Paulo Capel: ”A quem interessa a mentira sobre a história do SUS?”

Por Conceição Lemes

Nessa segunda-feira, 6/10, começou a Campanha Nacional de Multivacinação para crianças e adolescentes até 15 anos.

Ao lado, recorte do cartão oficial desta vital e indispensável ação de saúde pública. A campanha irá até 30 de outubro.

À logomarca do SUS, o Ministério da Saúde (MS) incorporou a expressão 35 anos.

‘’Hoje, 19 de setembro, o SUS completa 35 anos e se consolida como o maior sistema público, gratuito e universal de saúde’’, anunciou há quase três semanas o Ministério da Saúde.

Na ocasião, o ministro Alexandre Padilha destacou:

‘’O Sistema Único de Saúde completa 35 anos, se consolida como um dos maiores sistemas públicos de saúde do mundo. Ao longo dessas três décadas e meio, o SUS transformou a realidade da saúde pública brasileira’’.

O presidente Lula (@LulaOficial) publicou em seus perfis nas redes sociais:

‘’O Sistema Único de Saúde, o SUS, completa hoje 35 anos. E é motivo de orgulho para o Brasil: nenhum outro país do mundo com mais de 100 milhões de habitantes tem um sistema de saúde universal, com atendimento gratuito a todos, independentemente de poder ou não pagar independentemente de poder ou não pagar uma consulta ou um plano de saúde”.

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Em 29 de setembro, foi a vez da Câmara dos Deputados homenagear o SUS em sessão solene presidida pela deputada federal Ana Pimentel (PT-MG).

‘’O SUS tem 37 anos e não 35 anos. Tomar a sanção da Lei 8.080/90 como ato criador do SUS não é apenas erro cronológico, é uma violação da história’’, alertou Paulo Capel Narvai nas redes sociais.

Capel é professor titular sênior de Saúde Pública na USP e autor do livro SUS: uma reforma revolucionária.

O seu alerta não é de agora, como mostram estes artigos:

17 de maio 2018, site da Abrasco – Associação Brasileira de Saúde Coletiva: SUS, 30 anos de resistência e contra-hegemonia

17 de maio 2021, Jornal da USP: SUS completa 33 anos de existência e tem sua importância evidenciada pela pandemia

15 de maio 2024, site A Terra é Redonda: SUS, 36 anos – consolidação e incertezas

Questionei o Ministério da Saúde, via sua Assessoria de Comunicação (Ascom):

— O SUS foi criado em 17 de maio de 1988, portanto há 37 anos. O Ministério da Saúde diz que o SUS faz 35 anos. Por que toma por base uma lei (Lei 8.080/90) amputada por Collor em vez da data que os constituintes criaram o SUS?

Resposta da Ascom/MS:

”A Constituição Federal de 1988 definiu a saúde como direito de todos e dever do Estado. Em 1990, a Lei nº 8.080 regulamentou o sistema em todo o território nacional, definindo a estrutura organizacional do SUS. Enquanto a Constituição garantiu o direito à saúde, a lei viabilizou sua execução, consolidando o modelo de saúde pública adotado no Brasil”.

Paulo Capel, além de professor na universidade, sempre foi ativista pelo direito à saúde.

Ajudou a criar o SUS e a consolidá-lo.

Nos anos 1970-80, quando o Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (Cebes) se tornou o grande impulsionador da Reforma Sanitária, ele foi um dos fundadores do núcleo Paraná.

No período1982-83, integrou a diretoria nacional da entidade; David Capistrano Filho assumiu a presidência e ele a vice.

Em 1985, ajudou a organizar a Conferência Estadual de Saúde de São Paulo, que foi a pré-conferência da 8ª Conferência Nacional de Saúde.

Em 1986, coordenou em São Paulo a Conferência Nacional de Saúde Bucal.

Nos anos seguintes, atuou em várias conferências que foram moldando o SUS. Numa delas, na 4 ª de Saúde Indígena, nasceu a proposta de criação da SESAI — Secretaria de Saúde Indígena.

Diante de tudo isso, entrevistei-o.

Viomundo – O Ministério da Saúde, à minha pergunta sobre o aniversário do SUS, respondeu: ‘’A Constituição Federal de 1988 definiu a saúde como direito de todos e dever do Estado. Em 1990, a Lei nº 8.080 regulamentou o sistema em todo o território nacional, definindo a estrutura organizacional do SUS. Enquanto a Constituição garantiu o direito à saúde, a lei viabilizou sua execução, consolidando o modelo de saúde pública adotado no Brasil’’. É isso mesmo? O que acha da resposta?

