Unidades de Acolhimento, garantia de cuidado e de direitos de pessoas que usam drogas

Por Alexandro Moreno Sandri, Leonardo Pinho, Thais Dainez Souza e William Felipe Lucena*

O paradigma que inaugurou um novo modelo de cuidado para as pessoas com agravos decorrentes do uso de álcool e outras drogas ainda se encontra em processo de implantação no país.

A expansão da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), que integra o Sistema Único de Saúde (SUS), foi subsidiada pela Lei da Reforma Psiquiátrica (Lei 10.2016/2001) para a efetiva superação das práticas de segregação, bem como para delinear um novo direcionamento do modelo de cuidado, que priorize os vínculos familiares e comunitários.

Todavia, a RAPS e os serviços voltados para o cuidado das pessoas que fazem uso de álcool e outras drogas tiveram, sistematicamente nos últimos dois governos, um processo de desinvestimento e despriorização nas políticas públicas.

Embora a Reforma Psiquiátrica tenha avançado, foi apenas em 2011, através da promulgação da Portaria 3088/11, que a ampliação de ofertas e estratégias para o cuidado de pessoas que fazem uso problemático de drogas foi incorporada na agenda das políticas públicas do país.

Desde então, a política de drogas assentada nos princípios da atenção psicossocial vem sofrendo recorrentes ataques, em uma recorrente disputa entre o modelo asilar, focado em internações prolongadas, e o cuidado em liberdade.

Assim, se os hospitais psiquiátricos foram progressivamente despojados de seu caráter supostamente terapêutico e de sua centralidade no tratamento, a partir do marco jurídico-legal da Lei 10.216 e da implantação das redes de serviços comunitários, as Comunidades Terapêuticas (CTs) – instituições privadas de caráter majoritariamente religioso – vêm sendo alvo de interesse mercantil de grupos econômicos e religiosos, e se apresentando como solução à complexidade que envolve o uso abusivo de álcool e outras drogas.

Frente à precariedade dos mecanismos de fiscalização das CTs e à escassa produção de informações sobre a categoria, o relatório “Inspeção Nacional de Comunidades Terapêuticas”, realizado pelo Ministério Público Federal e Conselho Federal de Psicologia, em 2017, evidenciou que, entre as instituições pesquisadas nas cinco regiões do país, havia sistemáticas violações de direitos humanos, entre as quais:

— privação de liberdade

— retenção de documentos e obstacularização do contato com familiares dos atendidos

— internações involuntárias e compulsórias sem o cumprimento dos requisitos técnicos e legais

— violação à liberdade religiosa

— uso de força e violência para o cumprimento de atividades institucionais

— internação de adolescentes junto com adultos

— equipes de trabalho compostas por voluntários sem amparo das leis trabalhistas

— trabalho forçado para manutenção da infraestrutura local

— internações sem prazo determinado, dentre outros abusos identificados

Tais constatações contrariam fortemente todo o regramento legal que orienta a Política Nacional de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas, orientada pelos princípios da Reforma Psiquiátrica Brasileira, firmada para assegurar a proteção e os direitos das pessoas com agravos de saúde mental.

Embora a Lei 10.216 ordene a supressão das práticas até então vigentes, há de se estar atento aos novos modos de confinamento, tortura e violência que seguem se perpetuando em nossa sociedade, sob a justificativa da proteção e do cuidado aos usuários de drogas.

No campo da atenção psicossocial para crianças e adolescentes, registrou-se, nos últimos anos, um desmantelamento planejado das pautas progressistas anteriormente propostas, com o objetivo de retroceder a uma lógica moralista, excludente e medicalizante.

Nesta perspectiva, observa-se o recrudescimento de circuitos de institucionalização da infância e juventude, nos quais a ausência de políticas públicas de cuidado e proteção e de práticas e ações integradas entre os agentes que atuam no campo resultam em reiteradas violações de direitos a esta parcela da população.

Na interface entre os campos da Saúde e Assistência Social, percebe-se que, historicamente, os SAICAs (Serviços de Acolhimento Institucional para Crianças e Adolescentes) têm apresentado dificuldades em legitimar a adolescência com histórico de uso de drogas como uma adolescência passível de proteção, desconsiderando a evidência de que, em geral, tal condição está associada à exposição a situações de risco, violência, negligência e ruptura dos vínculos familiares e sociais, necessitando, dessa forma, de acolhimento protetivo.

Diante da dificuldade de articular respostas protetivas, as instâncias de proteção social, associadas ao aparato judicial, têm produzido percursos que buscam sujeitar crianças e adolescentes a formas rígidas de controle, redução de seu poder contratual e não reconhecimento de sua singularidade.

No limite, tais respostas têm reforçado os circuitos de exclusão, através da medicalização e criminalização de questões produzidas socialmente.

Uma alternativa efetiva a esse modelo, alinhada à defesa dos Direitos Humanos, já existe e está prevista nas Portarias n°3088/11 e nº 121/12, só que ainda não foi investida nacionalmente, de forma a atender de fato à demanda de cuidados contínuos dessa população.

Essa alternativa seriam as Unidade de Acolhimento, com um trabalho articulado e intersetorial com os equipamentos e estratégias do SUS e do SUAS.

Diferentemente das CTs, onde mesmo as internações voluntárias podem resultar em medidas involuntárias após a inserção, as Unidades de Acolhimento (UAs) são serviços que acolhem voluntariamente pessoas em uso grave de crack, álcool ou outras drogas e precisam de proteção e acompanhamento cotidianos devido à sua alta vulnerabilidade e/ou risco, no território de origem.

As UAs também estão inseridas em um território de forma a facilitar as trocas com a comunidade, a família e com os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), equipamentos responsáveis por conduzir, junto ao usuário, seu projeto de vida, objetivando o acesso a direitos, mediação dos conflitos familiares, bem como a redução dos danos advindos do consumo de drogas.

