Jordan Michel-Muniz: ONU, Petro, paz e o OVNI

Por Jordan Michel-Muniz*, especial para o Viomundo

Nações Unidas para unir nações? O objetivo neste jogo de poder era outro.

Quem viu a recente Assembleia Geral da ONU percebeu ‘Nações Divididas’.

Já nem disfarçam: a OTAN instalou na Presidência desta Assembleia a belicista Annalena Baerbock, que antes falara num “giro de 360 graus” (sic) para vencer a Rússia. Ufa!

Não admira a ONU raramente servir à paz e ser palco de boas intenções quase estéreis.

Não consegue nem apoiar refugiados na Palestina, pois Israel ataca e mata seus funcionários, impedidos de distribuir alimentos e remédios, sem que a ONU reaja enviando tropas.

É incomum alguém nomear culpados neste parlamento, onde muitos falam e poucos mandam.

Muitos, não todos: a Palestina não pôde participar, mesmo a ONU sendo território neutro. Trump negou o visto para acobertar o genocídio em Gaza, rasgando a Carta da ONU.

Desafiante, Gustavo Petro, presidente da Colômbia, confrontou Trump, citando larga maioria a favor de intervir em Gaza.

Petro escancarou: “Respondem com blá blá blá, e quando chega o momento, o Conselho de Segurança bloqueia. Bloqueia para que continuem matando crianças. As Nações Unidas não podem olhar a humanidade de frente e permitir isto. Ninguém perdoará, por gerações. As Nações Unidas acabarão, se seguem neste caminho”.

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Disse mais: “Este lugar é testemunha silenciosa e cúmplice de um genocídio no mundo de hoje, que acreditávamos ser apenas atributo de Hitler”.

Depois, em ato público em Nova York, incitou tropas dos EUA e de Israel a não lutarem na Palestina, pelo que cassaram seu visto de viagem. Ele respondeu que “a sede das Nações Unidas não pode permanecer em Nova York”.

Por fim, condenando agressões militares dos EUA no Caribe, afirmou que a política antidrogas de Trump não visa impedir o tráfico de cocaína aos EUA, mas dominar a América Latina: “Os narcotraficantes vivem ao lado da casa de Trump em Miami”, vivem onde “há luxo, não pobreza”.

Petro expôs deficiências crônicas da ONU, compreendidas ao rever sua gênese.

A ONU não nasceu buscando paz, mas para unir aliados contra Alemanha, Itália e Japão, na Segunda Guerra Mundial. Seu berço é bélico, no estilo “ou estão conosco, ou contra nós”.

Ela substituiu a Liga das Nações, repetindo erros que causaram o fracasso desta, por soberba das potências mundiais, incapazes de ver seus vícios senhoriais, ponto a que retornarei.

A ONU não recebeu os genes do igualitarismo pacifista e da democracia entre os povos.

Foi gerada em 1941, na proveta dos EUA e do Reino Unido – por Roosevelt e Churchill, respectivamente – com a Carta do Atlântico, usada para obter adesões, ou imposta a oponentes e aliados, como Stalin, pressionado a aceitá-la.

Suas oito cláusulas falam em esperança e entendimento, ofertando promessas vazias. O papel acolhe a tinta sem concretizar a escrita. Lido atentamente, o texto surpreende pela desfaçatez.

De um lado, EUA e Reino Unido reivindicavam livre acesso às “matérias primas do mundo”, revelando ambições; de outro, propunham respeitar “o direito de todos os povos escolherem a forma de governo sob a qual querem viver”, em contradição flagrante: e se tais povos desejassem resguardar suas riquezas naturais?

Anunciavam igualdade para grandes e pequenos Estados e, hipocritamente, para vencedores e vencidos.

Falavam em reduzir armamentos após a guerra, porém iniciaram a corrida nuclear, exibida em Hiroshima e Nagasaki, para intimidar a União Soviética (URSS) – como lembra Domenico Losurdo em A Linguagem do Império – enquanto se vingavam desproporcionalmente do Japão por Pearl Harbor.

Também por desforra os britânicos e os EUA aniquilaram Dresden (abaixo, imagem das ruínas da cidade alemã), com bombas explosivas e incendiárias, aquelas rompendo prédios para que estas neles penetrassem.

O alvo foi a população civil, calcinada sob escombros, chacina com tantos mortos quanto Hiroshima, que Kurt Vonnegut, em Matadouro-Cinco, chamou de “tempestade de fogo”: milhares de pessoas agonizando nas chamas, num ataque sem serventia militar.

