The New York Times: Brasil teve sucesso onde EUA falharam
Um país soube o que fazer quando seu presidente tentou roubar uma eleição
Por Steven Levitsky e Filipe Campante*, no The New York Times
Na quinta-feira, o Supremo Tribunal Federal do Brasil fez o que o Senado dos EUA e os tribunais federais tragicamente falharam em fazer: levar à justiça um ex-presidente que atacou a democracia.
Em uma decisão histórica, o STF votou por 4 a 1 para condenar o ex-presidente Jair Bolsonaro por conspiração contra a democracia e tentativa de golpe após sua derrota eleitoral de 2022. Ele foi sentenciado a 27 anos de prisão. Salvo em caso de um recurso bem-sucedido, o que é improvável, Bolsonaro se tornará o primeiro líder golpista da história do Brasil a cumprir pena na prisão.
Esses acontecimentos criam um contraste gritante com os Estados Unidos, onde Donald Trump, que também tentou reverter uma eleição, não foi enviado à prisão, mas sim de volta à Casa Branca. Trump, talvez reconhecendo a força desse contraste, chamou a acusação contra Bolsonaro de “caça às bruxas” e descreveu sua condenação como “uma coisa terrível. Muito terrível”.
Mas Trump não apenas criticou o esforço do Brasil para defender sua democracia: ele também puniu o país. Citando o processo contra Bolsonaro antes mesmo de ele ser decidido, o governo Trump impôs uma tarifa de 50% sobre a maioria das exportações brasileiras e sancionou vários funcionários do governo e ministros do STF. O ministro Alexandre de Moraes, que presidiu o caso, foi alvo de sanções especialmente severas sob a Lei Magnitsky Global.
Esse foi um passo sem precedentes. A administração mirou um ministro da Suprema Corte de um país democrático com sanções que, até então, haviam sido reservadas a notórios violadores de direitos humanos, como Abdulaziz al-Hawsawi, implicado no assassinato em 2018 do colaborador do Washington Post Jamal Khashoggi, e Chen Quanguo, arquiteto da perseguição da minoria uigur pelo governo chinês.
Após o veredito contra Bolsonaro, o secretário de Estado Marco Rubio reforçou a política de Trump (e sua analogia), declarando que os EUA “responderiam adequadamente a essa caça às bruxas”.
Em resumo, o governo Trump tem usado tarifas e sanções para tentar intimidar os brasileiros a subverter seu sistema legal — e sua democracia junto com ele. Na prática, os EUA estão punindo os brasileiros por fazerem algo que os americanos deveriam ter feito, mas falharam: responsabilizar um ex-presidente por tentar anular uma eleição.
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As democracias contemporâneas enfrentam desafios crescentes vindos de políticos e movimentos iliberais que vencem eleições e depois subvertem a ordem constitucional. Líderes eleitos como Hugo Chávez, na Venezuela, Recep Tayyip Erdogan, na Turquia, Viktor Orbán, na Hungria, Nayib Bukele, em El Salvador, e Kais Saied, na Tunísia, politizaram órgãos do Estado e os usaram para enfraquecer adversários e se perpetuar no poder.
Uma lição dos anos 1920 e 1930 — a última vez em que democracias ocidentais enfrentaram ameaças semelhantes vindas de dentro — é que forças iliberais nem sempre jogam limpo em eleições. Elas estão mais dispostas do que liberais a usar demagogia, desinformação e violência para conquistar e manter poder. Como os liberais europeus aprenderam naquele período, a passividade diante dessas ameaças pode sair caro. Democracias não se defendem sozinhas. Elas precisam ser defendidas. Mesmo os freios constitucionais mais bem desenhados não passam de pedaços de papel se líderes não os fizerem valer.
Na última década, tanto os Estados Unidos quanto o Brasil enfrentaram ameaças iliberais. Os paralelos são impressionantes. Ambos elegeram presidentes com instintos autoritários que, após perderem a reeleição, atacaram instituições democráticas.
Trump violou a regra cardinal da democracia ao se recusar a aceitar a derrota na eleição de 2020 e tentar reverter os resultados em uma campanha que culminou na insurreição de 6 de janeiro de 2021.
Bolsonaro, político de extrema direita eleito em 2018, copiou amplamente o manual de Trump. Atrás nas pesquisas às vésperas da eleição de 2022, Bolsonaro começou a questionar a integridade do processo eleitoral. Repetidamente, atacou as autoridades eleitorais e o sistema eletrônico de votação — que tentou eliminar. Disse que a única forma de perder seria por fraude, insinuando que uma vitória da oposição seria ilegítima.
Após perder por pouco para Luiz Inácio Lula da Silva, Bolsonaro, como era previsível, recusou-se a reconhecer a derrota, e em 8 de janeiro de 2023, milhares de seus apoiadores invadiram o Congresso, o STF e o Palácio do Planalto. Embora o levante tenha espelhado o 6 de janeiro americano, o ataque de Bolsonaro à democracia foi ainda mais longe. Amparado na tradição brasileira de envolvimento militar na política, o ex-capitão do Exército cultivou aliança com setores das Forças Armadas. Sem base partidária ou legislativa forte, dependia dos militares para se manter.
Extensas provas colhidas pela Polícia Federal mostraram que Bolsonaro e aliados militares conspiraram para anular a eleição e impedir a posse de Lula. A conspiração teria incluído planos de assassinar Lula, o vice-presidente eleito Geraldo Alckmin e o ministro Moraes. Felizmente, o alto comando do Exército, sob pressão do governo Biden, recusou-se a apoiar a tentativa de golpe.
Em ambos os países, presidentes eleitos atacaram instituições democráticas para permanecer no poder após perderem a reeleição. Ambas as tentativas fracassaram — inicialmente.
