Tânia Mandarino: Todo mundo odeia a Telma ou só estamos desviando o foco?

Por Tânia Mandarino*

Dando sequência a alguns desdobramentos da sessão de posse havida na Câmara de Curitiba na última segunda (4/7), hoje eu quero falar sobre Telma, a mulher negra que ousou se manifestar contra o racismo durante a sessão.

Eu não queria falar sobre a Telma, “pessoa”, a Telma, “fulana”, a Telma “filiado ao PSOL”,  porque há muito tempo aprendi que fulanizar a luta não nos leva a lugar algum que não seja o rebaixado lugar da futrica, do mexerico e do disse-que-me-disse.

Vai ser difícil, entretanto, falar do que a Telma representa, do que a Telma desperta – que é do que eu quero falar, sem falar um pouco do quase nada que conheço sobre a pessoa da Telma.

Tenho visto bravas mulheres nas fileiras progressistas, das mais diversas forças políticas, filiadas ou não a partidos de esquerda, de brancas de olhos azuis a pretas retintas, defendendo a ideia de que a atitude de Telma naquela sessão de posse foi “deplorável”.

Entre os pífios “argumentos” para censurar a conduta de Telma, estão os de que foi covardia bater no PT e constranger uma menina de 22 anos e que ela só gosta de palco e holofotes.

Encontrei também nas redes os adjetivos “oportunista”, “que sempre faz um zum-zum-zum” e até a conclusão de que o que aconteceu foi “Telma sendo Telma”.

E nesse ponto eu preciso fazer uma confissão pública: até pouco tempo atrás, eu estava na fileira das mulheres que tinham horror à Telma.

Já a tinha visto interromper falas em atos públicos para corrigir palavras erradas de palestrantes em relação a gênero ou raça.

Me incomodava aquilo que eu percebia como agressividade no discurso, sempre nos dizendo que só as pretas falam pelas pretas e se impondo com veemência, dispensando a aceitação de qualquer pessoa branca. Que mulher inconveniente!

Era como se Telma estivesse sempre desafiando alguma ordem que me causava desconforto e eu, intimamente, desejasse que ela tivesse uma educação pequeno burguesa, daquelas limpinhas, bonitinhas, sabe?

Aquela hipocrisia que a ordem posta chama de “civilidade”; a ordem dos privilégios que queremos manter, na prática, em contrariedade ao nosso discurso libertário.

Contradições.

Contrariando o meu discurso libertário, eu evitava Telma. Era como se, em qualquer contato e interação que viesse a manter com ela, eu pudesse me colocar em alguma situação que fosse me trazer a possibilidade de passar raiva ou de experimentar algum prejuízo emocional.

Mas a vida, ao mesmo tempo em que desalinha nossa postura, vai alinhando as nossas contradições.

Hoje posso enxergar, um grande aprendizado meu nos últimos tempos tem sido sobre o respeito ao direito de a Telma ser quem é.

Isso significa: uma mulher negra representar toda a questão racial em profundidade, insculpida em si.

Mulheres brancas de todos os matizes têm verdadeiro horror a Telma. Algumas negras também têm. Como ela diz: “as negras e os negros de casa”. Ou seja, que vivem na casa grande. 

É de nos perguntarmos o por que desse horror.

Telma Mello não é negra de casa. É negra aquilombada, do mato e da mata. Negra em ação e resistência, que desafia a ordem posta, a ordem racial de manutenção dos privilégios de mulheres brancas e de negras e negros de casa. Isso incomoda, e muito.

Telma não desrespeitou nossa companheira Ana Júlia em nenhum momento.

A propósito, Ana Julia não foi a vítima ali naquela sessão de posse.

Parem de dizer que “Telma constrangeu uma jovem de 22 anos”, porque penso que nem Ana Júlia deve se sentir confortável assim, colocada num altar, como uma figura frágil e indefesa que ela não é. Parem de focar na fragilidade da aparência!

Juventude é frescor, rebeldia, rebelião. E Ana Júlia se afirma representante dos estudantes que, como já consagrou Violeta Parra, são o “Jardín de nuestra alegría” e “aves que no se asustan de animal ni policía”.

Portanto, nada teria o condão de constranger a juventude e a força de uma estudante ali, naquela sessão de posse.

A não ser a estranha e inoportuna comemoração festiva e emocionada por estar assumindo no lugar de um companheiro negro, cassado por racismo pela maior parte daqueles que estavam na mesa.

Esse é o ponto. Isso é o que constrange e não o contraponto feito por Telma Mello, no alto de sua legitimidade e lugar de fala.

