‘Lei 14.874 e decreto regulamentador prejudicarão muito os participantes de estudos e a própria pesquisa no Brasil’, diz o professor Dirceu Greco

Professor emérito da UFMG, Dirceu Greco explica disputa no STF sobre a Lei de Pesquisa Clínica

Regulamentação da lei prevê a criação de uma Instância Nacional no lugar da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep)

Portal da Faculdade de Medicina UFMG

O Governo Federal regulamentou, no início de outubro, a Lei de Pesquisa com Seres Humanos (n°14.874/2024).

Segundo o Ministério da Saúde, o novo marco legal garantiria segurança jurídica, ampliaria a proteção dos participantes e incentivaria a produção de conhecimento e o desenvolvimento de novas tecnologias.

Entre outras mudanças, será instituída a Instância Nacional de Ética em Pesquisa (Inaep), responsável pela regulação da análise ética em pesquisa no Brasil. Antes, a função era exercida pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS).

A lei é alvo de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no Supremo Tribunal Federal (STF), impetrada pela Sociedade Brasileira de Bioética (SBB).

Nesta entrevista, o professor emérito da UFMG, Dirceu Greco, explica o pleito.

Dirceu é pesquisador da área de infectologia, foi membro titular do Conep, ex-presidente da SBB, é membro da Comissão Internacional de Bioética (Unesco, Paris) e foi o primeiro coordenador do Comitê de Ética Pesquisa e do Centro de Pesquisa Clínica do Hospital das Clínicas da UFMG.

Professor Dirceu, como o senhor avalia o panorama da pesquisa clínica e do sistema CEP/CONEP no Brasil antes da mudança de legislação de 2024? Quais os principais desafios que essa mudança se propôs a enfrentar?

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Essa é uma ótima pergunta, porque permite falar sobre um sistema que realmente é espetacular e que, com esta magnitude, só existe no Brasil. Este sistema foi criado em 1996, com a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde (CNS). Aqui é importante destacar que trata-se de um órgão vinculado ao controle social.

Nesses quase 30 anos, o sistema estabeleceu um arcabouço sólido de garantias de segurança e proteção, especialmente dos participantes de pesquisa. Hoje são cerca de 900 CEPs em todo o país, com quase 16 mil pessoas envolvidas.

Quando menciono isso em encontros internacionais sobre bioética, as pessoas ficam admiradas. Afinal, é notável que um país continental como o Brasil tenha conseguido construir essa estrutura. Esse modelo se baseia em um princípio essencial: o controle local, no âmbito do CNS, o que torna muito mais difícil a ocorrência de conflitos de interesse. O Conselho é o espaço onde as políticas de saúde de Estado (e não de governo) são discutidas e formuladas.

Essa estrutura deu origem ao sistema CEP/CONEP, que se tornou um paradigma de segurança e proteção aos participantes de pesquisa. E, claro, se elas/eles estão protegidas/protegidos, a pesquisa também está, o que é benéfico para todos (participantes, instituições e pesquisadores).

A nova lei de 2024 criou a Instância Nacional de Ética em Pesquisa (Inaep), entre outras mudanças. Como o senhor interpreta essa nova estrutura de governança da ética em pesquisa no Brasil?

Essa talvez tenha sido a pior mudança. Enquanto o sistema estava sob a égide do CNS, havia o controle social, pois o CNS é formado por representantes de gestores, entidades da saúde e, em sua metade, por usuários. Esse é o formato mais democrático possível.

A nova lei, no entanto, foi gestada de forma problemática. Seu debate começou em 2015, com uma proposta ruim, baseada em um argumento que havia morosidade na aprovação de projetos de pesquisa.

De fato, houve um período mais lento, mas o problema foi resolvido gradualmente, especialmente a partir da pandemia de Covid-19. Naquele momento, o sistema CEP/CONEP chegou a realizar reuniões diárias — sete dias por semana — e o prazo médio de aprovação caiu para cerca de 30 a 35 dias, o que é menor que em muitos países. Ou seja, o argumento da morosidade já não se sustentava.

O que realmente motivou a mudança foi a pressão da indústria farmacêutica para tornar a pesquisa clínica no Brasil mais “palatável” à indústria.

Essa tramitação começou em 2015 no Senado, passou pela Câmara e voltou ao Senado, onde foi, finalmente, aprovada em 2024. O presidente Lula vetou dois artigos, mas o Congresso derrubou os vetos e a lei foi sancionada como estava. Isso foi um desastre.

Para se efetivar, é necessário que a lei seja regulamentada pelo Executivo, ouvido o Ministério da Saúde.

O texto da lei prevê que a Inaep estará sob a coordenação da área técnica responsável pelo campo da ciência e tecnologia do Ministério da Saúde. Uma das piores consequências foi a eliminação da Conep como instância central. Ela permanece formalmente como comissão do CNS, mas perde o papel que desempenhava.

Durante o período em que se discutia a regulamentação, diversas entidades da saúde pública e da bioética, tais como a SBB, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) e a Rede Unida defenderam propostas para atenuar os impactos negativos da lei, como, por exemplo, a inclusão da Conep na Inaep.

