Sarau das Minas com Amelinha Teles ou por que escutar as histórias que não nos contaram?
Esta era para ser uma matéria. Uma cobertura jornalística do lançamento do livro Contos da Cela Três: Memórias de uma presa política na ditadura, de Amelinha Teles. Lamento decepcionar mas, por fim, será um relato, mais poético do que direto, porque este encontro foi um convite – que aceitei de peito aberto e que preencheu meu coração. E fez poesia em mim.
Numa livraria do bairro Bom Fim, entre os presentes emocionados e atentos, Amelinha é inteiramente lúdica. Amelinha nos traz, na candura dos seus cabelos brancos, na força da sua face, no obstinado lenço verde (pela vida) no pescoço, um convite a brincar em meio à dureza, como se nossa imaginação fosse um pequeno réptil veloz e afoito a transitar pelas paredes.
Com ilustrações de Marta Baião e prefácio da jornalista Luiza Villaméa, o seu livro expõe traumas da ditadura sem perder a leveza, mesclando histórias pessoais de resistência com doses de humor.
Há algum tempo escrevi uma crônica imaginária. Também me veio visitar uma lagartixa. Também ela me fez companhia, mas, diferente do cárcere ditatorial que silenciou Amelinha, foi para mim fruto de uma prisão emocional, o silêncio ensurdecedor ecoando a ausência de um afeto pontual. Alguém que, por opção, resolveu ser, para mim, incomunicável.
Na minha crônica, a lagartixa vinha, se alimentava e depois sumia. Na de Amelinha, ela fica. Ela volta, ela pinta muros e murais com canetinhas coloridas. A lagartixa de Amelinha conversa com ela!
Minha lagartixa se alimentava aqui e ali, rapidamente… e depois sumia – ouvi que estava construindo um novo lar – para o qual nunca me convidou (ressentimento).
Em Contos das Cela Três, é a Lagartixa Linguaruda de Nascimento de Amelinha que nos alimenta. Ela que circula pelas celas escuras da opressão e distribui cores, versos, cantigas de infância.
Este livro é um presente. Num momento atual, onde ainda encaramos a pupila dilatada do fascismo, é nesse pequeno bichinho que reside a perseverança. Ela nos convida a não desistir.
“Subversão é o ato de falar a verdade em tempos sombrios”
Numa realidade onde ainda é preciso enfrentar os desafios – a retirada de direitos, a homofobia, o preconceito, encontrar com as histórias de Amelinha foi um bálsamo. No pequeno oásis literário que foi esse encontro, onde mirei com carinho nos olhos de quem eu admiro: Maria Amelia de Almeida Teles. mariam pessah. Monique Prada. Pessoas a quem a vida nem sempre foi amável. Escritoras que partilham mais que histórias: são memórias que retumbam pelos corredores da luta pela (r)existência. Que escrevem em linhas afáveis narrativas que correm pelas paredes do coração. Que subvertem a ordem posta. Que, tal lagartixas, já perderam e reconstruíram suas caudas um incontável número de vezes.
“Quando a gente canta, desenha, escreve ou lê uma história bonita, a gente se sente livre”
É a imaginação que liberta, mas a memória que orienta. É necessário buscar refúgio na narrativa poderosa de quem enfrentou o mal em seu estado mais cruel e sobreviveu. E pra, além disso, transformou os horrores do cárcere em lições de vida, em memória, verdade e justiça. Conhecer as histórias que não nos contaram é um direito humano. Sentar aos pés dessas mulheres e ouvi-las é um privilégio dos nossos tempos. Tentaram, em vão, calar suas manifestações, assim como hoje seguem tentando barrar nossos direitos, mas, boas lagartixas que somos, nós saberemos como escapar. Leiam Amelinha.
* ana c, de carolina, é comunicadora por vocação, produtora cultural por capricho e multiartista por essência. mulher lésbica, feminista e latinoamericana, escreve para dar sentido ao que sente.
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.
Publicação de: Brasil de Fato – Blog