Psicanalistas e psicólogos analisam os atos golpistas diante dos quartéis

O que leva milhares de pessoas a se manterem diante dos quartéis um mês e meio após as eleições? É um acontecimento inédito na história do Brasil.

Vestidos de verde e amarelo, cantam, rezam, marcham e esperam uma intervenção militar que impeça a posse do presidente eleito. Fogem ao debate racional sobre o que quer que seja, principalmente sobre o fato de todas as instituições nacionais e internacionais reconhecerem a lisura do pleito. Parecem em transe, repetindo palavras de ordem ou slogans e decodificando supostos sinais emitidos pelo candidato derrotado em 31 de outubro.

Tentando entender o fenômeno psíquico, Brasil de Fato RS foi ouvir os profissionais do ramo. Perguntou a dois psicanalistas e duas psicólogas como interpretam o que está acontecendo. São eles os psicanalistas Maurício Busatto e Abraão Slavustsky e as psicólogas Thaíse Mendes Farias e Eliana Sardi Bortolon.

Veja uma síntese das suas respostas:

Maurício Busatto e o inimigo imaginário

“Os atos antidemocráticos e violentos, que acompanhamos estarrecidos, causam indagações acerca do funcionamento psíquico daqueles que os integram. Também é importante frisar que a psicanálise não trabalha com generalizações. Mas é interessante levantarmos algumas hipóteses acerca do que está acontecendo. Freud, em 1921, escreveu o texto Psicologia das Massas e Análise do Eu e nele ressalta que, para que um grupo de pessoas forme uma massa, são necessários alguns elementos: a escolha de um líder – no caso o presidente não reeleito; que esteja fascinado por uma crença – ‘o sistema eleitoral é fraudulento’; e que haja uma identificação entre os participantes – ‘somos os heróis nacionais que salvarão o Brasil do comunismo’.

Nos movimentos de massa também há a intensificação dos afetos – ‘paixão pelo mito’, ‘raiva do PT’ – que estão claramente relacionadas com a redução da capacidade intelectual. Outro ponto seria a presença de um discurso desconexo com a realidade, em uma lógica que não faz parte do consenso.

Nos casos extremos é perceptível a ênfase no saber total e a construção de um delírio para mantê-lo que, muitas vezes, aparenta ser da ordem da paranoia – a certeza que todos estão sendo manipulados e só os que compactuam dessa crença detém a verdade, e também a construção de inimigos imaginários – a própria ideia da invasão comunista.”

Abraão Slavutsky e o líder deprimido

“Há anos vem sendo feita nesse país uma campanha muito bem organizada de ódio a Lula, que foi até preso por um simples juiz que logo se revelou um político. Também contra a ex-presidente Dilma deposta por um golpe.

Há uns cem anos foi escrito por Sigmund Freud um livro, ‘A Psicologia das Massas e Análise do Eu’, para pensar o comportamento da massa. As massas sentem um amparo num líder e quando esse líder está deprimido, mas feliz com as manifestações, as pessoas recorrem aos quartéis, marcham, se sentem heróis da pátria. Os derrotados nas eleições se sentem desamparados e raivosos, buscam nos armados o amparo perdido pela depressão do seu líder.

O silêncio do presidente revela o trauma da derrota, apesar de que, no último debate presidencial, pediu a Deus que o elegesse deputado federal, revelando assim seu desejo inconsciente.”


“Até para psicologia tem sido um desafio porque não é uma questão de loucura, é um fenômeno social, político, cultural, que atravessa sim as realidades individuais subjetivas”, comenta Eliana / Foto: Jorge Leão

Thaíse Farias e os psicóticos que não surtam

“Estamos em uma sociedade onde nada é para durar. Aliás, já se fala em uma sociedade gasosa, onde as coisas são mais efêmeras ainda. Várias das coisas das quais nos assegurávamos para termos uma certa consistência e segurança psíquica começam a ruir. Estamos falando de valores, modos de vida que não se adequam mais a nossa realidade.

Existem psicóticos que não surtam. Estão em um certo grau de distância da realidade, dessa perspectiva coletiva de realidade que compartilhamos. Estão psicóticos mas não entram em surto porque se mantém bastante funcionais em diversos aspectos da sua vida. Vemos aí um sintoma limítrofe entre psicose e a neurose como uma resposta a esse mal-estar em sociedade. E sobretudo esse mal-estar em uma sociedade onde nada é feito para durar, onde as coisas mudam com muita rapidez, onde as informações são massivas, e muitas vezes informações que não condizem com a realidade dos fatos.

Então, a gente vê esses comportamentos excêntricos, de intervenção alienígena ou medo irracional do comunismo, como se o comunismo fosse uma ameaça real que vai retirar das pessoas tudo aquilo que elas conhecem, ‘vai poder se abortar em cada esquina, as pessoas vão perder seus bens, vão perder todas as suas referências de civilização’.

O que acontece? Algumas pessoas que estavam habituadas a exercer poder sobre outros corpos, a terem satisfeitas as suas necessidades a partir da objetificação de parcela da população, estão vendo esse mundo que elas conhecem, onde elas podem dominar outras pessoas, esse mundo está ruindo.”

Eliana Bortolon e a vida em um mundo paralelo

“Não estamos em uma questão de verdade ou mentira e nem de concordar ou discordar. Não estamos falando de duas opiniões opostas. Estamos falando de um mundo paralelo, de uma história que não existe. Por isso essas manifestações são tão surreais. O fenômeno das fake news tem essa característica que é importante sempre lembrar: é sobre algo que não existe.

A manifestação, a intervenção, o comunismo, não estão em jogo na vida real. Não estamos sob ameaça de um regime comunista. Não estamos falando entre os que concordam e o os que discordam disso. Estamos falando em manifestar-se sobre algo que não é. E aí é tão difícil para quem vive no mundo real, vamos dizer assim, nessa realidade mais racional, é muito difícil da gente poder compreender isso que está acontecendo. E é muito difícil dialogar, estabelecer contato, porque estamos falando de dois mundos paralelos. É como se a gente tivesse um mundo paralelo no mesmo espaço físico, geográfico.

Até para psicologia tem sido um desafio porque não é uma questão de loucura, de insanidade mental, de algum transtorno dos que a gente conhece. É um fenômeno social, político, cultural, que atravessa sim as realidades individuais subjetivas, que coloca as pessoas em situações muito difíceis. Temos acompanhado pessoas que abandonam seu trabalho e suas famílias para poder dar conta desta manifestação.”

* Colaboraram Ayrton Centeno e Katia Marko

Publicação de: Brasil de Fato – Blog

Lunes Senes

Colaborador Convidado

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