Paulo Capel — Lamentável. Entra ministro, sai ministro e ninguém consegue corrigir essa bobagem que atribui a Fernando Collor a criação do SUS. Tenha a santa paciência!!!

Viomundo – Por quê?

Paulo Capel — O SUS foi criado pela Assembleia Nacional Constituinte em 17 de maio de 1988. Foram 472 votos a favor, 9, contra e 6 abstenções. Portanto, em maio de 2025, completou 37 anos. Ao lado, capa do Diário da Constituinte de 18 de maio, que publicou o que foi aprovado.

Já quem advoga que o SUS fez 35 anos se baseia na Lei 8.080, de 19 de setembro de 1990, sancionada pelo então presidente Fernando Collor de Mello.

Acontece que a Lei 8.080/90 não criou nada. Apenas regulamentou o que os constituintes aprovaram. Além disso, é uma lei amputada pelo próprio Collor.

Viomundo – Como amputada?!

Paulo Capel – Em setembro de 1990, ao sancionar o PL que deu origem à lei 8.080, o Collor amputou os artigos que se referiam à “participação da comunidade” (Conselhos e Conferências de Saúde) e financiamento (transferências obrigatórias da União para estados e municípios).

O Collor pensou que podia eliminar esses artigos e vetou-os. Mas teve de recuar, pois não podia vetar algo que a Constituição de 1988 mandava fazer.

O que se seguiu foi uma batalha decisiva, que culminou com a derrota de Collor e dos que queriam reduzir o SUS ao Inamps e manter tudo centralizado em Brasília e sem qualquer tipo de “participação”, nem popular, nem da comunidade.

Em 28 de dezembro de 1990, o Collor teve de sancionar a lei 8.142.

Viomundo – O que tem a ver a lei 8.080/90 com a lei 8142/90?

Paulo Capel – Tudo a ver. Normalmente, se menciona a lei 8.080/90, mas se ignora o complemento dela, a lei 8.142, que afinal consertou o que já havia de errado na 8.080.

Viomundo – O que foi consertado?

Paulo Capel — A negativa de Collor de regulamentar dois pontos centrais do SUS constitucional: a participação da comunidade e a transferência de recursos da União para Estados e Municípios, ou seja, o financiamento do SUS.

Em 28 de dezembro de 1990, foi sancionada a lei 8.142, sem a qual o SUS teria sido uma espécie de ‘viúva Porcina’ [fazendo referência à célebre personagem da telenovela ‘Roque Santeiro’, caracterizada por Dias Gomes como “a que foi, nem nunca ter sido”]. Aliás, é bom permanecer em alerta, pois o tempo todo tem gente querendo transformar o SUS na viúva Porcina.

Mas, revisionistas da história querem-porque-querem anular esses dois anos da história do SUS, negando que tenha sido criado no dia em que foi, efetivamente, criado pelos constituintes: 17 de maio de 1988, na 267ª Sessão da Constituinte.

Viomundo — Então sem a lei 8.142 o SUS não existiria? 

Paulo Capel — Existiria, mas seria outra coisa. Foi a lei 8.142 que regulamentou as atividades dos conselhos de saúde e a realização obrigatória de conferências nacionais, estaduais e municipais de saúde.

Todos os entes federativos ficaram obrigados a ter conselhos e realizar conferências. Sem os conselhos e as conferências, a “participação da comunidade” no SUS, prevista no artigo 198, inciso III, ficaria para as calendas gregas.

A lei de dezembro de 1990 corrigiu também a lacuna imposta por Collor na lei de setembro, ao disciplinar as transferências de recursos financeiros do governo federal para Estados e Municípios. Sem isso, os municípios não poderiam “comandar o SUS” no seu âmbito de governo, como determina o artigo 198, inciso I, que estabelece a “descentralização, com direção única em cada esfera de governo”.

Os municípios seguiriam sendo tratados pelo governo federal como uma empresa qualquer que “presta serviços” ao governo federal.

Muita gente considera que a lei 8.142 “é o coração do SUS”. Não é exagero, não.

Viomundo – Quer dizer que anunciar que o SUS fez 35 anos em 2025 significa colocar o governo Collor como criador do SUS?

Paulo Capel – Sim. É exatamente o que faz quem sustenta que o SUS foi criado com base na lei 8080/90.
É um revisionismo que acaba colocando o Collor no centro do ato histórico da criação do SUS. Justo ele, que encarnava a negação do SUS, sob todos os aspectos.

Por isso, reitero. O SUS foi obra dos constituintes e não do Collor.

Viomundo – Há quem diga que a questão da data de criação do SUS seria de somenos importância, uma filigrana.

