Marcelo Zero: A paz está órfã
A Paz está órfã
Por Marcelo Zero*
A guerra da Ucrânia não começou neste ano. Começou em 2014, logo após o golpe de 2013, o qual inaugurou um regime pró-Ocidente e antirrusso, bastante influenciado por grupos neonazistas, que se consideram herdeiros de Stepan Bandera, líder político ucraniano aliado dos nazistas na Segunda Guerra Mundial.
A população russófona da Ucrânia, espalhada por todo o território, porém mais concentrada na península da Crimeia e na região do Donbass, reagiu.
Na Crimeia, foi realizado, com a ajuda de Moscou, um plebiscito para se separar da Ucrânia e se integrar, de novo, à Federação Russa. No Donbass, surgiu um movimento separatista com o mesmo objetivo.
Esse conflito armado no Donbass, que inclui bombardeios ucranianos contra cidades e vilarejos russófonos, se arrasta desde 2014 e, até o início deste ano, já havia causado a morte de cerca de 14 mil pessoas.
Ao longo desse período, a Ucrânia pode contar com grande ajuda, inclusive militar, do Ocidente, principalmente dos EUA.
Entre 2014 e o final de 2020, os EUA enviaram cerca de US$ 2,7 bilhões em ajuda militar à Ucrânia, a qual incluiu misseis antitanques Javelin, radares, barcos de patrulha, blindados etc.
Entre janeiro e o início de fevereiro deste ano, ao redor de 50 aviões militares de procedência diversa (EUA, Reino Unido, Canadá, Polônia, Lituânia, etc.) foram à Ucrânia.
Estima-se que um total de duas mil toneladas de equipamento militar tenham entrado no território ucraniano, no início de 2022.
Ademais, foram enviados, antes da eclosão da guerra atual, centenas de instrutores para treinar as tropas da Ucrânia.
Ao que tudo indica, os EUA e seus aliados da Otan já sabiam, bem antes da guerra atual, que a Rússia acabaria por reagir ante a política agressiva de expansão da Otan para a Ucrânia e o agravamento do conflito interno naquele país.
Entretanto, nada fizeram para impedir o agravamento das tensões. Ao contrário, continuaram a estimular o “nacionalismo” ucraniano e a armar as forças da Ucrânia. Investiram na guerra.
Portanto, Lula e outros líderes mundiais têm razão em dizer que não se pode culpar apenas Putin pela guerra.
Ignorar as grandes questões geopolíticas que explicam o conflito, e seu agravamento, como fazem a imprensa ocidental e brasileira, por exemplo, ou é sinal de cinismo ou é demonstração de ignorância.
Embora Zelenski e o governo da Ucrânia tenham sua quota de responsabilidade, os grandes culpados pelo investimento na guerra são os EUA e seus aliados europeus da Otan.
A Ucrânia é, na realidade, um peão na disputa geoestratégica mundial. Nesse sentido, Zelenski está mais para um deslumbrado narcisista do que para uma liderança realmente decisiva.
O pior que esse investimento na guerra e sua expansão no tempo e no espaço está se intensificando cada vez mais.
A estratégia óbvia da Rússia é, ou era, a de fazer uma intervenção militar rápida, limitada, que desarmasse as forças ucranianas e capturasse os grupos neonazistas, forçando a Ucrânia a fazer um acordo de paz, que resolvesse a questão do Donbass e assegurasse a neutralidade do território ucraniano.
A Rússia não tem interesse ou condições de fazer uma desgastante guerra de ocupação de longo prazo.
Quem tem interesse numa desgastante guerra de ocupação de longo prazo são os EUA e aliados.
A estratégia dos EUA e da Otan é bastante evidente. Num primeiro momento, investiram na disseminação de um ambiente russofóbico em todo o mundo e na implementação de sanções econômicas, financeiras, políticas, culturais e esportivas draconianas contra a Rússia.
Ademais, estimularam o governo da Ucrânia a “resistir” militarmente e a não investir a sério em negociações. Não moveram uma palha para a obtenção de um acordo de paz.