Mas aí as histórias divergem. Os americanos fizeram surpreendentemente pouco para proteger sua democracia do líder que a atacou. Os prestigiados freios constitucionais do país falharam em responsabilizar Trump por tentar anular a eleição de 2020. Embora a Câmara tenha votado por seu impeachment em janeiro de 2021, o Senado o absolveu, evitando que fosse banido de futuras candidaturas. O Departamento de Justiça demorou a processá-lo pelo papel na insurreição, esperando quase dois anos para nomear um procurador especial. Trump foi indiciado em agosto de 2023, mas a Suprema Corte, sem senso de urgência, permitiu que o caso se arrastasse. Em julho de 2024, a corte decidiu que presidentes gozam de ampla imunidade, inviabilizando a acusação. O Partido Republicano, mesmo ciente de seu comportamento autoritário, o indicou novamente em 2024. Ao vencer, os processos federais foram abandonados.
Essas falhas institucionais saíram caro. O segundo governo Trump tem sido abertamente autoritário, usando órgãos do Estado para punir críticos, ameaçar rivais e intimidar empresas, mídia, universidades, escritórios de advocacia e grupos da sociedade civil. Tem contornado rotineiramente a lei e, por vezes, desafiado a Constituição. Menos de nove meses após seu início, os EUA já cruzaram a linha em direção a um autoritarismo competitivo.
O Brasil seguiu outro caminho. Marcados pela experiência da ditadura militar, líderes públicos perceberam desde o início da presidência de Bolsonaro a ameaça à democracia. Muitos juízes e líderes do Congresso viram a necessidade de defender energicamente as instituições. Como disse Moraes a um de nós: “Percebemos que poderíamos ser Churchill ou Chamberlain. Eu não queria ser Chamberlain.”
Vendo-se como barreira ao autoritarismo, os ministros do STF reagiram de forma contundente. Quando surgiu evidência de uso massivo de desinformação na campanha de 2018, a corte abriu o chamado Inquérito das Fake News, atuando de forma incisiva contra o que considerava desinformação perigosa. Moraes, que assumiu a presidência do Tribunal Superior Eleitoral em 2022, liderou a investigação. Sob sua direção, a corte suspendeu contas de ativistas em redes sociais, ordenou remoção de conteúdos considerados antidemocráticos, fez buscas em empresários suspeitos de apoiar um golpe e até prendeu um deputado bolsonarista que defendia ditadura e fechamento do tribunal (solto após nove meses). Essas medidas foram polêmicas no Brasil e destoam da tradição libertária americana, mas se alinham a práticas de democracias europeias, como a Alemanha, no combate a discursos antidemocráticos.
No dia da eleição, o TSE tomou medidas para garantir a integridade do pleito, incluindo a ordem de desmontar barreiras ilegais criadas por policiais pró-Bolsonaro e anunciar os resultados imediatamente após a apuração, sem tempo para contestação. Crucialmente, líderes políticos bolsonaristas — incluindo governadores e chefes legislativos — reconheceram de imediato a vitória de Lula.
Após o 8 de janeiro deixar clara a ameaça representada por Bolsonaro, a Justiça brasileira agiu de forma agressiva para responsabilizá-lo e evitar seu retorno ao poder. Em junho de 2023, o TSE tornou Bolsonaro inelegível por oito anos, impedindo-o de concorrer em 2026. Em fevereiro de 2025, ele foi formalmente acusado de conspiração golpista, abrindo caminho para a condenação anunciada nesta quinta-feira.
Embora apoiadores tenham ido às ruas contra o processo, a maioria dos políticos conservadores aceitou o desfecho. Muitos criticaram o que chamam de ativismo judicial e defenderam propostas de impeachment de ministros ou anistia a Bolsonaro e aos presos do 8 de janeiro, mas o Congresso dominado pela direita não levou adiante essas medidas. Na prática, a maioria parece satisfeita em ver Bolsonaro fora de cena em 2026, podendo apoiar um candidato conservador mais convencional — provavelmente um governador de direita — que, ainda que conservador, respeitaria as regras democráticas.
Ao contrário dos EUA, portanto, as instituições brasileiras agiram de forma vigorosa e eficaz para responsabilizar um ex-presidente que tentou derrubar uma eleição. É justamente essa eficácia que colocou o país na mira do governo Trump. Sem opções no Brasil, Bolsonaro recorreu a Trump. Seu filho Eduardo fez lobby na Casa Branca por meses, pedindo intervenção americana em favor do pai. Trump, que disse que o caso de Bolsonaro parecia “muito com o que tentaram fazer comigo”, se deixou convencer.
Ao tentar intimidar autoridades brasileiras para livrar Bolsonaro da justiça, o governo Trump abandona quase quatro décadas de política americana de defesa da democracia na América Latina. Após o fim da Guerra Fria, governos dos EUA foram relativamente consistentes nesse aspecto. A pressão da administração Biden contra o golpe de Bolsonaro foi um exemplo claro. Agora, numa guinada que lembra as intervenções antidemocráticas da Guerra Fria, os EUA tentam subverter uma das democracias mais importantes da região.
Com todas as suas falhas, a democracia brasileira está hoje mais saudável do que a americana. Conscientes do passado autoritário do país, juízes e líderes políticos não tomaram a democracia como garantida. Seus pares nos EUA, em contraste, falharam. Em vez de minar o esforço brasileiro, os americanos deveriam aprender com ele.
*Filipe Campante é professor de economia na Johns Hopkins.
*Steven Levitsky é professor de governo em Harvard e autor, com Daniel Ziblatt, de “Tyranny of the Minority” e “How Democracies Die”.
*Artigo de opinião publicado em 12 de setembro de 2025 no jornal The New York Times, dos Estados Unidos.
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