Paulo Capel – Em hipótese alguma. Aqueles 2 anos, entre maio de 1988 e meados de 1990, foram de lutas gigantescas contra as forças que não queriam o SUS.

Esse grupo queria manter o Inamps e que o comando de todo o sistema fosse centralizado nos Estados e em Brasília. Nada de comando municipal do SUS!

Simplificando bastante, queriam como que “perpetuar o SUDS”, aquele sistema de transição do que havia, para o SUS, e que se caracterizava pela celebração de convênios entre o governo federal, por meio do Inamps, e os governos estaduais.

Não queriam, de jeito nenhum, que o SUS fosse institucionalizado e municipalizado. E queriam, claro, manter o controle político sobre o Inamps. Era uma estratégia que sensibilizava e tinha apoios em setores da esquerda, que desconfiavam da competência dos municípios para gerirem sistemas de saúde descentralizados.

Naqueles dois anos, derrotamos Collor e as forças contrárias à descentralização e à municipalização.

Viomundo – O que significa trazer a criação do SUS para 1990?

Paulo Capel – Além de ser uma mentira, é negar dois anos de lutas intensas. É trair as lutas e os lutadores que conhecemos bem, como Carlos Neder, David Capistrano Filho, Gilson Carvalho, Paulo Dantas e Sérgio Arouca.

Naqueles dois anos, entre 1988 e 1990, David foi secretário de Saúde de Santos (SP) e Paulo Dantas, secretário de Saúde de Olinda (PE).

David e Dantas foram dois “leões” nas lutas pela municipalização para criar o SUS pela base municipal. Foram dois importantes articuladores para a criação do Conasems, ao lado de outras lideranças do período.

Setembro de 1988: Debate em Olinda (PE) sobre a municipalização do SUS. Na mesa, ao centro, Paulo Capel, como coordenador. À direita, David Capistrano Filho, secretário da Saúde de Santos (SP); à esquerda, Paulo Dantas, então secretário da Saúde de Olinda. Fonte: Diário de Pernambuco, 26/08/1988

Na cidade de São Paulo, entre1988 e 1990, Eduardo Jorge e, depois, Carlos Neder foram secretários de Saúde da prefeita Luiza Erundina.

Já a partir de 1º de janeiro de 1989, Neder e Eduardo Jorge lideraram a construção do SUS pela base municipal, confrontando os setores centralizadores e impondo politicamente a municipalização, tal como prevista na Constituição de 1988.

Ambos “forçaram” os setores contrários a engolirem a implantação do SUS na capital. Erundina não aceitou apenas convênios SUDS.

Exigiu que São Paulo “comandasse” o SUS paulistano nos termos da Constituição de 1988, embora essa luta tenha sido apenas parcialmente bem-sucedida.

Erundina criou o Conselho Municipal de Saúde de São Paulo, por meio da portaria 1.166, de 24/06/1989.
Isso fazia avançar o SUS, implantando-o quase que na marra.

E o que acontecia em Sampa, claro, repercutia e influenciava todo o País.

Assim, afirmar que o SUS completou 35 anos em 2025, não é apenas erro cronológico, é uma gravíssima violação da história.

Viomundo – Ou seja, aqueles dois anos foram cruciais para tirar o SUS do papel?

Paulo Capel – Sem a menor dúvida. E também não permitir que o SUS fosse amputado e reduzido a uma versão SUDS, quer dizer, a um amontoado de convênios, cujo cipoal permitiria praticar todo o tipo de politicagem.

A institucionalização do SUS foi decisiva, e segue sendo crucial para descentralizar o sistema e viabilizar a participação popular. David Capistrano costumava dizer que tudo o que não deveria acontecer com o SUS era que se transformasse numa monstruosa e gigantesca máquina burocrática, centralizada em Brasília.

Viomundo – Datar a criação do SUS em 1990 é uma forma de apagar aqueles dois anos?

Paulo Capel – Sim, é a expressão de um revisionismo histórico que não podemos aceitar. Não se trata de preciosismo histórico.

Não podemos aceitar o apagamento daqueles dois anos porque aquele passado nos ajuda a seguir em frente, com um rumo bem definido, indicando para todos os que o defendem, como eu, o que deve ser o SUS.

Aqueles dois anos nos ajudam a recusar essa versão neoliberal em curso, que atrofia o nosso sistema universal de saúde do sentido contra-hegemônico para o qual foi criado.

Viomundo – O Ministério da Saúde foi alertado sobre esse erro?

Paulo Capel – Várias vezes. Não adiantou avisar o Ministério, falar com os profissionais da Ascom. Parece haver um pacto sobre esse assunto, para fincar o pé no ano de 1990, como o ano da criação do SUS.

