Saúde mental e diversidade: pesquisador lança livro sobre a população LGBT no SUS
Nascido em Belo Horizonte, na região de Venda Nova, o mestre em Antropologia e pesquisador Marco Antônio Gatti Júnior acaba de lançar seu primeiro livro: Saúde mental da população LGBT no SUS: a experiência do Centro de Referência em Saúde Mental (Cersam).
Na obra, ele analisa os avanços e os desafios do acolhimento da comunidade LGBT na rede de saúde mental pública da capital mineira.
“Historicamente, algumas populações são mais marginalizadas e sofrem preconceitos. Dessa forma, é nítido que essas pessoas têm sofrimentos diferentes, em termos de saúde. É preciso uma reparação do que foi feito historicamente com essas pessoas”, avalia Marco Gatti.
Além disso, o livro traz um resgate histórico sobre como a população era tratada quando prevaleciam os manicômios no país.
“A saúde mental e a loucura eram usadas como desculpa para controle social. As pessoas que eram consideradas loucas eram presas, sem direito a nenhum tipo de julgamento, principalmente negros, mulheres que distoavam das normas e LGBTs“, explica, o autor.
Confira a entrevista completa:
Brasil de Fato MG: De onde surgiu a ideia de pesquisar e escrever sobre o acolhimento de pessoas LGBT no SUS?
Marco Antônio Gatti Júnior: O livro é fruto da minha pesquisa de dissertação do mestrado e tanto a escrita do projeto quanto a escolha do tema aconteceram durante o governo de Jair Bolsonaro (PL). Aquele era um momento de muitos retrocessos em relação às políticas públicas e de fortalecimento da ideia de “anti-ciência”.
Eu já estudava o movimento, a saúde e o histórico de opressão da população LGBT no Brasil, mas me voltei para o estudo da saúde mental influenciado pelo impacto daquela conjuntura, na qual houve ascensão de projetos vinculados à ideia de “cura gay” que, infelizmente, até hoje estão em debate.
Eu optei por pesquisar dentro de um aparelho público vinculado ao SUS, que na capital mineira são os Centros de Referência da Saúde Mental (Cersam), para identificar como esses espaços tratam e acompanham pessoas LGBT. E observar se a disputa na sociedade, principalmente em momento de ondas conservadoras, influencia na forma como os centros compreendem a sociabilidade e a sexualidade da comunidade.
Eu não quis estudar um Centro de Referência LGBT, por exemplo, porque os profissionais que lá atuam têm formação específica para lidar com esse público. Eu optei por ir ao Cersam, para investigar se a estrutura está preparada para lidar com a demanda de acolhimento à população LGBT.
Quais foram as principais descobertas da pesquisa?
Quando eu cheguei ao Cersam, eu não conhecia profundamente o funcionamento da estrutura. Eu tinha uma ideia anterior de que a saúde mental ali era tratada principalmente por profissionais da psiquiatria e psicologia. E foi muito interessante, porque logo de início eu observei que o Cersam tem um modelo diferente, com uma equipe multidisciplinar.
O fato de não ser um atendimento centrado no médico, voltado especificamente para uma especialidade, foi a primeira descoberta. Ali também tem profissionais, por exemplo, da assistência social, da terapia ocupacional, da enfermagem etc. Todos esses trabalhadores acompanham e acolhem as pessoas que chegam, muitas vezes passando por momentos delicados e de sofrimento mental. O médico tem um papel, mas não é o central.
Outra descoberta foi de que o Cersam é muito direcionado pelos princípios da reforma psiquiátrica. É antimanicomial e contrário à lógica de que as pessoas devem ficar enclausuradas, fora do convívio com a sociedade.
Comparado com outras estruturas e momentos históricos, como você avalia essas características do Cersam?
Já é um avanço. Se gay, lésbica, bissexual, transsexual etc não é um diagnóstico. E essa compreensão faz com que o Cersam trate como parte da sociabilidade das pessoas. Elas podem até ter questões de saúde acarretadas, mas não são inerentes à sexualidade e sim ao preconceito que elas sofrem. As pessoas não sofrem por serem homossexuais. Elas sofrem por outros motivos, inclusive sociais.
No Brasil, o acompanhamento é feito pelos Centros de Atenção Psicossocial (Caps). A existência dos Cersam na capital mineira é interessante, porque ele é um centro estruturado para atuar de forma regionalizada e articulada, socializando o acompanhamento com outros aparelhos do SUS. Isso é muito interessante. A questão da saúde mental não desvinculada das questões sociais e de outras questões de saúde.
Não existe saúde mental se a pessoa não tem segurança alimentar e onde morar, por exemplo. Por isso, a necessidade de atuar de forma vinculada a outros aparelhos públicos.
