Roberto Amaral, que em 2016 levou bomba da PM de Alckmin: Quem fará o discurso da esquerda nas eleições de 2022?

Por Conceição Lemes

Aos 82 anos, completados em 24 de dezembro, Roberto Amaral segue incansável.

Cientista político, jornalista, escritor, conferencista e político militante, tem obras de ficção e mais de 30 livros nas áreas do Direito, Ciência Política, Segurança Nacional, Ciência e Tecnologia e Comunicação.

Ministro da Ciência e Tecnologia (janeiro de 2003 a 2004) do primeiro governo Lula, teve inquestionável liderança ideológica no PSB, do qual foi um dos refundadores em 1985.

Em outubro de 2014, é contra a decisão do PSB de apoiar no segundo turno a candidatura de Aécio Neves a presidente da República.

Aí, se afasta da presidência do PSB e lidera a dissidência pela esquerda no partido. É um dos idealizadores da Frente Brasil Popular.

Roberto Amaral, aliás, é também incansável na luta por justiça, democracia e direitos dos trabalhadores.

Está sempre presente nos momentos cruciais.

Ao ler o artigo (mais abaixo) que Amaral enviou por e-mail no final da noite de quinta-feira, 13-01, acabei relembrando e resgatando dois desses momentos. Ambos são uma lição para todos nós.

9 de maio de 2017. Véspera do primeiro depoimento do ex-presidente Lula ao então juiz Sérgio Moro.

Junto com outros juristas, Amaral deu aula em praça pública de Curitiba (PR) na qual denunciou as ilegalidades da Lava Jato. O evento foi organizado pelo Coletivo Advogadas e Advogados pela Democracia (CAAD).

4 de setembro de 2016. Roberto Amaral sentiu na própria pele a truculência da Polícia Militar (PM) do governador de São Paulo, o então tucano Geraldo Alckmin.

Violência policial escancarada e consentida.

Era o primeiro domingo pós-derrubada definitiva da presidenta Dilma. Em 31 de  agosto, o Senado havia concluído o processo de impeachment.

Gentes de todas as idades protestavam contra o usurpador Michel Temer (MDB-SP) no Largo da Batata, em Pinheiros.

Um ato absolutamente pacífico, que durou cerca de quatro horas.

De repente, a PM ataca sem qualquer razão a multidão indefesa.

Do nada, PMs começam a lançar bombas de efeito moral, spray pimenta, jatos d’água, gás lacrimogêneo e balas de borracha.

Houve muita correria e desespero.

Nem mesmo idosos, mães com filhos pequenos no colo e crianças foram poupados.

Em entrevista a Edgar Bueno, do Jornalistas Livres, o então senador Lindbergh Farias (PT-RJ) contou que estava no Largo da Batata, a caminho da estação do metrô Faria Lima com o deputado federal Paulo Teixeira (PT-SP), quando a PM começou a lançar bombas de gás lacrimogêneo.

Na confusão, os parlamentares encontraram o ex-ministro Roberto Amaral, já com 76 anos, ferido no braço pelo estilhaço de uma das bombas e os olhos lacrimejando por efeito do gás lacrimogêneo.

“Não houve um ato que justificasse a violência da polícia. Eu estava lá”, disse Lindbergh. 

“Isso é um escândalo. Vamos denunciar o Alckmin à Corte de Direitos Humanos”, afirmou no dia (Veja PS do Viomundo). 

Ao final, assista mais dois vídeos daquele terrível 4 de setembro de 2016. 

Eles dialogam com o artigo de Roberto Amaral e nos ajudam a refletir sobre as eleições de 2022. 

QUEM FARÁ O DISCURSO DA ESQUERDA?

Por Roberto Amaral*

A burguesia aqui operante, desapartada dos interesses do país, vem garantindo o império de sua ordem, nada obstante a periódica troca nominal de governantes que promove e a sucessão de partidos políticos conservadores que no mais das vezes se confundem na mesmice de programas (escritos por mera exigência legal) e na prática comum de vícios, dentre os quais aflora o descompromisso com o que quer que mesmo de longe sugira um projeto nacional, a cuja carência debitamos grande parte de nossas mazelas.

O poder pelo poder – a ocupação das sinecuras e os “negócios de Estado”– é o fim e a justificativa do concurso partidário, elevado aos píncaros da biltraria pelo Centrão, conglomerado de reacionários e negocistas de que se vale a classe dominante para manietar o Congresso e, por seu intermédio, impedir reformas e impor retrocessos políticos.

Mediante esse controle, custeado pela ingerência do poder econômico nas eleições, asfixia os eventuais governos populares (sempre um episódio fora da curva), impondo-lhes a rendição, como ocorreu com o golpe de Estado parlamentar que sequestrou o mandato de Dilma Rousseff.