Após diversas tentativas de diálogo, o decreto foi aprovado sem incorporar nenhuma destas propostas. A maioria das entidades de saúde pública e bioética e a quase unanimidade dos membros na 371ª Reunião Ordinária do CNS (08/10/25) se posicionaram contra o decreto.

Em setembro de 2025, a SBB entrou com a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI n° 7875), que foi aceita pelo STF, tendo como relator o ministro Cristiano Zanin.

Os argumentos da ADI incluem, entre outros, a restrição à participação do controle social e a violação à autonomia e consentimento informado e o chamado vício de iniciativa formal, pois lei de origem parlamentar não pode criar e organizar um órgão da administração pública federal.

Essa ação está em andamento e o ministro Zanin solicitou a três faculdades de Medicina que se manifestassem sobre o pleito da SBB (Unicamp, Unifesp e USP). As duas que já se manifestaram são favoráveis aos argumentos da SBB.

Há críticas de que a nova lei flexibiliza salvaguardas éticas, especialmente em relação a grupos vulneráveis, acesso pós-ensaio, autonomia e consentimento. O senhor concorda?

Sim, dos argumentos incluídos na ADI pelo menos dois devem ser enfatizados. O primeiro é a restrição ao direito ao acesso pós-estudo. Desde 2008, o Brasil garantia que qualquer participante de pesquisa que recebesse uma medicação eficaz e segura teria direito a continuar recebendo-a, como obrigação do patrocinador e sem ônus para o participante e nem para o SUS, por tempo indeterminado, enquanto fosse necessário. Foi uma decisão corajosa, provavelmente única no mundo e que mostrava o cuidado na proteção e promoção dos direitos dos participantes

A lei muda isso completamente: limita o fornecimento a, no máximo, cinco anos com condicionantes e transfere a decisão para o pesquisador principal, o que gera claro conflito de interesse, já que a maioria desses estudos é financiada pela indústria.

Além disso, se o medicamento for incorporado ao SUS nesse período, a obrigação do patrocinador cessa e o custo, que pode ser exorbitante, passa ao sistema público. Isso onera o SUS e pode gerar pressão indevida para incorporação precoce de medicamentos.

O segundo ponto crítico é o consentimento informado. A lei permite, em “situações emergenciais”, a realização de pesquisas sem consentimento do participante, mas sem detalhar quais seriam essas situações excepcionais. Isso abre uma janela grande para a não exigência do consentimento.

E quanto à autonomia dos comitês locais de ética em pesquisa (CEP)?

Esse é outro ponto importante. Na verdade, o sistema CEP/CONEP já previa certa delegação a CEPs credenciados, mas a nova lei amplia isso de forma equivocada.

Agora, se um estudo multicêntrico for aprovado pelo CEP do centro coordenador, os demais CEPs dos demais centros não participarão de qualquer análise do projeto. Isso não só reduz a autonomia local, mas despreza as nuances de cada centro e também aumenta o risco de conflito de interesse, especialmente quando há vínculos estreitos entre pesquisadores de algum local específico e patrocinadores da indústria.

Na sua opinião, o que pode ser feito a partir de agora para assegurar a segurança dos participantes?

No curto prazo, a expectativa é que a ADI contra a lei avance e que, paralelamente, haja mobilização para modificar o decreto, com a participação efetiva de todas as partes interessadas, visando reforçar o controle social com a reincorporação da Conep à Inaep, e com a participação da SBB e de outras instituições da saúde coletiva.

Além disso, é fundamental fortalecer o protagonismo dos próprios participantes. Como dizia Paulo Freire, as pessoas se emancipam para exercer seus direitos – não apenas para serem “protegidas”. Neste sentido, existe hoje no Brasil uma instituição de defesa dos participantes de pesquisa, a Associação Nacional de Participantes de Pesquisa Juju Barbosa, e existe outra similar no Japão.

E quanto ao papel da Conep nesse novo cenário?

A Conep, como a conhecíamos, foi alijada do ponto de vista estrutural. Esta comissão continua existindo formalmente como uma das comissões do CNS, mas pela lei e pelo decreto, perde o protagonismo exercido nestas quase três décadas, pois já não coordena o sistema.

Como discutido anteriormente, a expectativa é que consigamos reverter esta situação. Vale enfatizar que logo após a aprovação do decreto, 26 dos membros da CONEP renunciaram coletivamente.

Os quase 900 CEPs locais continuam sendo a base, lembrando que aqui na UFMG, existem dois comitês (um deles, recém criado, o CEP-Saúde, sediado na Faculdade de Medicina). Eles seguem operando, mas agora subordinados a uma estrutura centralizada na Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação e do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (SECTICS), o que fere a lógica participativa e descentralizada do sistema original.

A esperança é que a ADIN prospere e, enquanto isso, que o decreto seja revisto, reintegrando a CONEP ao novo modelo. Também é essencial fortalecer as entidades que representam os participantes de pesquisa para que continuem a exigir seus direitos.

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Publicação de: Viomundo

Lunes Senes

Colaborador Convidado

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