Além disso, as profissionais – a maioria são mulheres – que trabalham no Cersam também se mostram muito abertas a compreender as especificidades das pessoas LGBT, garantindo os princípios do SUS, em especial os da integralidade e universalidade.
O Cersam hoje é um ponto de resistência desses princípios, que precisam ser defendidos. Enquanto eu fazia minha pesquisa, por exemplo, o Conselho Federal de Medicina (CFM) soltou uma nota técnica questionando o funcionamento do Cersam. A nota dizia que era por falta de investimento, mas é nítido, pela forma como o CFM se posiciona, que, na verdade, é uma divergência do modelo, que não é médico centrado e nem manicomial.
Como o livro está organizado?
No primeiro capítulo, eu faço um resgate do que foram os manicômios no Brasil, mas principalmente em Minas Gerais, com as experiências do Hospital Colônia de Barbacena, que ficou conhecido como holocausto brasileiro, e do Hospital Raul Soares. São locais onde morreram muitas pessoas. É importante conhecermos essa história, para que ela não se repita.
Nesta parte, ainda falo um pouco sobre a importância da reforma psiquiátrica, não só para a população LGBT, mas para o público geral. A saúde mental e a loucura eram usadas como desculpa para controle social. As pessoas que eram consideradas loucas eram presas, sem direito a nenhum tipo de julgamento, principalmente negros, mulheres que distoavam das normas e LGBTs.
No segundo capítulo, eu foco na questão da sexualidade e faço um histórico de como a compreensão sobre isso foi mudando ao longo do tempo. Inicialmente era vinculada à sodomia, a uma questão mais religiosa, depois, passa a ser considerada um diagnóstico, a partir da ideia de “homossexualismo”. Apenas em 17 de maio de 1990, a homossexualidade sai do Cadastro Internacional de Doenças (CID).
Nesse eixo também abordo sobre os debates feitos pela psicologia. Até os dias de hoje existem grupos conservadores, como de “psicólogos cristãos”, que ainda tentam impor a ideia de “terapia da reversão da sexualidade”, como se fosse uma doença. Ao mesmo tempo, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) tem cumprido papel central na negação desse tipo de proposta.
Também falo sobre o ideal de cidadão branco e hétero construído ao longo da história do Brasil, muito utilizado na época da ditadura militar.
O terceiro capítulo se detém mais especificamente na análise das políticas públicas, das legislações que existem a nível nacional, das conferências, a carta de usuários do SUS etc. Também faço uma análise da ideia de “câncer gay”, como ficou conhecida a aids, utilizada para marginalização da saúde LGBT.
Com isso, analiso como essa legislação é compreendida no Cersam e como é a formação dos profissionais que lá atuam.
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Ainda que o Cersam seja um avanço, existem desafios. É nítido que os profissionais não têm formação acadêmica sobre a questão da sexualidade e nem conhecimento sobre o que a legislação diz sobre atenção específica às pessoas LGBT.
Então, no último capítulo, além de identificar alguns limites, eu também busco apontar algumas saídas. Eu também abordo sobre esse tema no livro, com um debate sobre ética. O CFM, mesmo sem fundamento científico, estimulou durante a pandemia da covid-19, por exemplo, a utilização de cloroquina e ivermectina. Eu busco analisar o papel da ciência e a importância das políticas públicas estarem vinculadas ao debate científico.
Qual é a importância do SUS ter atenção especial às demandas da comunidade LGBT?
A criação do SUS junto à promulgação da Constituição Federal de 88 foi fundamental para garantir o direito das pessoas em situação de maior vulnerabilidade social. Historicamente, algumas populações são mais marginalizadas e sofrem preconceitos. Dessa forma, é nítido que essas pessoas têm sofrimentos diferentes, em termos de saúde. É preciso uma reparação do que foi feito historicamente com essas pessoas.
Ainda existe uma construção racista e patriarcal, que dificulta que essa população se sinta acolhida nos espaços. Uma coisa muito citada, por exemplo, é o não reconhecimento do nome social das pessoas transsexuais. Quando a pessoa chega no serviço e não é chamada pelo nome, mesmo que não tenha feito ainda a retificação, ela não se sente à vontade e sofre violência. E, se ela não estiver à vontade, não terá atenção integral à sua saúde.
Outro exemplo é quando, a partir do momento em que a pessoa usuária diz que é casada, o profissional já pressupõem que o parceiro é do sexo oposto. Quando o acompanhamento é em relação à saúde mental, situações como essas se tornam ainda mais sensíveis.
Como adquirir o livro?
O livro pode ser comprado na página da editora Dialética ou encomendando diretamente comigo, pelo perfil no instagram @marcoogatti ou pelo e-mail marco.trk@gmail.com.
Os exemplares são enviados para todo o Brasil.
Publicação de: Brasil de Fato – Blog