O antipetismo e o anti esquerdismo de um modo geral são herdeiros de tudo isso.

Nas poucas oportunidades nas quais o mando se viu ameaçado, ameaçado de fato ou só aparentemente ameaçado em seu monolitismo, a classe dominante não titubeou em fraturar o pacto e interromper o jogo democrático – jogado, aliás, segundo as regras por ela ditadas.

Promovendo a fratura institucional, seu intuito é evitar a ruptura da ordem política hegemônica, cujas rédeas permanecem em suas mãos, qualquer que seja o governo.

A soberania popular fala a cada quatro anos, é verdade, mas sua vontade terá sempre de conviver com a vontade da casa-grande.

A conciliação impede a fissura das estruturas arcaicas, e a “manutenção da lei e da ordem” funciona como dique contra o progresso; nem revolução nem reforma, nem mesmo as mais consentâneas com o capitalismo, como a reforma agrária e a reforma tributária.

Nada que mesmo de leve, e mesmo sob controle, possa ameaçar a estabilidade das velhas estruturas que asseguram o domínio da nação por apenas o 1% de brancos e milionários.

Vez por outra a classe dominante ruge, dá estudados sinais de incômodo, mas é apenas jogo de cena; ela tem consciência de que, no frigir dos ovos, controla o espetáculo.

Dão-se as mãos a caserna, o centrão e a Av. Faria Lima, os grileiros e as mineradoras, o capital financeiro nacional e internacionalizado e o agronegócio, e seu aparelho ideológico, os grandes meios de comunicação de massa.

Quinhentos anos tentando dar vez à emergência de um povo; duzentos anos de Estado independente; 133 anos de República, passados quase 70 anos de um império que já nasceu velho; um sem-número de golpes de Estado, duas longevas ditaduras.

A única revolução vitoriosa, o movimento de 1930 – liderado por três governadores de província –, resultou de uma cisão na classe dominante. Exatamente por isso, venceu. Levada a cabo para assegurar a democracia e as liberdades, a “verdade eleitoral”, terminou por instaurar uma ditadura de 15 anos.

Qualquer sinal de alteração do sentido dos ventos é visto como fator de desestabilização sistêmica, ameaça à calmaria que acomoda o mando; a resposta é a intervenção do braço armado do poder, cumprindo com seu papel de instrumento da ordem: a conservação do statu quo, a preservação do passado no presente.

A história de nossos dias registra dois marcos desse intervencionismo reacionário: a ditadura de 1964-1985 e o golpe de 2016, que, depondo a presidente Dilma Rousseff, abriu caminho para a ascensão dessa chaga que é o bolsonarismo.

Por intermédio do capitão, a direita brasileira, militar e civil, teve a primeira oportunidade, na República, de chegar ao governo pela via institucional e, com a proteção dos engalanados, empreender a exótica experiência de regime a um tempo neoliberal e protofascista.

Enquanto teve fôlego, o fantoche estapafúrdio entregou o contratado aos senhores de seus cordéis: o aprofundamento da desindustrialização, da precarização dos direitos trabalhistas, da derruição da previdência social e, em plena faina, a desmontagem dos instrumentos de governo que, desde 1930, vinham permitindo ao Estado brasileiro cumprir com seu papel de vetor de desenvolvimento, cujo melhor atestado é a extraordinária taxa média de 6% de crescimento anual alcançada entre 1930-1980, contrastando com a estagnação de nossos dias, de que é indicador a expectativa do PIB para 2022, estimado 0,5% pelo Boletim Focus do Banco Central.

Anistórico a mais não poder, o projeto Bolsonaro – reunindo a marginalidade política, empresários e fardados (exército, marinha, aeronáutica e forças auxiliares) – deu com os burros n’água, empurrado por histórica desaprovação popular que esvazia as pretensões de continuidade pela via eleitoral, depois de fracassada a tentativa de golpe do 7 de setembro de 2021, na qual investira o terceiro andar do palácio do planalto, ora com o silêncio beneplácito, ora com a articulação de seus generais, milicianos e empresários delinquentes.

Os dados de hoje dizem que voltou à ordem do dia a regra do jogo democrático clássico, com a qual parece conformar-se a grande burguesia, olhando atenta para o que ocorre na Argentina, na Bolívia, no Peru e no Chile, e já aflita com o que podem oferecer as próximas eleições colombianas.

Teremos eleições e, com os dados de hoje, elas serão respeitadas. O trumpismo, por enquanto, é de pouca valia, e pouco pode a direita brasileira esperar de um inseguro Joe Biden, às voltas com a pandemia, as eleições legislativas de junho, Putin e Xi Jinping, adversários de respeito.