Agora, Biden acabou de anunciar uma ajuda de US$ 33 bilhões para Ucrânia.
Desse total, ao redor de US$ 21 bilhões serão destinados a armamentos de ponta, capazes de dar iniciativa ofensiva às forças ucranianas. Entre eles, estão drones “swichtblade” de nova geração, que podem atingir alvos a 80 km de distância, com precisão e forte poder destrutivo.
O próximo passo parece ser, dessa forma, o de levar a guerra ao território russo e a regiões dominadas por separatistas russos, como a da Transnístria, na Moldávia. Esse processo já começou, mas deve se agravar.
Com isso, se espera amedrontar a população russa e criar um ambiente contra o governo naquele país. Investimentos em desinformação e em eventuais “rebeliões coloridas”, na Rússia ou em países aliados a Moscou, fazem parte desse cenário estratégico.
Na área diplomática, o objetivo é o de pressionar o maior número possível de países a aderir a essa espécie de jihad contra a Rússia.
Com efeito, à medida em que o conflito se agrava, crescem as pressões para que todos adiram às sanções cada vez mais severas, que afetam seriamente a economia mundial e a segurança alimentar e energética das populações mais pobres.
O objetivo final seria, é claro, o de substituir o governo Putin por outro mais afinado com os interesses do Ocidente.
Trata-se de uma estratégia muito perigosa, principalmente quando se leva em consideração que a Rússia tem, de acordo com a Arms Control Association, 6.257 ogivas nucleares, além de forças militares bem treinadas e bem equipadas com armas convencionais.
Além disso, a questão da neutralidade da Ucrânia é uma “questão existencial” não apenas para Putin, mas também para todas as forças políticas da Rússia. Tirar Putin seria inútil.
A busca da paz, tão necessária no atual cenário, parecer ter sido abandonada pelos principais atores.
Os que defendem a paz e as negociações, e apontam para as responsabilidades de ambos os lados, como Lula, são imediatamente desautorizados, criticados e demonizados. Nessa perspectiva belicista e cínica, a única opção legítima é investir na guerra militar e econômica contra a Rússia.
Suécia e Finlândia ameaçam entrar para a Otan e até mesmo o Japão está pensando em reformar a sua Constituição pacifista. A nova Guerra Fria, 2.0 e turbinada, segue a pleno vapor.
Enquanto isso, a inocente população civil da Ucrânia é imolada no altar das grandes disputas geopolíticas mundiais
A paz está órfã.
*Marcelo Zero é sociólogo e especialista em Relações Internacionais
Pablo Picasso, Guerra (acima) e Paz (abaixo) 1952
Arte e anti-imperialismo, Instituto Tricontinental
Na pequena comuna francesa de Vallauris fica uma capela do século 14. Em suas paredes, o artista espanhol socialista Pablo Picasso criou um de seus maiores murais: o díptico Guerra e Paz.
Depois de 278 esboços, o mural finalizado de Picasso retrata um demônio da guerra, portador de doenças, lutando contra uma figura heroica que empunha uma lança e está protegida por uma pomba. É um retrato do imperialismo.
No pano de fundo dessa pintura estavam as agressões militares dos EUA na Guerra da Coréia, que haviam começado dois anos antes e matariam três milhões de vidas em 1953.
“Pinturas não são feitas para decorar casas”, escreveu Picasso uma década antes. “É um instrumento de guerra ofensivo e defensivo contra o inimigo”, disse.
Guerra se insere na tradição de Picasso de retratar os horrores da guerra, como a obra mais famosa Guernica (1937), sobre o bombardeio fascista da cidade basca.
Guerra, entretanto, é o complemento de uma segunda pintura, Paz. É o retrato da resistência anti-imperialista, uma defesa do socialismo e um vislumbre de um mundo possível para os sobreviventes.
Picasso não estava apenas condenando a guerra, mas proclamando uma visão de paz para os seres humanos e o planeta.
Publicação de: Viomundo