No último levantamento publicizado pelo Ministério da Saúde, em 2022, havia 70 Unidades de Acolhimento habilitadas no país, sendo 45 para o público adulto (das quais, 14 no estado de São Paulo) e 25, para o público infanto-juvenil.

Em comparação com os CAPS, que ultrapassaram 2.795 unidades em todo o território nacional, a expansão das UAs ainda é bastante modesta, tendo sido gravemente afetada pela reorientação da Política Nacional Sobre Drogas (PNAD), promovida a partir de 2018.

A não ampliação das UAs e sua invisibilidade social e nas políticas públicas fizeram parte de uma estratégia articulada que previa direcionamentos para ofertas voltadas exclusivamente à promoção da abstinência do uso de drogas, desconsiderando a efetividade das estratégias de redução de danos, e ampliando de forma significativa o financiamento de entidades privadas, como as CTs, através de convênios firmados junto ao Ministério da Justiça e, depois, centralizado exclusivamente na Secretaria Nacional de Prevenção às Drogas (Senapred), à qual respondia ao Ministério da Cidadania.

Na experiência da cidade de Jundiaí/SP, as UAs foram implantadas em novembro de 2020, no contexto de implementação da RAPS do município, sendo uma voltada à população adulta (UAA) e outra ao público infanto-juvenil (UAIJ).

Cada um dos equipamentos tem capacidade para receber até dez pessoas, que podem permanecer por até seis meses, configurando-se como um serviço residencial transitório.

Dentre os princípios norteadores das UAs, podemos citar o foco na autonomia do sujeito para decidir sobre como gostaria de conduzir o seu tratamento, a condição inegociável de ter liberdade para ir e vir, a ampliação das estratégias de cuidado a partir do acesso a uma moradia, e a convivência como potencializadora de novas dinâmicas relacionais e novos lugares sociais.

Para que isso aconteça, além do trabalho conjunto envolvendo os CAPS, coloca-se como condição a articulação com os demais pontos estratégicos da rede, que compreendem o âmbito do trabalho e geração de renda, moradia, assistência social, educação, lazer e cultura, a fim de construir caminhos que possam ter continuidade após o término do período de permanência na UA.

Os dados levantados até o final de 2022 apontam que, dentre os usuários que puderam se beneficiar das UAs, a maioria apresentou diminuição do padrão de consumo de crack, álcool ou outras drogas.

Além disso, observou-se diminuição dos episódios de crise ou agravamento do quadro, com menor necessidade de acessar os leitos de retaguarda dos CAPS ou do hospital geral.

Outro dado bastante relevante é que, a partir da inserção na UA e intervenções terapêuticas no contexto do morar, usuários com maior dificuldade de adesão e continuidade no tratamento puderam ter maior regularidade e acesso aos cuidados em saúde ofertados pelos CAPS, ou por outros pontos da rede, evitando o abandono, ou interrupção do tratamento.

Por meio da visibilidade da proposta das UAs e de sua ampliação em todo o território nacional através de uma estratégia de financiamento do SUS e do SUAS, evidencia-se a necessidade de ter linhas de financiamento mais robustas para esse equipamento, uma vez que o direcionamento de recursos públicos a locais com características asilares, que apresentam sistemáticas denúncias de violação de direitos humanos, fere o preconizado na lei da Reforma Psiquiátrica Brasileira e fragiliza o processo de implementação da Rede de Atenção Psicossocial.

Se os serviços extra-hospitalares para pessoas que fazem uso de crack, álcool e outras drogas ainda se mostram insuficientes diante da demanda de cuidado da população, as UAs vêm demonstrar que, através do contexto do morar em interface com a cidade, e com os demais dispositivos de cuidado em liberdade, é possível diversificar e ampliar o olhar diante da complexidade que envolve o cuidado daqueles que fazem uso problemático de álcool e outras drogas.

Esse é o desafio em nosso país, construir uma Rede Nacional de UAs com financiamento do SUS e do SUAS, integrando recursos, mas também suas estratégias e equipamentos de promoção de cidadania e direitos humanos nos territórios.

*Alexandro Moreno Sandri, Thais Dainez Souza  e William Felipe Lucena são, respectivamente, coordenador de Saúde Mental, coordenadora de Acolhimento Adulto e de Acolhimento Infanto-Juvenil de Jundiaí (SP).

*Leonardo Pinho é diretor de Promoção dos Direitos da População em Situação de Rua, do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania e da Mesa Diretora do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH)

BIBLIOGRAFIA

Almeida, A. L. M & Cunha, M. B. (2021). Unidade de Acolhimento Adulto: um olhar sobre o serviço residencial transitório para usuários de álcool e outras drogas. Saúde Em Debate, 45(128), 105–117. https://doi.org/10.1590/0103-1104202112808.

Brasil. Lei nº 10.216, de 06 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Diário Oficial da União. 9 Abr 2001.

Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 121, de 25 de janeiro de 2012. Institui a Unidade de Acolhimento para pessoas com necessidades decorrentes do uso de Crack, Álcool e Outras Drogas (Unidade de Acolhimento), no componente de atenção residencial de caráter transitório da Rede de Atenção Psicossocial. Diário Oficial da União. 27 Jan 2012.

Conselho Federal de Psicologia. Relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas – 2017/Conselho Federal de Psicologia; Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura; Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão/Ministério Público Federal. Brasília, DF: CFP; 2018.

PINHO, Leonardo. Comunidades terapêuticas e seus artifícios. Revista CULT, 2023: https://revistacult.uol.com.br/home/comunidades-terapeuticas-e-seus-artificios/

Publicação de: Viomundo

Lunes Senes

Colaborador Convidado

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