Dresden,1945, dias após os bombardeios dos aliados. Foto feita a partir da torre da prefeitura dessa cidade alemã destruída. Em primeiro plano, a Estátua “Güte” (“Bom” ou “Gentileza”), de August Schreitmüller, 1908–1910. Foto: Richard Peter/Wikimedia Commons

Com a Europa pacificada, tramaram a Operação Impensável: rearmar nazistas contra a URSS, pela mesma razão que até 1939 auxiliavam Hitler: para combater o comunismo.

Paz?

Desistiram não por pacifismo, mas por medo de a URSS os esmagar, conhecendo a força dela, imprescindível na derrota da Alemanha.

Viam os russos como “ameaça à civilização ocidental”, embora prometessem na Carta do Atlântico construir a paz após destruir a tirania nazista.

Dois meses e meio depois de lançar bombas atômicas, os culpados pelo massacre no Japão sediavam a criação da ONU. Com os antecedentes dos patrocinadores da iniciativa – EUA & Reino Unido – o que poderia dar certo?

Como não notar a continuidade da luta, se só alguns vencedores tiveram virtude para integrar o Conselho de Segurança que instituíram?

Como não ver hipocrisia, se alardeavam “igual tratamento para grandes e pequenos Estados”, mas o voto de qualquer dos membros permanentes do Conselho de Segurança vale mais que o das outras 188 nações (em números atuais)?

Ganharam tal privilégio como potências vencedoras da Segunda Guerra Mundial – China, EUA, França, Reino Unido e URSS. Na verdade, a França perdeu e apoiou Hitler, com o governo de Vichy enviando judeus, ciganos e deficientes às câmaras de gás nazistas.

Se a fraude soa pequena, o objetivo era gigante: dar maioria no Conselho de Segurança ao Ocidente, moldando o engano de China e URSS vetarem ao perder no voto majoritário, com os EUA controlando lacaios europeus – Reino Unido & França – para não ficarem em minoria.

Assim bancam mocinhos contra bandidos, como nos faroestes de Hollywood, e manipulam a opinião pública global para encobrir dezenas de guerras deflagradas desprezando a falta de aprovação do Conselho de Segurança. Deste modo, diz Losurdo em Um Mundo Sem Guerras, “o suposto ‘xerife internacional’ se comporta na verdade como um fora da lei”.

Outro engodo foi criar uma organização pacificadora dando poderes supremos aos mais capazes na guerra, quando o critério deveria ser os melhores na paz, não?

O que poderia funcionar?

Quem deu uma chance a paz, como pediu John Lennon?

Por que falar em Nações Unidas, se as potências queriam ‘Nações Divididas’, na hierarquia de dominantes e dominadas, poderosas e insignificantes?

Ainda mais que os derrotados – Alemanha, Itália e Japão – logo se juntaram aos membros do Ocidente: EUA, França e Reino Unido. Os aliados da URSS e da China de 1939 a 1945, além de virarem adversários delas, uniram-se a seus inimigos anticomunistas, que tinham matado 70 milhões de russos e chineses.

Durante algum tempo a Alemanha foi partida em duas, no pós-guerra. Mas Itália e Japão até hoje estão ocupados militarmente só pelos EUA. Desde 1990, o mesmo sucede na Alemanha, após a URSS aceitar a reunificação, com a condição de a OTAN não avançar para o Leste Europeu, ajuste cujo desrespeito desencadeou a atual guerra na Ucrânia.

Por que após reunir a Alemanha o Ocidente recusa igual direito à China em relação a Taiwan? Por que o Ocidente entope Taiwan com armas, se a ONU reconhece apenas uma China?

Paz?

Das farsas da fundação das Nações Unidas a mais marcante é deixar intocado o colonialismo e, pior, reconhecer Israel, a nova colônia racista.

É o mesmo cinismo da Declaração de Independência dos EUA: “todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a procura da felicidade”, exceto se fossem negros – desiguais e sem direitos.

Para entender a relevância da questão, volto à Liga das Nações, conforme avisei.

Tal como a ONU, em 1919 os vitoriosos da Primeira Guerra Mundial forjaram a Liga das Nações para lucrar, não pela paz. Nunca discutiram seu colonialismo, com o qual saqueavam povos indefesos, assim como a escravidão roubara vidas negras.

Após derrotar e desmembrar o vasto Império Otomano, as potências vencedoras inventaram novas colônias, os “mandatos”, ocupando regiões da África, do Pacífico e da Ásia Ocidental: Síria e Líbano couberam à França; Iraque, Jordânia e Palestina ao Reino Unido.