A fala de protesto de uma mulher negra não constrange. O que constrange é a tentativa de silenciá-la com palmas e gritos de guerra.

Estaria Telma ocupando o lugar do bode a ser mantido na sala para desviar o foco das questões principais, envolvendo erros, acertos e equívocos nossos desde 5 de fevereiro de 2022, quando um vereador preto e petista da periferia foi acusado de invadir a igreja dos pretos e todos os subsequentes desdobramentos?

Telma não pode ser a desculpa para a interdição da discussão sobre a situação posta, objetivamente uma realidade: a posse festiva da primeira suplência na vaga cassada ao vereador Renato (que agora a reassume por liminar judicial deferida na manhã seguinte à posse).

Telma não deve ser a desculpa para tamanho temor reverencial em relação à Cúria.

Mais que isso: Telma não pode ser a desculpa para a interdição da discussão sobre as razões pelas quais o jurídico está no posto de comando na questão da cassação racista do mandato de Renato, ao invés da política.

Quanto a nós, mulheres de esquerda que já torcemos o nariz para Telma, convido-as à reflexão e à inflexão imediata.

É tempo de descontruirmos o racismo arraigado nas profundezas de nosso inconsciente quando nossa consciência de declara “antirracista”.

Outro dia ofereci a Telma, num grupo, a música “Primavera nos dentes” do Secos & Molhados (ouça ao final). Ela estava se sentindo perseguida e apoiada por poucas pessoas diante do número de pessoas que a acusam.

Eu lhe disse que ela “tem consciência para ter coragem; que tem a força de saber que existe e que, no centro da sua própria engrenagem, inventa a contramola que resiste”.

Após ouvir a música, Telma respondeu no grupo que não era pela primavera, “É mesmo porque o racismo destruiu minha família. E como diz a escritora: quem fica tem obrigação de lutar”.

Fiquei imaginando a jovem Telma, que tipo de “constrangimentos” terá passado.

Andréia de Lima, minha pré-candidata a deputada estadual (PT), é mulher preta e liderança comunitária da favela do Parolin. Esses dias, ouvi dela algumas reflexões sobre a romantização da branquitude em contraponto com a juventude das mulheres pretas na favela.

Será que estamos fabricando mulheres na política, sempre do mesmo modelo e no mesmo padrão?

Andréia ponderava que nossas jovens pretas e periféricas, desde os 11 anos idade têm que estar preparadas para substituir donas de casa com suas demandas. Mal têm tempo para ser jovens, quem dirá serem paparicadas e protegidas por serem tão jovens, diante de graves constrangimentos que sofrem diariamente.

Andréia nos convidava a transformar a política, potencializando essas mulheres já existentes, resistentes e tão cansadas de ser adultas antes mesmo de serem crianças.

Andréia nos dava conta de que, “mesmo com luto, a vida na favela não permite parar de lutar um segundo” (recentemente perdeu uma irmã e, diariamente, perde vários amigos, vizinhas e vizinhos).

E completando: “Vejo tanta garota aqui com potencial espetacular, trabalhando na reciclagem, campana de traficante, algumas mesmo na prostituição, só pra garantir o leite ou o gás pra mãe filhos e irmãos sem ter quem as defenda de tamanhos constrangimentos”.

Somente mulheres brancas podem ser sensíveis e poupadas?

É questão de classe sim! O racismo (assim como o machismo, a misoginia, a LGBTfobia, a xenofobia) é escudo do capitalismo. Ou enfrentamos estes com todas as nossas forças organizativas, populares, democráticas e socializantes, ou não derrubaremos aquele.

É por isso que eu pergunto: todo mundo odeia Telma Mello ou só estamos desviando do foco?

“Telma é vitoriosa mulher de guerrilha, mulher potente, nitroglicerina em pessoa. Só não balança as suas dores. Telma é Telma. Não precisa de adjetivo pra ser quem é.” Andréia de Lima

*Tânia Mandarino é advogada. Integra o Coletivo Advogadas e Advogados pela Democracia (CAAD)

“Primavera nos Dentes” é uma canção do Secos & Molhados, lançada no álbum de estreia do grupo. A letra é uma poesia de João Apolinário, pai de João Ricardo, que a musicou.

Acima, a música na voz de Duda Brack.

Abaixo, a letra.

Primavera nos dentes

Secos & Molhados

Quem tem consciência para ter coragem
Quem tem a força de saber que existe
E no centro da própria engrenagem
Inventa contra a mola que resiste
Quem não vacila mesmo derrotado
Quem já perdido nunca desespera
E envolto em tempestade, decepado
Entre os dentes segura a primavera

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Publicação de: Viomundo

Lunes Senes

Colaborador Convidado

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