O Ministério da Saúde vem sendo o principal responsável pela reprodução, disseminação e insistência nessa mentira de que o SUS teria sido criado no governo Collor, em 1990.

Viomundo – Por quê?

Paulo Capel — As razões para isso são, para mim, são incompreensíveis. Talvez um dia a assessoria de comunicação do Ministério da Saúde tenha errado. E eles resistem a reconhecer o erro. Como são jornalistas e publicitários, têm força. E pesquisadores, estudiosos e até pessoas que, como eu, acompanharam os fatos, podem pouco frente a essa máquina de comunicação oficial. É apenas lamentável.

Viomundo – Só que a Ascom não tem poder para isso. É uma decisão de ministro.

Paulo Capel – Eu sei.

Viomundo – Esse erro na data da criação do SUS sempre existiu?

Paulo Capel – Eu não consigo identificar a origem do erro, na linha do tempo. Sei que ex-ministros, como o José Temporão, não concordam com a indicação da criação do SUS em 1990.

Viomundo – Quer dizer que se desconhece o responsável por esse erro?

Paulo Capel – Até onde eu sei, não se sabe quem foi o autor da decisão nem quando isso começou. O que sei é que já passou da hora de isso ser corrigido. O governo federal está passando vergonha.

Ministros de Estado, ou porque concordam com o erro, ou porque estão mal assessorados, estão sendo expostos publicamente, de uns anos para cá.

Viomundo – O que significa o Ministério da Saúde chancelar que o SUS fez 35 anos em 2025?

Paulo Capel – A mim parece gravíssimo, pois isso significa dizer que o Ministério da Saúde não sabe a data da criação do SUS e, por supostamente ignorá-la, fica espalhando fake news.

Dizer que o SUS tem 35 anos é pura fake news. Ao reincidir nesse erro histórico, o Ministério está sendo negacionista e, com esse revisionismo histórico, insistindo na mentira de que o SUS teria sido criado no governo Collor, em 1990. Não foi, não!

Viomundo – A ideia de que o SUS tem 35 anos está hoje largamente disseminada também no setor saúde.

Paulo Capel – Está sim, infelizmente. Predomina, amplamente, um olhar desinformado sobre isso. No setor saúde e em toda a sociedade.

Algumas pessoas ficam apenas no plano cronológico, e colocam seu olhar nas leis de 1990. É como se a regulamentação fosse mais importante do que o processo político que institucionalizou o SUS em 1988.

Claro que a regulamentação é importante, mas é preciso alertar que a regulamentação não foi concluída com as leis de 1990, pois o tempo todo são publicados decretos, resoluções, portarias e uma ampla gama de normas infralegais que regulamentam o SUS, que complementam o que leis não podem detalhar.

Mas, principalmente, essas pessoas não valorizam o que esteve em disputa e, sobretudo, o significado daqueles dois anos para o momento atual e o futuro do SUS… Parece que isso está se naturalizando.

Viomundo – Essa bagunça de datas é deliberada? A quem interessa? Qual a motivação?

Paulo Capel – Não sei dizer. Só sei que esse revisionismo histórico é irritante, típico dos piores ocultamentos praticados no passado. Lembra aquelas práticas de apagar adversários de fotografias, para “limpar a imagem”. Uma coisa lamentável mesmo.

É negacionismo praticado em um governo de esquerda, que tem compromisso com a democracia e a verdade histórica. É inaceitável essa tática publicitária, típica do bolsonarismo e de governos de extrema-direita em um governo democrático.

O pior é que não é por desconhecimento, nem ignorância, pois não faltam fontes com credibilidade sobre esses fatos históricos.

Viomundo – Seria ação de alguém de poder?

Paulo Capel – Em conversas sobre isso com amigos, tenho dito que talvez tenha origem em alguém, ou algumas pessoas que, não tendo tido papel relevante, nem protagonismo em1988, quer, agora, ficar bem na foto.

Mas não sei quem é. Se eu soubesse, diria sem pestanejar, pois é grave. Deve ser, tudo indica, alguém de muito poder. Dá para ver pelo estrago que está provocando na história do SUS.

Viomundo – Está preparado para as críticas que virão em decorrência desta entrevista?

Paulo Capel — Eu não posso calar frente à falta de compromisso com a verdade dos fatos. É difícil mesmo ser contra-hegemônico. É um cansaço só… Mas viver é lutar, não é isso? Pois lutemos, sigamos nas lutas.

Publicação de: Viomundo

Lunes Senes

Colaborador Convidado

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