A desculpa era serem “habitados por povos ainda não capazes de se dirigir”, trapaça utilizada no século XIX por John Stuart Mill para justificar a espoliação da Índia.

Em Necropolítica, Achille Mbembe denuncia: “a colônia representa o lugar em que a soberania consiste fundamentalmente no exercício de um poder à margem da lei, e no qual a ‘paz’ tende a assumir o rosto de uma ‘guerra sem fim’”.

Paz?

O Mandato Britânico ligou-se à sionista Declaração Balfour, visando fazer da Palestina um “lar para os judeus”, astutamente, à custa dos palestinos: “a soberania é a capacidade de definir quem importa e quem não importa, quem é ‘descartável’ e quem não é”, adverte Mbembe.

A Liga das Nações firmou a paz dando aos fortes vantagens e aos fracos a conta – prática que a ONU renovou.

Havia aí afronta ao parágrafo inicial do Artigo 22 do Pacto da Liga das Nações, que trata dos “mandatos” e diz textualmente: “o bem-estar e o desenvolvimento desses povos constituem sagrada missão de civilização, e convém incorporar ao presente Pacto garantias para o desempenho de tal missão”.

Paz?

Como, se acabaram com o “bem-estar e o desenvolvimento” dos palestinos?

O resto da história é conhecida. A ONU endossou a Partilha da Palestina em 1947, consentida pelo Conselho de Segurança.

A partir daí judeus invasores trucidaram palestinos que resistiram à Colônia Racista de Israel, e promoveram limpeza étnica expulsando 750 mil palestinos, na ‘Nakba’ – a catástrofe, que em 2025 supera três milhões de refugiados da ocupação neonazista.

Paz?

Agora aprovaram o cessar-fogo na Palestina, o plano de paz de Trump – que se gaba de ser o ‘xerife internacional’, ignorando a interpretação de Losurdo. O acordo remete às promessas do artigo 22 do Pacto da Liga das Nações, em três aspectos, que recupero a seguir.

Primeiro, porque os EUA terão o equivalente a um “mandato” para administrar Gaza, com o nome de “Conselho da Paz”, reencarnando o “mandato” britânico sobre a Palestina. Isto é colonialista, na análise citada de Mbembe: “um poder à margem da lei, e no qual a ‘paz’ tende a assumir o rosto de uma ‘guerra sem fim’”.

Além disto, como já referido, o Artigo 22, de 1919, rezava que “o bem-estar e o desenvolvimento desses povos constituem sagrada missão de civilização…”, o que voltam a prometer, exigindo submissão sem oferecer justiça.

Por fim, Israel manterá um perímetro de segurança dentro da Faixa de Gaza até que não haja mais risco de ameaças terroristas, ou seja, ocupará indefinidamente outro território, numa nova Partilha da Palestina.

Paz?

Para a paz mundial outra ONU é indispensável.

A reforma precisa atribuir poder soberano à maioria da Assembleia Geral e eliminar o direito de veto e a membresia permanente no Conselho de Segurança, a ser convertido em órgão eletivo para mediar conflitos que, persistindo, implicarão deliberação da Assembleia.

Qualquer mudança que não altere o perfil da ONU e se satisfaça com menos que a inversão na distribuição do poder estará fadada a reincidir em conluios similares das potências bélicas contra povos pouco armados, obstruindo a paz.

Gustavo Petro foi certeiro em tudo que falou, inclusive sobre transferir a sede da ONU: por que não em Gaza, com administração da Palestina?

Lá é perigoso? E de quem é a culpa? Da Liga das Nações e da ONU, como mostrado.

Passou da hora de corrigir tal trama, em respeito aos sobreviventes e às vidas irrecuperáveis. Muitas reparações mais são devidas a povos saqueados pela colonização europeia.

Do OVNI (objeto voador não identificado) não há fotos, apenas sinais sonoros, repetitivos: “não se deve jogar fora a criança com a água do banho”…

Só mesmo gente de outro planeta, onde não sabem que em Gaza não tem água nem pra beber, quanto mais pra banho, e que os genocidas de Israel há dois anos despedaçam e jogam fora crianças – dezenas de milhares delas.

PS: Os EUA arrasaram com bombas atômicas Hiroshima, em 6 de agosto de 1945 e, três dias depois, Nagasaki. Brevemente saciados, criaram a ONU em 24 de outubro de 1945.

*Jordan Michel-Muniz é ativista social, mestre e doutor em Filosofia pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e pesquisa temas ligados à geopolítica, democracia e às injustiças.

Este texto não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.

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Publicação de: Viomundo

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