A burguesia brasileira, mandante desde a colônia, caracteriza-se pela alta maleabilidade, sua capacidade de vencer obstáculos e manter-se no comando da política, sempre apta a ceder alguns poucos anéis de latão para conservar os dedos.

Com o esvaziamento da candidatura do capitão, consequência de sua catastrófica passagem pelo governo, a Faria Lima e adjacências enfunaram todas as velas na direção da chamada “terceira via”, a panaceia de seus estrategistas.

O fracasso, porém, nada obstante a comovente obstinação da grande imprensa, foi o mais contundente.

Não sentou praça o “conflito dos extremos” clamando por uma alternativa ao “centro”, e as candidaturas Lula (em ascensão) e Bolsonaro (em queda vertiginosa) continuaram polarizando, e assim deverão chegar às eleições de outubro. A menos que o capitão abandone a raia.

A classe dominante não tem compromissos senão com seus interesses e, em função deles, sabe identificar a estratégia mais segura, não raro parecendo recuar quando, de fato, cuida de avançar.

Se de todo não é mais viável a candidatura in pectoris do capitão, construa-se uma alternativa; indisponível esta, a saída, que o andar de cima não rejeita, é procurar apaziguar-se com o “sapo barbudo” seja indicando-lhe a parelha, seja, onipotente, ditando o modelo de esquerda, dita “moderna”, que nossa esquerda “atrasada” (PT à frente), deve seguir.

O figurino, cantado em prosa e verso pelos grandes jornais, diz que a esquerda brasileira, para modernizar-se, precisa, em síntese, deixar de ser de esquerda, pois impõe-se deitar fora os “velhos temas”, como a luta de classes (vencida pela conciliação), a reforma agrária (vencida pelo agronegócio) e a defesa do Estado e da empresa nacional (vencida pela globalização).

Vitoriosa essa linha, que pode encantar os que reduzem a política ao processo eleitoral, as esquerdas, nomeadamente a esquerda socialista, seriam condenadas à afasia, renunciando ao dever do proselitismo, do qual, aliás, se afastou desde as eleições de 2002, com as consequências consabidas, e delas destaco a fragilidade atual do movimento sindical e o atraso ideológico das grandes massas, cujo índice é a penetração do bolsonarismo entre as chamadas classes subalternas.

Inicia-se uma longa caminhada de pouco mais de nove meses. E ela só terá sentido histórico, para as esquerdas (assim mesmo, no plural), se se constituírem em oportunidade de mobilização e organização popular, política e ideológica.

O processo eleitoral, com as condições de articulação e debate que assegura, com o acesso aos grandes meios de comunicação que propicia, com o ambiente de liberdade e movimento que enseja, deve ser visto pelos partidos e organizações populares e progressistas como a grande oportunidade de contato direto com as massas.

Derrotar a chaga do bolsonarismo não pode ser visto como um fim em si mesmo, fito que tudo justifica.

***

Barriga de aluguel – Para emprestar sua legenda ao ex-governador Geraldo Alckmin, dando-lhe assim condição jurídica de ocupar a vaga de vice na chapa de Lula, o PSB – que vem de sua aliança com Aécio Neves em 2014, e do seu comprometimento com a campanha de Eduardo Cunha à presidência da Câmara em 2015, ponto de partida para o golpe – exige o apoio do PT a seus candidatos em Estados nos quais, como no Rio de Janeiro e RS, não tem votos, ou em Pernambuco, onde seu proclamado candidato renunciou à propositura.

Isso, no dicionário de Antônio Houaiss, que foi presidente da sigla quando esta buscava o socialismo, está grafado como chantagem.

Homenagem a Eny Moreira – Francis Bogossian, presidente do Instituto Brasileiro de Estudos Políticos-IBEP, informa que a instituição realizará uma mesa-redonda sobre a vida e a atuação da criminalista Eny Moreira, minha querida amiga recentemente falecida. A homenagem será no próximo 5 de abril, quando a destemida advogada de presos políticos na ditadura completaria 77 anos.

*Roberto Amaral foi presidente do Partido Socialista Brasileiro (PSB) e ministro da Ciência e Tecnologia do governo Lula. Atualmente, é professor, cientista político e jornalista.

PS do Viomundo: Via WhatsApp, perguntamos a Lindbergh Farias (PT-RJ), atualmente vereador na cidade do Rio de Janeiro), se chegou a denunciar a PM de Alckmin à Corte Interamericana de Direitos Humanos. Até a publicação deste artigo, ele não havia retornado. Tão logo isso ocorra, acrescentaremos a informação.

Publicação de: Viomundo

Lunes Senes

Colaborador Convidado

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