais do que nunca, dar continuidade ao diálogo entre núcleos, fortalecer a rede e criar novos espaços de articulação em todo o país. Que estejamos atentos e fortes na construção de um SUS e de uma sociedade mais digna.
*Cristiane Lemos, mediadora do debate Agora Tem Especialistas — amanhã será outro dia para o SUS?, é professora da Universidade Federal de Goiás (UFG) e integrante da diretoria do Cebes GO.
Publicação de: Viomundo